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Artigo
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Patrimônio e Turismo, uma longa relação: história, discurso e práticas
Haroldo L. Camargo1
 
RESUMO: Patrimônio e Turismo são inventados no final do século XVIII. Tanto os atrativos turísticos como os bens patrimoniais são construídos socialmente, pois, os espaços e os objetos existem numa dimensão e para uma finalidade dada e, são recriados simbolicamente para outras destinações e usos. As relações entre Turismo e Patrimônio se definem historicamente em função do valor econômico dos monumentos.

ABSTRACT: The conceptios of Heritage and Tourism date from the ending of 18th Century. Tour Attractions and Cultural Heritage are social values: spaces and objects exist in a specific way or usage and it´s possible to give them a new purpose, symbolically. The relations between Tourism and Cultural Heritage are defined based on how important the monuments are to the economic context to the city that they are located in.

Introdução

Em um primeiro momento gostaria de fixar com mais precisão o qualificativo para o termo Patrimônio. Creio ser preferível, por razões que espero se esclareçam no decorrer do texto, utilizar simplesmente a denominação Patrimônio Cultural. Ela é muito mais abrangente, se tivermos em conta os diversos conceitos de cultura inerentes ao campo da Antropologia. Quanto ao termo histórico e à sua utilização junto ao patrimônio, embora seja senso comum uma referência ao passado remoto, ele traduz, além do passado, o vir-a-ser, um permanente estado de gestação de situações e coisas que são também históricas, não apenas porque se referem ao passado, mas porque são, também no presente, produzidas por sociedades humanas num determinado tempo-espaço. Com isto quero dizer, que o Patrimônio não é algo fixo e ancorado nas realizações do passado, mas uma noção com potencialidades que pode se realizar enquanto bens patrimoniais.

Poderia, por outro lado, denominar herança ou legado, aquilo que também chamamos patrimônio. Prefiro o último termo, apesar de todos eles serem metonímias ou metáforas originárias de conceitos da ordenação jurídica de sucessão. Optar por Patrimônio, melhor traduz os vínculos históricos que nos remetem à sua invenção, com a Revolução Francesa. Na verdade, ainda que estejamos muito distantes daquele evento, a análise das circunstâncias que determinaram o surgimento da noção de patrimônio podem nos esclarecer melhor o presente, articulando um discurso mais ordenado, capaz de ultrapassar as dificuldades e nos permitir uma visão mais transparente do problema.

Em segundo lugar, é preciso considerar que os cuidados com o patrimônio ou com os bens patrimoniais são imanentes aos critérios de classificação, à teoria e às técnicas de conservação e restauro; ao conhecimento das singularidades históricas e espaciais; à cognição dos artefatos ou objetos seja qual for a sua natureza; às manifestações efêmeras que não se deixam apreender pela permanência ou por uma materialidade palpável e que exigem suportes ou veículos para retê-las.

Quanto ao Turismo, quero entendê-lo aqui como o tempo livre despendido em viagens. Indissociável, apesar da simplicidade da definição, de um fenômeno característico das sociedades industriais, o lazer, ou seja, por oposição ao tempo social do trabalho, o tempo do não-trabalho. Para estas considerações sugiro ao leitor o “Modelo Existencial na Sociedade Industrial”2. Para uma definição totalizadora e sistêmica do Turismo, a leitura de Análise Estrutural do Turismo3.

Patrimônio e Turismo: invenção e relações no contexto histórico de suas origens

Poderíamos nos perguntar agora quais as relações possíveis entre Turismo e Patrimônio Cultural. Deveríamos nos voltar para a gênese das duas invenções. Duas, pois tanto Turismo como Patrimônio, nunca é demais repetir, são característicos das sociedades industriais, elementos localizados e datados dos fins do século XVIII. Estes aspectos já foram desenvolvidos por mim em outros artigos, em particular, “Fundamentos Multidisciplinares do Turismo: História”.4

O Patrimônio de fato, surge com a Revolução Francesa. O conceito foi gerado enquanto patrimônio, nascido de razões práticas e ajustado à ideologia do Estado Nacional. Para evitar a destruição (o “vandalismo”, neologismo cunhado à época para condenar a desaparição dos bens produzidos pelo “gênio do povo francês”) era preciso proteger e catalogar as propriedades remanescentes, pois, além da destruição muitas foram vendidas: da monarquia, dos aristocratas imigrados e da Igreja.

A definição primária de imóveis e móveis que ainda usamos nos dias de hoje, para classificar os bens patrimoniais, é originária deste esforço de organização, inclusive pelo conceito, funções e denominação modernos de museu.

Todavia, não se deve exagerar nem fazer crer que durante aquela última década do século XVIII, ter-se-ia estabelecida legislação e políticas consistentes, de forma a classificar, preservar e restaurar sistematicamente os “monumentos históricos”, denominação corrente dos bens patrimoniais durante o século XIX até meados do século XX. O processo, na França, que exportou o modelo de patrimônio nacional gerenciado pelo Estado, inclusive para o Brasil, só irá consolidar-se sessenta anos mais tarde após a Revolução. Qual seria, porém, a correlação entre patrimônio e turismo ainda no contexto da Revolução Francesa?

O turismo surge indissociavelmente ligado ao patrimônio enquanto elemento que fundamenta o valor econômico5 deste último. Certamente os documentos não falam do turismo organizado que será conhecido anos mais tarde com Thomas Cook e outros agentes de viagem ingleses. Mas eles, os documentos, aludem claramente ao Grand-Tour dos britânicos e outros europeus.(Esta modalidade de viagem também era conhecida pela denominação de “viagem filosófica” e se insere no contexto mais amplo da Ilustração.).

