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ASSOMBRAÇÕES E LADRÕES SANTISTAS1
Amílcar Ferrão Pinto 2
 
O mundo infantil vivia povoado de fantasmas. E eles não eram apenas personagens das histórias que os mais velhos contavam. As assombrações existiam verdadeiramente; elas eram vistas e sua presença assustadora, componente natural na vida das crianças. Não se distinguia o que chamamos de produto da imaginação do que era real. O sonho e a realidade se misturavam. Hoje, quanto mais a memória aprofunda seu mergulho e vamos regredindo no tempo até os primeiros anos de vida, mais denso se torna o imaginário da infância.

O medo se insinuava já no começo da noite e ia crescendo. Nada de sons humanos durante a madrugada. Ouvia-se o canto dos grilos e, principalmente depois das chuvas, o ruído da saparia nos capinzais que cobriam os terrenos encharcados. Ao longe, o marulho das ondas acalentava o sono e, também na distância, o silêncio da noite do Marapé era as vezes quebrado pelo apito do trem da Sorocabana que parecia um longo grito agoniado.

O menino, nestas horas, debaixo das cobertas, lembrava das histórias que lhe narravam algum adulto que se comprazia em assustar os pequenos com a descrição de seres horripilantes. Eram histórias do bicho-papão, do homem do saco, do lobisomem, do saci-pererê , da mula-sem-cabeça, de bruxas, de fantasmas... Temia-se o sobrenatural. Assassinos e ladrões, que hoje tanto sobressaltam as pessoas, eram menções longínquas que chegavam pelas notícias das rádios e dos jornais. Mas se referiam a um outro mundo, muito distante do bairro.

Após o jantar, as famílias punham as cadeiras nas calçadas para “tomar a fresca”. Essas calçadas geralmente não tinham qualquer pavimento; eram só estreitos caminhos abertos no meio do mato, separados do leito de terra das ruas por valas enlameadas onde cresciam todo tipo de capim, carrapichos, mata-cavalos. Nessas ocasiões se comentavam as façanhas do Zé dos Telhados, em Portugal, ou do Meneghetti, na cidade de São Paulo. Eram ladrões famosos e romanticamente admirados pela ousadia de suas proezas e até por serem criminosos que obedeciam certo código de honra. Os ladrões do bairro eram literalmente ladrões de galinha, porquanto costumavam entrar furtivamente nos quintais para furtar ovos ou levar alguma roupa deixada no tanque ou esquecida nos varais. Dificilmente se verificavam outros tipos de roubos, havendo, contudo, referências a batedores de carteira, tidos como indivíduos com dedos de seda que agiam sem que ninguém percebesse suas ações. Mas isso também estava muito distante. Um dia, porém, correu a notícia: “ – Juca foi preso!” Roubara lanternas de pilha de um navio no cais, objetos raros e importados que então denominávamos “flash light”. Juca morava no sopé do morro de Santa Teresinha e era figura muito conhecida: camisa de seda, calça preta com boca a menor possível, sapatos de duas cores, andar ronceiro. Parecia o Amigo da Onça, personagem humorístico que fazia sucesso na revista “O Cruzeiro”. Os meninos foram implacáveis. A partir desse dia, recebeu a alcunha que ficou indelével: Juca Ladrão! Os mais destemidos, quando ele passava, se escondiam dentro das valas e gritavam: “– Aí, Juca Ladrão!”, provocando a ira impotente da pobre vítima dos meninos. Crimes cruéis eram fatos tão insólitos antigamente que um que foi desvendado na cidade, o da morte e esquartejamento de Maria Féa, provocou tal comoção que essa infeliz mulher se tornou, ao longo do tempo, figura de culto e devoção que permanece até hoje.




Maria Féa - fotocópia da imagem publicada no Jornal A Tribuna (Santos), na época do crime.




– Andava-se pela cidade sem problema, a qualquer hora da noite. Não era como hoje. – asseverou Cláudio Lopes, interrompendo meus pensamentos que se perdiam em descaminhos, nas profundezas do tempo.

Então voltei a lembrar dos fantasmas. Juro que me deparei com a mesma assombração duas vezes. Uma vez, numa noite de verão, depois de longas perseguições a vaga-lumes para prendê-los num vidro, voltei para casa com a rua já deserta. Andava rapidamente, a passos saltitantes para chegar depressa em casa e não ficar com a roupa cheia de carrapichos do mato, quando , atrás de uma velha cerca de ripas, vi um enorme animal cinza com olhos vermelhos e brilhantes que me fitavam. Não tive dúvida, era um lobisomem! Corri desesperado e, ofegante, cheguei em casa e contei o que vi ao Lelo, irmão mais velho. Ele riu de mim e disse: “ – Ora, deve ser o Salto!” Salto era um enorme cão de pelo amarelado que pertencia a seu Firmino, um português vizinho, morador de um chalé de madeira erguido sobre pilotis de tijolos. Era um cão estranho, que vivia recluso. Quase nunca se ouvia seu latido. Às vezes ele emitia uma espécie de uivo junto com um ronco, farejava o ar e partia numa corrida louca para a rua como tivesse que perseguir algum ser invisível. Nós o perdíamos de vista e, algum tempo depois, voltava lentamente, com a cabeça e a cauda abaixadas, e ia se esconder debaixo do chalé entre latas e caixotes. Em outra ocasião, vi novamente o lobisomem, quando, à noite, desci ao porão de casa para guardar os sapatos. Mal abri a porta avistei, bem próximo de mim, aquele animal medonho que me observava com os mesmos olhos vermelhos. Larguei tudo e fugi em pânico. Até hoje tenho na memória com nitidez essa criatura monstruosa que, imprevisivelmente, de vez em quando ainda me aparece...

Na casa antiga onde morava, com assoalho e forro de madeira, estranhos sons se ouviam: estalidos, o vento nas frinchas ou no telhado, sibilos, ruídos ásperos ... Houve uma época em que se falava muito de um misterioso Homem da Capa Preta. Na minha imaginação, ele me aparecia como um morto e vivo, ou seja, alguém meio homem, meio assombração. Ele deixou muita criança cheia de medo na hora de dormir. As mais espertas ou com menos coragem inventavam alguma dor de barriga para dormir com a luz acesa ou no quarto dos pais. Numa noite desse período em que o Homem da Capa Preta trouxe pavor ao bairro, acordei subitamente de madrugada. Tomado de maus pressentimentos, pareceu-me perceber uns passos abafados do lado de fora do quarto. As casas se construíam sem recuos na face da rua, de modo que as janelas davam diretamente para os passeios. Assim, os raros passos noturnos se ouviam praticamente do lado da cama. Levantei-me e na ponta dos pés espiei pela fresta da veneziana a escuridão da rua. Soprava um vento quente. Um arrepio me desceu pela espinha. No outro lado da rua, junto à tosca ponte de madeira da canaleta, uma criatura, toda de vestes negras tremulando ao vento, com chapéu de abas largas também negro, imóvel, de frente para minha casa, estava a me esperar! Mergulhei na cama e, protegido pelo cortinado e pelas cobertas que minhas mãos mantinham bem seguras, fechei os olhos e esperei aterrorizado um tempo sem fim até que o sono chegasse.
 
1 Crônica da série “As Estações da Infância”

2 Membro da Academia Santista de Letras, autor dos livros de poesia “Outro Lugar, Outro Tempo”, “Autocanto” e “Recolhimentos”