Toda cidade e mesmo todo bairro têm os seus personagens exóticos, folclóricos, que vivem à margem do mundo dito normal, ensandecidos pela vida ou marcados desde o nascimento para um destino inexplicável. O jornalista Olao Rodrigues discorreu sobre muitos desses tipos populares que existiram em Santos em várias épocas: Camarinha, Guari, Mata-Cobras, Trinta Quilos, João das Ostras... O escritor Nélson Salasar Marques mencionou um indivíduo insólito do Bairro Chinês: o temido Foge-Chico. Recordo-me de algumas dessas figuras que passaram pelo bairro da infância. Maria Sapa foi uma delas, mas sua imagem me surge enevoada, apagada pela distância do tempo. O jurista Mário Faria dedicou enternecedor soneto a essa estranha criatura que perambulava pelas ruas de Santos.
Recentemente ainda se via o Zé Macaco. Muito magro, braços compridos, andar desengonçado, roupas bizarras, puxava um carrinho com um alto-falante num volume ensurdecedor e, em meio a apitos e chiados, matraqueava anúncios de casas comerciais. Quando reclamavam do ruído infernal de sua engenhoca, dizia: “Quem não gosta de barulho que vá morar no cemitério!” À noite, Zé Macaco demonstrava seus dotes de dançarino no tradicional “Samba Danças”, da Rua General Câmara. Também gostava de imitar locutor de rádio e fingia fazer reportagens em jogos de futebol e visitas de pessoas importantes. Dizem que uma vez chegou a “entrevistar” o então Presidente da Republica, Marechal Castelo Branco, que seriamente respondia às perguntas do Zé Macaco sem desconfiar que falava a uma lata de azeite disfarçada de microfone! Muito popular, chegou a ser eleito vereador em Santos. E o mais votado!
Mas agora eu quero falar do Neco, que andava pelo bairro do Marapé lá pelos fins dos anos 40 e começo da década de 50. Baixo, vestindo um paletó escuro e seboso, chapéu puído, calça arregaçada até o joelho, pés descalços e imundos. Sempre junto às paredes e aos muros, ele caminhava a passos curtos, jogando os pés para a frente como se estivesse dando chutes ligeiros.
As crianças, quando o viam aproximar-se, fugiam, largando as brincadeiras por mais entretidas que estivessem. A grande proeza do Neco era surpreender um grupo de crianças. Chegava mansamente, silencioso, e soltava um grito poderoso e aterrorizador: “ Pei!” As meninas que pulavam amarelinha ou os meninos de jogavam bola de gude corriam para todos os lados. Neco ficava parado, balançando-se, com um sorriso atoleimado, olhava as crianças correndo e concluía satisfeito: “Matei um jacu!...” E prosseguia seu caminho.
Aquela palavra interjetiva, “pei!”, que para ele talvez significasse o som de um tiro imaginário e que sempre proferia num grito, acrescentou-se a seu nome, tornando-o Neco Pei.
Neco Pei também se revelava um torcedor fanático do Santos Futebol Clube. Provavelmente nunca tivesse visto o clube jogar nem conhecesse os jogadores, mas era comum, nas tardes de domingo, vê-lo “irradiar o jogo” do seu time nas sua andanças pelas ruas. E as alocuções com que descrevia as jogadas fictícias terminavam invariavelmente com um gol do Santos. Na transmissão do Neco, o Santos ganhava todos os jogos. E geralmente com um gol de Pinhegas. O ataque do Santos na época era : Cento e Nove, Antoninho, Nicácio, Odair e Pinhegas. Sabia-se de cor a formação dos times de futebol. Ela se mantinha durante muitos anos. Os jogadores dificilmente se transferiam de clube. Para a Europa, então, raríssimos os que foram. Havia, ainda, para memorizar mais os nomes dos jogadores, as figurinhas que vinham embrulhando balas açucaradas que comprávamos na mercearia do bairro .
A noite de domingo tinha descido, mas ainda se ouvia ao longe a voz do Neco a gritar: “Gol de Pinhegas! Pei! Matei um jacu!”
Certo dia, meu irmão mais velho, que trabalhava em cartório da cidade, ao retornar do serviço no fim da tarde, trouxe a notícia: “O Neco morreu!” Foi encontrado morto debaixo da marquise de uma padaria. Tinha apenas vinte e seis anos de idade, mas para as crianças ele parecia um homem já muito velho.
Neco desapareceu das ruas e com ele parte da inocência daqueles tempos também se perdeu. Hoje, percebo que a sua morte parece que teve o significado simbólico de dizer que a infância começava a terminar.
Como na conhecida alegoria, Neco, agora, deve estar escondido atrás de alguma nuvem do céu, pronto para gritar “pei!” e depois sorrir diante do vôo de um bando de pequenos anjos em fuga. |