Pensam os revolucionários que a exploração turística (antes do termo) dos monumentos franceses poderia da mesma forma que na Itália e especialmente em Roma, atrair os estrangeiros e prover ganhos consideráveis. Textualmente, dizia num relatório o abade Gregório6 evocando as experiências já vividas da inclusão das antiguidades romanas do sul da França no itinerário do Grand-Tour: “As arenas de Nîmes e a ponte do Gard trouxeram talvez mais à França do que custaram aos romanos”7. O raciocínio se apóia claramente em argumentos financeiros. Aliás, cogita-se também, em espoliar o patrimônio italiano através de guerras de conquista para alocá-lo na França, onde afluiriam os estrangeiros, atraídos pelas estátuas antigas, pois enquanto “a Itália é terra de tirania, a França é a pátria da liberdade...” (sic). A despeito da justificativa ideológica para o roubo, é indiscutível que os interesses materiais sobrepujavam considerações de apreciação estética... 8

As constatações dos franceses observando o fluxo de viajantes europeus, - quase todo o continente era núcleo emissor para a Itália com a difusão da prática dos jovens aristocratas ingleses; não deixavam de levar em conta os benefícios diretos e indiretos que os monumentos históricos e outros bens patrimoniais de alta atratividade poderiam trazer para o seu país.

A construção do conceito de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Seria agora o momento de abandonar estas reminiscências históricas e abordar, ainda que brevemente, o surgimento da noção de Patrimônio Cultural no Brasil. Como no caso francês, ele também irá despontar como Patrimônio Histórico Nacional.

É possível localizar com alguma precisão este despontar já nos primeiros anos da Ia. Guerra Mundial. O relativo isolamento do país com a impossibilidade de importações de manufaturados e matérias-primas, o despontar de um nacionalismo que não deixa de ter como suporte a reação quanto ao enorme contingente de imigrantes estrangeiros no centro-sul e o controle e a dependência de técnicas e capitais europeus fazem com que alguns setores da intelectualidade brasileira lancem um outro olhar para o passado. É bem verdade que isto é apenas um indício que só adquirirá consistência com o primeiro modernismo, para tornar-se objeto de políticas federais apenas em finais dos anos trinta, com a constituição do IPHAN.
Cabe complementar com alguns aspectos extremamente relevantes para esclarecer melhor aquele olhar, acima referido. A passagem do século XIX para o século XX se deu em meio a maior transformação da sociedade brasileira: a extinção do trabalho escravo e os inícios da industrialização, ainda que a sua distribuição sobre o país seja muito desigual. O profundo impacto sobre os centros urbanos modificou a estrutura e a morfologia das cidades, expandindo os núcleos primitivos em território sem delimitação precisa, tornando obsoletas edificações, mobiliários e equipamentos urbanos. Embora muito mais lentamente, não foi diferente também no campo, ao menos nas regiões economicamente mais dinâmicas.

Voltando às cidades, as velhas construções centenárias, feitas para abrigar várias gerações de uma mesma família transformaram-se em elementos facilmente substituíveis por edificações executadas com materiais baratos, e fabricados em escala industrial. O valor real deslocou-se dos edifícios para o solo onde eram construídos, os lucros fáceis serão daí em diante vinculados aos terrenos. Guardadas as proporções e singularidades de tempo-espaço o fenômeno é típico em todas as sociedades que se industrializam. Mas apesar disto, não se pode perder de vista que o fenômeno é produto de profundas modificações sociais e das relações de trabalho. O que implica o conhecimento de singularidades locais.

É justamente o processo acima mencionado que irá gerar aquilo que chamamos hoje de “centros históricos”, os núcleos que por diversas razões são preservados da destruição e permanecem íntegros, ou parcialmente íntegros, com o seu traçado urbano e suas edificações originais. Seria impensável que os homens das sociedades pré-industriais tivessem tal conceito, de algum núcleo particular, das cidades nas quais habitavam. Da mesma forma, aquilo que hoje chamamos “cidades-históricas” é um termo habitualmente dirigido aos centros urbanos que permaneceram à margem da industrialização ou tiveram seu ritmo de crescimento tão notavelmente reduzido que parecem ter-se congelado num determinado tempo. Na maior parte das vezes, apenas parece e, embora os traços de vitalidade sejam pouco visíveis, seria impossível acreditá-los ausentes.

Seria este o caso de Ouro Preto. Citá-la e compreender o processo da sua elevação a monumento histórico nacional em l933, tanto quanto as medidas que posteriormente serão tomadas para a sua preservação, restauro e a política que disciplina as eventuais intervenções é trabalhar com o arquétipo do chamado barroco-colonial brasileiro. No entanto, não é apenas a configuração urbanística, o casario, e as igrejas que lhe consagram. Há duas personagens, Tiradentes e o Aleijadinho, que são apropriados como figuras modelares da nacionalidade brasileira pelo Estado Novo tornando-se paradigmáticas de brasilidade. A destinação de uso da Casa de Câmara e Cadeia para o Museu da Inconfidência remata e demonstra o empenho do governo Vargas na edificação de Ouro Preto como arquétipo do Patrimônio Nacional brasileiro. E ainda mais, a polêmica construção do Grande Hotel pelo arquiteto modernista Oscar Niemeyer revela a conexão entre modernismo e a ênfase sobre a produção brasileira num momento específico da sua história -talvez fosse melhor falar em dois momentos, considerando os modernos - relegando tudo mais à cópia, a contrafação, o que irá redundar em desprezo pelo não-barroco e não-modernista.

Não é preciso ir muito longe para entender o desprezo: qual a política de preservação voltada para a importante arquitetura eclética de Belo Horizonte? Quais as preocupações em manter o plano urbanístico e paisagístico da cidade? Por que seria a Pampulha um ícone – com merecimento diga-se, ainda que sejam duvidosas a sua conservação e ocupação - e o “resto” teria tão pouca importância? Aqui poderíamos alinhar outras cidades, como Goiânia, e um número não desprezível de cidades brasileiras.

É preciso sublinhar que as observações que aqui se fazem não pretendem desqualificar o patrimônio barroco-escravista, mas compreender sua classificação e valorização, como parte de um momento da conjuntura histórica brasileira. E mostrar hoje, que a despeito dos avanços obtidos na preservação do patrimônio com esta noção, Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ela é excludente. Há uma infinidade de artefatos que poderiam figurar como atrativos culturais para o Turismo, prover rendimentos para a sua própria manutenção, desde que geridos de forma adequada e, abrir novas perspectivas de oferta para os centros receptores.

Avançando um pouco mais, pode-se observar que o marketing dos produtos culturais (entendidos aqui não na sua acepção antropológica, mas dentro das convenções de segmentação de oferta de mercado) reitera sempre o já conhecido, inova pouquíssimo, o que pode ser atribuído a uma timidez ou inibição inerentes aos riscos de negócio e ao desconhecimento do assunto. Mas também é possível identificar aqui um outro problema cujas raízes se imbricam com a sagração de Ouro Preto.

Em Ouro Preto, os investimentos em infra-estrutura turística, pela carência ou desinteresse de capitais privados, são feitos pelo governo do Estado Novo que lança e promove aquilo que se pode considerar como atrativo cultural característico do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Indiscutivelmente, o Patrimônio é pensado, aqui também, quanto ao seu valor econômico e, se estivermos atentos aos dados históricos anteriormente citados, apenas verificamos uma tendência que se refaz dentro de suas singularidades locais e que pode ser identificada em suas evidências empíricas. Que havia interesses em atrair turistas –internacionais inclusive- isto fica evidente com a publicação da revista Travel in Brazil pelo D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda). Nos poucos números publicados 9 - hoje raríssimos - colaboraram a nata da intelectualidade brasileira da época. Os desejos do governo frustraram-se com o início da Guerra em l939. Mas o que é mais importante salientar é o traço inerente às ditaduras: estabelecia-se o que deveria ser visto e como deveria ser visto, em outras palavras, disciplinava-se o olhar do turista.

É duvidoso que os intelectuais, colaboradores naquele periódico, entre eles o poeta Manuel Bandeira (autor do Guia de Ouro Preto) tivessem traços ideológicos que os identificassem com o governo Vargas. Seria impensável imaginar isto de Lúcio Costa, do jovem Niemeyer ou do chefe de Gabinete de Capanema, Carlos Drummond de Andrade. Observo apenas, numa outra medida, que são justamente estes homens que dão canonicidade, isto é, legitimam o valor atribuído ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Funda-se assim a noção “clássica” do patrimônio nacional brasileiro, apoiada em valores considerados tradicionais e luso-brasileiros, calcada no espectro nacionalista da época e fortemente orientada para os bens arquitetônicos (ou, de pedra e cal). Atualmente ela não mais seria capaz de abarcar o que podemos considerar como bens integrantes do patrimônio.

Conseqüentemente, ainda que se enfatize o reducionismo - atual - destas posições, os ecos dos conceitos contemporâneos não conseguem se fazer ouvir pelos maiores interessados: aqueles que seriam os responsáveis pelos inventários de oferta cultural. Acomodação reverente para discutir cânones estabelecidos de autoridades socialmente consagradas?

De qualquer forma, é preciso acrescentar reiterando que, a noção de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tal qual se constituiu no final dos anos trinta, é datada e inadequada para apreender o que entendemos hoje por patrimônio e, por extensão, atender adequadamente aos inventários de atrativos culturais. Mas não se podem atribuir responsabilidades de sua permanente repetição aos agentes comerciais do Turismo. Práticas comerciais e de venda apropriam-se das informações disponíveis para se articularem. Também não se pode esperar que a memória social constituída tenha fundamentos idênticos aos da História ou entenda a preservação e o tombamento em sua diacronia e nos elementos que lhes são intrínsecos.

Mas é preciso reatar o discurso histórico, superando esta conclusão parcial, em direção à segunda metade do século XX para entendermos o conceito contemporâneo de Patrimônio correlacionado ao Turismo.

Um outro tempo e uma outra noção de patrimônio cultural.
A segunda metade do século XX é assinalada por enormes transformações mundiais. Não é preciso dizer que os anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra mobilizam a opinião pública mundial, a dos vencedores ao menos, sobre as exacerbações do nacionalismo que teriam se cristalizado em ideologias desencadeadoras do conflito. É claro que as boas intenções de instâncias mediadoras internacionais se frustram com a bipolarização da política mundial e suas conseqüências. Como desdobramento e antídoto da intolerância nacionalista, os estudos acadêmicos, sobretudo os antropológicos, desenvolvem um notável esforço para entender a natureza da cultura dissociando-a de aspectos raciais, valorizando e ampliando extraordinariamente o campo da cultura material de populações e civilizações até então marginalizadas e, potencialmente, do patrimônio cultural.

Por sua vez, na esteira da referência anterior, criou-se a Unesco com sede em Paris, ambicionando tornar conhecidas e compreensíveis a alteridade das culturas humanas e a sua irredutibilidade às comparações com sociedades cujo aparato tecnológico fez delas hegemônicas econômica e politicamente. Este organismo das Nações Unidas, para a educação, ciência e cultura, promoverá e estimulará por sua vez, a realização de eventos internacionais responsáveis pela orientação das medidas de proteção e restauro.(adotadas por diversos países, inclusive o Brasil, ao menos como signatário).

Talvez o divisor de águas do conceito de patrimônio contemporâneo, ou a passagem de “monumento histórico” para patrimônio cultural seja assinalado pela Carta de Veneza, que resultou da reunião patrocinada pelo ICOMOS (Conselho Internacional para Monumentos e Sítios) em 1964 10. A reunião assinala o aprofundamento dos princípios estabelecidos pela Carta de Atenas - primeira reunião internacional- realizada em 1931 sob o patrocínio da Liga das Nações, da qual a ONU e por extensão a UNESCO são as sucessoras. Com a Carta de Veneza ampliam-se consideravelmente os cuidados com o patrimônio, do monumento isolado para o território e a paisagem dentro dos quais ele se constitui. Aos elementos conceituais de restauro e reabilitação recomenda-se a utilização de materiais contemporâneos, aconselhando-se também a manter as intervenções identificadas em datas pretéritas11.

Estes acontecimentos são, por sua vez, resultado da industrialização crescente e em escala desconhecida até então. Disto resultou a degradação do meio ambiente e as ameaças ao patrimônio já constituído (os monumentos da antiguidade clássica são danificados pela poluição atmosférica, por exemplo). Ao mesmo tempo, inúmeros equipamentos foram relegados ao desuso e tornados descartáveis, quando poderiam vir a figurar no rol dos bens patrimoniais. Não se pode omitir que a consciência da perda eminente é um dos elementos catalisadores das medidas de preservação. A contradição foi observada por André Chastel, historiador da arte francês: “Sabemos o que é patrimônio diante do fato de sua perda eminente constituir um sacrifício para nós e por sua vez, a conservação dele, nos impor sacrifícios”. Corolário da industrialização, a necessidade do lazer e do Turismo como imperativos sociais irá impor-se de maneira tal a tornar-se objeto de estudo. É preciso recordar que entre os organismos das Nações Unidas também irá figurar a OMT, com sede em Madrid.

O Turismo que se esboçou historicamente como prática aristocrática, tendo como atrativo fundamental os produtos culturais do passado, tornando-se posteriormente um hábito difundido entre a burguesia, tornava-se por sua vez, em finais da década de sessenta do século XX, um fenômeno de massas integrante da indústria cultural.

Todavia é preciso resguardar-se das generalizações: não é possível, mesmo hoje, atribuir as mesmas dimensões do fenômeno ao Brasil. Creio que é característico dos Estados Unidos e de um número razoável de países da Europa. Neste último caso se tomarmos a Itália, por exemplo, com suas profundas diferenças entre Norte e Sul, é duvidoso considerá-la como país emissor de forma homogênea ainda que isto não figure e possa ser considerado importante em estatísticas mais genéricas. Desta forma, no Brasil, o turismo de massas seria mais acessível às classes médias dos grandes centros urbanos e das metrópoles. De qualquer maneira, guardadas as proporções, o crescimento urbano; as necessidades de evasão; o acesso aos meios de comunicação e de transportes, mais rápidos e mais baratos, nos integrou às necessidades e aos desejos de consumo da sociedade industrial.

Das relações entre Turismo e Patrimônio, anteriormente recônditas em relatórios internos de governo, em tentativas nacionais restritivas e pouco transparentes surgem recomendações internacionais preconizando a institucionalização e normalização do valor econômico do Patrimônio para o Turismo.Tais observações são notáveis principalmente nas “Normas de Quito” de l967, reunião promovida pela Organização dos Estados Americanos. O capítulo VII daquela Carta enfoca de forma direta, e com a denominação que se segue, “Os monumentos em função do Turismo”. Nele destaco especialmente o item seis que re-qualifica o bem patrimonial em razão do Turismo: “... na medida em que, o monumento possa servir ao uso a que se lhe destina já não dependerá apenas de seu valor intrínseco, quer dizer, da sua significação ou interesse arqueológico, histórico ou artístico, mas também das circunstâncias adjetivas que concorram para ele e facilitem sua adequada utilização. Daí que as obras de restauração nem sempre sejam suficientes, por si só, para que um monumento possa ser explorado e passe a fazer parte do equipamento turístico de uma região...” 12. Com exagero flagrante e alguma ingenuidade, fala-se dos países europeus “que devem sua presente prosperidade ao turismo internacional e que contam, entre suas principais fontes de riqueza, com a reserva de bens culturais” 13. Descontados os laivos de retórica messiânica, aponta-se claramente para a ausência de políticas públicas eficazes para deter a destruição dos bens impedindo os benefícios econômicos às nações americanas. As referências não repousam mais exclusivamente nas políticas do passado articuladas em torno do antigo conceito de patrimônio. O texto não traduz com a clareza desejável um aparato conceitual preciso. Mas é nessa imprecisão que se percebe a tentativa de propor novas políticas em meio aos escolhos do que ainda se denomina “patrimônio monumental”. Há um desejo manifesto de ampliar o círculo de fruição dos bens “das minorias eruditas para as minorias populares”. Com isto, ainda que possa pesar o viés de popularização, não se ausenta a preocupação de aumentar e massificar os consumidores otimizando os lucros dentro da ótica de racionalidade capitalista. Deixam de acrescentar, porém, os redatores do documento, como iriam os populares identificar-se com algo que lhes poderia ser alheio.

Com a Declaração de São Domingos em 1974 também patrocinada pela OEA, figura o Turismo como meio para a preservação do patrimônio. E, mencionando os “planos de desenvolvimento turístico” se deduz alcançar por meio deles a “preservação do patrimônio cultural americano”.14

Claro que não se poderia esperar que todo o discurso vá transfigurar-se necessariamente em prática. Existe uma defasagem entre um e a outra que, em alguns casos, jamais será ultrapassada. Tudo isto deve ser entendido como resultado de anseios sociais cristalizados em recomendações. De qualquer maneira alguma atenção sobre o nome do encontro internacional dá bem a medida da mudança do conceito de patrimônio: a referência do seminário recai sobre o “patrimônio dos períodos Colonial e Republicano”. E é sabido que esta periodização pode ser vigente para todo o continente, exceto o Brasil com a sua monarquia exótica. Mas ainda assim, este período republicano da América espanhola que se inicia por volta das duas primeiras décadas do século XIX e tem sua continuidade até o instante da elaboração do documento, pode indicar um deslocamento do conceito de História. Recupera-se o passado mais recente e, por conseqüência, os produtos e artefatos da cultura material que seriam eventualmente contemporâneos dos autores do documento. Agora outros bens adquirem a dignidade que os coloca em paralelo às relíquias coloniais.

Patrimônio e Turismo: Brasil ou brasis?

Em 1967, Rodrigo Melo Franco Andrade aposenta-se do agora SPHAN (as denominações variam em razão das qualificações administrativo-burocráticas).Em essência, o órgão permanece com a mesma atribuição: formular as políticas de conservação e preservação. A saída de Rodrigo, após trinta anos à frente do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional assinalou algumas perspectivas de mudança no enfoque anterior, além de deixar transparente as dificuldades, diante das transformações que não são apenas internas ou regionais, relativas ao novo modelo de desenvolvimento brasileiro. Este modelo, a despeito de sua aparência autonômica, se insere em escala muito maior, internacional, dentro das concepções desenvolvimentistas das áreas de capitalismo tardio. Não é por acaso que a discussão dos documentos internacionais antecede este tópico. Assim, “...o caráter marcadamente cultural da atuação do SPHAN revela-se inadequado ao novo modelo de desenvolvimento” pois, “as conseqüências para a preservação repercutiram não apenas no nível simbólico - na medida em que essa ideologia se contrapunha à continuidade e à tradição- como nos níveis econômico e social – devido ao intenso processo de migração para as capitais e a valorização do solo urbano, desarticulando processos espontâneos de preservação do patrimônio, tanto o edificado como o paisagístico.” 15

Em fins da década de Sessenta, seguindo recomendações oriundas de eventos nacionais, entram em cena as agências estaduais para a preservação do patrimônio. Não tenho subsídios para discutir aquelas que eventualmente surgiram no período, exceto o CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo). A publicação de um anexo do Compromisso de Brasília, originária do Primeiro Encontro de Governadores de 1970, assinado por Lúcio Costa, nos diz das intenções e dos rumos pretendidos: “... é, pois, chegado o momento de cada Estado criar o seu próprio serviço de proteção vinculado à universidade local, às municipalidades e à DPHAN, para que assim participe diretamente da obra penosa e benemérita de preservar os últimos testemunhos desse passado, que é a raiz do que somos – e seremos.” 16

A primeira coisa que é possível ressaltar são as aspirações de continuidade, nos Estados, da política do órgão federal. Desse nosso passado eterno, pensando em termos estaduais, dessa raiz ou identidade estaria excluída a imensa maioria da população paulista, por exemplo. Por outro lado, o patrimônio gerado pela industrialização, àquela altura, quase secular na Cidade e em diversas áreas do Estado, não teria, dentro deste discurso, qualquer significado simbólico. Nas áreas rurais as aglomerações originárias da imigração, as colônias, não seriam dignas de preservação, por não se ajustar ao complexo “barroco-escravista”.

Embora o CONDEPHAAT já tivesse sido criado entre 1968-1969, pouca ou nenhuma diferença da fala de Lúcio Costa deve ter presidido sua criação. No caso de São Paulo o velho conceito é re-alocado na variação regional ufanista dos bandeirantes e os seus equipamentos, nas pouquíssimas igrejas seiscentistas ou setecentistas com linguagem barroca simplificada e modesta que retratavam a pobreza do território da Capitania e da Província, ao menos até o penúltimo quartel do século XIX. Corroborando isto, o primeiro tombamento do órgão paulista incide sobre o sino que anunciou a independência e a chegada do príncipe a São Paulo em 1822! Sua localização era e continua sendo desconhecida- e irrelevante- para a maioria da população, isto porque a antiga Sé fora demolida no início do século XX.

Seria ilusão acreditar que a denominação Turismo tivesse algum dia, ainda que remotamente, preocupado ou sequer sido alvo de cogitação em qualquer processo de tombamento ou restauro (dentro do pouco que se conseguiu fazer). Turismo é parte integrante do nome, pois nos remete à antiga Secretaria de Estado de Cultura, Esportes e Turismo. (Hoje, o Condephaat pertence à Secretaria da Cultura). A participação preconizada das Universidades limita-se à representação de alguns membros delas em Conselho.

Se a situação foi esta e nada indica que algo se haja alterado no espectro político-administrativo ao menos nos últimos vinte anos, sob o ponto de vista conceitual, os olhares e a ação dos técnicos oriundos da área de ciências sociais e humanas, conseguiu modificar o discurso unívoco dos arquitetos, contínua e permanentemente centrado em aspectos construtivos excepcionais. A História sempre se colocou para a maioria, como um dado complementar e secundário, o recheio para legitimar aquilo que se julgava digno de preservação.

Ainda na área estadual, creio que nada haveria para falar da outra secretaria, a de Turismo. Neste terreno parece que ignorar a existência uma da outra é a regra. Quando há alguma ação dos responsáveis pelo fomento e gestão da cultura e do turismo, creio que as informações entre eles devem ser obtidas através da mídia. O traço básico e fundamental é a absoluta ausência de qualquer coordenação e de política coerente e solidária. Diante disso, é preciso perguntar qual poderia ser a instituição e a instância capaz de influir sobre a destinação do Patrimônio como atrativo cultural maior para o Turismo e o Lazer.

Seria injusto, porém, admitir que o órgão federal para a preservação do patrimônio, não tivesse se empenhado em transformações reconsiderando o velho conceito, clássico, do Patrimônio. Tentou-se em outra gestão, a de Aloísio Magalhães, uma série de modificações que, no entanto, sempre tinham como fim último, a velha questão da identidade nacional brasileira ou os valores mais autênticos da nacionalidade.16 Ainda que se trate mais recentemente de destacar os bens de produção popular ou o enfoque recentíssimo do patrimônio imaterial - em que pese a denominação ambígua para estes produtos efêmeros, tenho uma certa dificuldade em pensar a gastronomia, por exemplo, como algo imaterial, pois, estou habituado a pensar que dados imateriais são internalizados- já com a existência do Ministério da Cultura, não há eficácia real para dar conta da pluralidade cultural existente em todo o Brasil.

Nada poderia ser mais representativo da permanência e continuidade da “velha questão da identidade brasileira” do que reproduzi-la através do conceito clássico barroco-modernista – uso aqui como elemento de definição duas classificações descontínuas por serem os modernistas os responsáveis pela valorização do barroco ao mesmo tempo em que se consideravam os sucessores daqueles antigos mestres e artífices - nos bens do Patrimônio Mundial. Como é sabido o processo decorre da Convenção de Paris em 1972.18 A tipologia escolhida para a representação do Brasil – é o país que determina o que será apresentado à UNESCO e é o responsável pelo dossiê elaborado por brasileiros – além das paisagens e parques nacionais recorre aos sítios do “barroco-colonial” 19 e ao modernismo (além do plano piloto de Brasília, a próxima apresentação será o Palácio Capanema, antigo edifício do Ministério da Educação e – Saúde Pública - no Rio de Janeiro).

Diante da cristalização em torno deste universo, a multiplicidade da oferta potencial de bens patrimoniais para o turismo cultural é ignorada. A oferta dos bens já consagrados equivale à demanda, por absoluto desconhecimento - nacional e internacional- de outras possibilidades.

Cabem aqui duas derradeiras considerações sobre o nacionalismo, ou sobre esta necessidade da busca da identidade brasileira que está nos fundamentos do patrimônio no Brasil, assim como ao tradicionalismo.

Sobre a identidade nacional e por extensão o nacionalismo, temas sempre candentes, dois aspectos deveriam ser notados. O primeiro seria considerar a historicidade do nacionalismo, isto é, o fenômeno surgiu na medida em que surgiram os Estados Nacionais em fins do século XVIII. O conceito é desconhecido no antigo regime. Em segundo lugar, considerando os duzentos anos que nos separam do período mencionado, há uma grande variabilidade de nacionalismos, ou de identidades nacionais que se propõem no tempo e no espaço. Acrescento que além dos elementos salientados, também não é tarefa fácil definir o que é uma nação. Talvez poucos assuntos sejam tão controversos.

O conceito de identidade nacional que surge com o fim da Primeira Guerra e se estende até meados do século, (quando se delineia o nacionalismo que preside o conceito clássico de patrimônio brasileiro) não tem mais significado nos dias atuais. Sugiro considerarmos a leitura de Eric Hobsbawm, “Nações e Nacionalismo”.

Se na leitura a que se fez menção não há nada de conclusivo, ela é, por outro lado, extremamente instigante para pensarmos o problema e refletirmos sobre a inadequação daquele conceito nos dias atuais, como fulcro ou “raiz” para a escolha dos bens patrimoniais, pois, “... nação e nacionalismo não são mais termos adequados para as entidades políticas descritas como tais, e muito menos para descrever sentimentos que foram descritos, uma vez, por estas palavras. (...) ser inglês, ou irlandês, ou judeu, ou uma combinação desses todos, é somente um dos modos pelos quais as pessoas descrevem suas identidades, entre muitas outras que elas usam para tal objetivo, como demandas ocasionais.” 20.

Se a citação acima pode ser aplicável a uma grande unidade territorial como o Brasil, não é preciso dizer o que tem de oportuna a advertência para unidades como os Estados. No caso brasileiro, mesmo os Estados têm enormes extensões territoriais com paisagens físicas e humanas extremamente diversificadas e complexas. Deslocamentos populacionais em massa para construção de grandes obras, expansão das fronteiras agrícolas; vilarejos, cidades de grande porte e capitais com vastas áreas metropolitanas, também são fatores a serem ponderados. Nossos Estados são conjuntos de grande heterogeneidade e, além disso, características culturais não se acomodam facilmente aos limites das fronteiras políticas estaduais...

Quando pensamos em identidades temos, também, um permanente re-fazer. É justamente este refazer, este vir-a-ser, que capta dinamicamente a História e que pode e deve ser apreendido nas múltiplas manifestações materiais que constituem o nosso patrimônio. Sem nos esquecermos que todos têm voz e vez. Inclusive os brasileiros não-luso-brasileiros e os marginalizados pelas elites luso-brasileiras: os não brancos. É justamente isto, a integração de todos, que faz o nosso diferencial cultural, e que pode ser apropriado vantajosamente pelo Turismo.

Creio que não é ocioso acrescentar que nem todos os bens patrimoniais têm o mesmo grau de interesse como atrativos. Há os de alta, média e baixa atratividade. E há, por outro lado, a possibilidade da combinação destes conjuntos considerando sua proximidade no espaço e o tempo para visitação.

Entendendo o Patrimônio nas suas relações com o Turismo no exterior, pode-se observar a tendência de constante crescimento e diversificação da oferta cultural de bens patrimoniais entre os países receptores europeus. Poderíamos pensar no caso brasileiro em circuitos clássicos, e em novos circuitos e destinações com este tipo de oferta? 21

Finalmente, a tradição e o tradicionalismo. Mais uma vez remeto o leitor ao historiador inglês Eric Hobsbawm. Desta feita, ele figura como organizador e um dos colaboradores do livro. Trata-se de A invenção das Tradições. Com esta leitura ficamos sabendo que o imemorial saiote (kilt) escocês: “... é uma vestimenta absolutamente moderna, idealizada e vestida por um industrial inglês, que não o impôs aos montanheses (da Escócia) para preservar o modo de vida tradicional deles, mas para facilitar a transformação deste modo de vida: para trazê-los das urzes para as fábricas” 22. Os antigos mantos que cobriam todo o corpo e eram atados na cintura eram incômodos para o trabalho nos fornos. Eis aí a origem de uma das mais caras tradições escocesas!

Nesta mesma vertente é possível recordar que as tradicionais paisagens das praias brasileiras com os seus coqueirais, não se apresentaram assim para os descobridores. Eram repletas de cajueiros e nenhum coqueiro. Esta última espécie foi transplantada da Índia para o Brasil. Da mesma forma, algumas franjas do litoral indiano estão repletas de cajueiros levados pelos portugueses do Brasil, assim como eles importaram do subcontinente indiano, “nossos tradicionais coqueiros”. No entanto, nosso imaginário está tão vincado por estas vistas que já as incorporamos como nossas. Acaso iríamos rejeitá-las, por não serem autênticas? Deveríamos erradicar as espécies exóticas e restabelecer a paisagem original? Elas, as vistas com os seus coqueiros, retratam as marcas e as necessidades do seu tempo. Além disso, as espécies exóticas se aclimataram e dão bons frutos. É também o caso das mangueiras, abacateiros, jaqueiras, etc.

Seria o caso de nos perguntarmos da legitimidade de rejeitarmos as paisagens urbanas e os seus equipamentos que traduzem tanto as necessidades e aspirações do seu tempo, e se adaptaram a uma visão-de-mundo brasileira tanto quanto o consagrado “barroco colonial”. São duvidosos e pouco producentes os resultados para o Turismo, quando nosso olhar guiado exclusivamente pelo conceito clássico de patrimônio histórico e artístico nacional, repousa sobre uma infinidade de artefatos e objetos para descartá-los como inúteis, tornando-os passíveis de destruição.

Considerações Finais

Ao alinhar considerações sobre órgãos públicos - pouco importando a que esferas concernem, federal, estadual ou municipal – é preciso sublinhar que as críticas não são absolutamente dirigidas ao papel exercido pelo Estado enquanto instância de poder. Pode-se criticar a formulação das políticas ou a deplorável ausência delas; a falta de coordenação entre as diversas áreas onde a atuação deveria ser recíproca; a precária infra-estrutura e destinação de meios para o trabalho funcional. Em nenhum momento se deve desqualificar o Estado enquanto instrumento responsável pelo fomento; sustentação; coerção e repressão; ou condução das políticas, tanto para o patrimônio cultural quanto para o turismo.

Os atos de tombamento; o embargo de interferências consideradas danosas sobre os bens patrimoniais; a desapropriação de móveis ou imóveis segundo os interesses sociais (notórios e comprovados) permanecem atribuições do Estado e emanam do direito público. E, da mesma forma que compete ao Estado o agenciamento de áreas públicas para o lazer no contexto do planejamento urbano, também é da sua atribuição estabelecer políticas de fomento e controle das atividades turísticas. Tendo em conta, sobretudo, o fato de ser o turismo um fenômeno caracterizado pela apropriação e transformação do espaço. Ou seja, ainda que sejam rentáveis para os indivíduos, ou grupos de indivíduos, a ausência de controle e direcionamento daquelas atividades, pode redundar em danos ambientais irreparáveis.

Também não é preciso dizer como é frágil a maioria dos bens tombados ou simplesmente preservados, considerando que boa parte das vezes é reabilitada para destinação de outros usos.

Em nenhuma circunstância é possível sucumbir aos delírios neoliberais, ou confundir direito público com direito privado. É claro, porém, que o Estado não deve possuir o monopólio de todas as ações e das práticas. Há papéis que devem ser bem delineados. Políticas e estratégias dependem de aparato conceitual o que é, e deveria ser, atribuição da Universidade. Note-se, porém, que a Universidade é um foro ideal para a produção de conhecimento, e não a instância singular e única.

A discussão - permanente- do aparato conceitual que envolve definições tanto para o patrimônio quanto para o turismo, e as relações entre eles, é tarefa acadêmica. Ao mesmo tempo em que a Universidade deve ser sensível às demandas sociais discutindo-as, também lhe compete discutir as ações governamentais e as práticas, ou o agregado de práticas vigentes no mercado. E a necessidade de difusão dos resultados obtidos é uma forma de responder às demandas sociais a que se fez referência.

Contudo, é preciso observar que a discussão conceitual pertence ao terreno da pesquisa básica. Melhor dizendo, ela assenta os fundamentos para este tipo de pesquisa. Com isto produz-se um hiato ou uma lacuna que tende a qualificar consensualmente este gênero de conhecimento como perda de tempo, pois, “na prática, a teoria é outra”. Advém daí outra tarefa que é completar ou preencher o vazio entre a teoria e a prática com pesquisas aplicadas, cujos conceitos re-trabalhados, adquirem contornos operacionais.

Na verdade há fatores de tempo distintos que envolvem as duas modalidades, ou seja, o tempo da reflexão e o tempo de elaboração, aplicação e coleta de dados. Todavia isto não é o bastante. É preciso, sempre, avaliar retrospectivamente as ações, aferir resultados e procurar ajustá-los às novas inquietações e necessidades. E da avaliação retrospectiva não se deve furtar também, a própria Universidade enquanto instituição produtora de conhecimentos.

Contudo, as dimensões de tempo da pesquisa, estruturais enquanto permanência e maior duração e conjunturais, mais voláteis e descartáveis, não podem ser confundidas com o tempo necessário às decisões, sobretudo aquelas de caráter público, político-administrativo, privilégio do Estado e dos seus agentes. Finalmente há um outro tempo a ser considerado, aquele dos negócios, no qual e do qual depende o sucesso ou o fracasso das empreitadas, que implica riscos de perdas ou possibilidades de lucro, e que não pode ou deve ser omitido.

E, se o papel de coordenação das dimensões distintas de tempo não compete à Universidade, ele é atribuição dos seus agentes multiplicadores, os planejadores e organizadores do Turismo.
 
1 Doutor em História Social FFLCH/USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp – NEE/UNICAMP. Autor de Patrimônio Histórico Cultural. 3ª. Edição, Editora Aleph. Editor da Revista Eletrônica “Patrimônio: lazer & turismo” (www.unisantos.br/pos/tur. - ISSN: 1806-700X). Coordenador e Professor de Cidade e História: Patrimônio, Lazer e Turismo, curso de Pós-Graduação da UNISANTOS (Universidade Católica de Santos/SP).

2 Krippendorf, Jost - Sociologia do Turismo: Para uma nova compreensão do lazer e das viagens. Rio de Janeiro: Ed. Civ. Brasileira, 1989.

3 Beni, Mário C. - Análise Estrutural do Turismo. 2a. ed. S. Paulo: Ed. Senac SP, 1998.

4 Camargo, Haroldo L. - “Fundamentos Multidisciplinares do Turismo” In Trigo, L.G.G.(org.) Turismo. Como apreender, como ensinar, 1/ -2a. ed .- S. Paulo: Ed. Senac SP, 2001.

5 A teoria dos valores relacionados ao Patrimônio foi desenvolvida por Aloïs Riegl em Das Moderne Denkmal Kultus, publicado em 1903. Seu sistema é retomado e discutido por Choay, Françoise – a autora é responsável também, pela tradução de Riegl do alemão para o francês. V. Camargo, H. L. – Resenha Crítica: “A Alegoria do Patrimônio”. In Revista de Pós-Graduação-Unibero, São Paulo, 200l. Sobre o valor econômico no sentido estrito do termo, V. Greffe, Xavier- La valeur Économique du Patrimoine; la demande et l’offre de monuments. Paris: Anthopos, 1990

6 Foi o responsável pela criação do neologismo, usual e bastante conhecido hoje, “vandalismo”. Henri Grégoire (1750-1831). Deputado do clero nos Estados Gerais de 1789 aliou-se ao Terceiro Estado. Juramentado à Constituição civil do clero, tornou-se posteriormente, bispo constitucional de Blois.
A escolha dos vândalos, como de resto todos os outros “bárbaros” não corresponde à verdade relativa às destruições do que hoje consideraríamos patrimônio. É de fato, elemento da memória social constituída.

7 Choay, op. cit. , p. 99.

8 Idem, nota (53), cit. 108.

9 Publicada no Rio de Janeiro em l941-42; na seqüência, em 1943, com a denominação “This is Brazil”.

10 Cury, Isabelle – Cit. p. 91-95.
10 Idem.

12 Cury, p. 115.

13 Idem, idem.

14 Cury, p. 197.

15 Fonseca, Ma. C. L.- cit. p. 159-175.

16 Cury, cit. p.141.

17 Magalhães, Aloísio, apud Fonseca cit. p.171.

18 Cury, cit. p. 177-193.

19 A denominação “barroco-colonial” tornou-se senso comum. Uso barroco-escravista, pois os partidos construtivos mantêm-se não porque se situem no período colonial mas porque se apóiam conceitualmente em características da sociedade escravocrata, que não se restringe à Colônia.

20 Hobsbawm- “Nações...” cit. p.215.

21 Patin, op. cit. p.24.

22 Trevor-Roper Hugh- “ A Invenção das Tradições: a Tradição das Highlands”. P. 33, in Hobsbawm (org.).