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Artigo
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A Casa de Frontaria Azulejada e suas possibilidades turísticas: uma abordagem arqueológica
Alexandre Assis1
 
RESUMO: O artigo trata da falta de consciência em relação ao potencial da arqueologia para o desenvolvimento do turismo cultural, enfocando o caso da Casa de Frontaria Azulejada, edifício do século XIX, situado no centro histórico da cidade de Santos, e que até hoje não mereceu a devida atenção para um projeto de pesquisa adequado que decididamente contribuísse para transformar o local num atrativo diferenciado e à altura de sua importância.


ABSTRACT: The article talks about the lack of conscience between archaeology research potential and tourism business. The subject-matter is a XIX Century Building called "Casa de Frontaria Azulejada", located in Santos downtown city. Until this moment, the edification has not been received the attention that it deserves based on its historical importance. It's necessary a proper research project that converts it as an appeal and distinct site that draws the public and at the same time increases the historical value of it.




Introdução

Este trabalho tem o objetivo de propor uma reflexão sobre o turismo cultural desenvolvido na cidade de Santos, articulando-o com a importância da valorização da ciência arqueológica. Para tal, escolhi o caso da Casa de Frontaria Azulejada, localizada na Rua do Comércio n° 92/98, edificada em 1865, e que hoje abriga a sede do Arquivo Permanente da Prefeitura Municipal de Santos.

Fruto das reflexões extraídas nas aulas de Patrimônio Cultural, Lazer e Turismo: uma abordagem arqueológica: Dimensões culturais, conhecimento e técnicas para o Lazer e Turismo, da pós-graduação Cidade e História: Patrimônio, Lazer e Turismo2, procurei organizar este estudo da seguinte maneira: 1. A Rua Santo Antônio, onde através de um exercício de memória, procuro contextualizar o espaço no qual edificou-se o patrimônio escolhido para análise; 2. A Casa de Frontaria Azulejada: um caso turístico e arqueológico, no qual discuto as contradições do turismo histórico calcado em mitos construídos por discursos oficiais e proponho a valorização da prática arqueológica para o benefício da revitalização real da memória. Por fim, nas 3. Considerações Finais, procuro fazer um balanço da experiência das aulas aliada ao tema deste trabalho e alertar para a necessidade da mudança de atitude em relação à forma de entender o turismo numa cidade marcada pelas questões de maritimidade.

A pesquisa foi realizada na Sala de Leitura Catarina de Aguillar, na sede da Fundação Arquivo e Memória de Santos, onde foi possível entrar em contato com alguma documentação referente ao assunto, bem como foi utilizada a bibliografia indicada no curso.

É fundamental destacar que este é apenas um exercício de reflexão acerca dos temas propostos em aula, ou seja, é apenas um ponto de partida para estudos mais aprofundados sobre a Casa de Frontaria Azulejada na ótica do turismo e da arqueologia.


“A lógica dos primeiros tempos era a seguinte: tudo o que nós não podemos compreender ou explicar é obra imediata da Divindade.”
(José Bonifácio de Andrada e Silva)





A Rua Santos Antônio

A antiga Rua Santo Antônio, atual Rua do Comércio, localizada no Centro Velho da cidade de Santos, litoral de São Paulo, começa na Praça Rui Barbosa e termina no Largo Marquês de Monte Alegre, junto ao Santuário do Valongo.

Sua importância remonta ao período colonial, devido à proximidade com os antigos caminhos de mercadores que levavam à cidade de São Paulo dos Campos de Piratininga.

Não foi à toa, portanto, que a população ali estabelecida logo nos primeiros tempos da ocupação portuguesa no litoral paulista, formava uma, por assim dizer, casta de privilegiados negociantes, uma vez que a referida rua circundava (e até hoje circunda), um dos mais importantes trechos do cais santista, além de sua proximidade com o planalto, ávido pelas mercadorias chegadas do reino e de outras paragens, via mar, sempre à espera das destemidas (e caras) escaladas de mercadores serra acima.

São várias as referências bibliográficas sobre uma certa diferenciação social entre os moradores do Valongo, no qual se inclui a Rua do Comércio, formada pela elite da sociedade santista, e os habitantes do antigo Bairro dos Quartéis, junto ao Outeiro de Santa Catarina, na outra extremidade do cais, onde viviam os soldados e funcionários públicos de pouco ou nenhum cabedal, além de mestiços e gente considerada de “baixa estirpe”.

Com o passar dos anos, após o incremento da indústria açucareira no Nordeste, a cidade e região viveram um período de pobreza e ostracismo econômico, que só terminou com o advento daquilo que ficou conhecido pelos historiadores como o “segundo ciclo do açúcar”.3

Quem se beneficia diretamente com as medidas do Morgado de Mateus são os comerciantes, principalmente portugueses, que residem e atuam na Rua Santo Antônio, naturalmente, aproveitando-se de sua influência político-econômica na exploração dos antigos trapiches e demais instalações no cais da área do Valongo, a mais importante de Santos no período.

Melhorias para facilitar a exportação do açúcar foram implantadas pela administração colonial, tais como a construção da Calçada do Lorena, inaugurada em 1792, a primeira via de ligação pavimentada entre São Paulo e Santos.

Toda esta tradição comercial da Rua Santo Antônio4 desaguou no processo de expansão da economia cafeeira. Aproveitou-se toda a estrutura do bairro e de seu cais, estrategicamente posicionados na “porta de entrada” de Santos via planalto e vice-versa.

No Valongo foi construída a estação da ferrovia Santos-Jundiaí, explorada por quase um século pelos ingleses com o nome de São Paulo Railway Co. Sua inauguração aconteceu em 1867 e assim se modernizava o escoamento da produção do “ouro verde”5 e demais produtos para o exterior através do porto de Santos.

O próprio fluxo de imigrantes se deu por esse caminho. Dá para se imaginar, portanto, a importância da fixação de residências e escritórios de comércio, exportação e importação em geral na área do Valongo. Ou seja, era ali que tudo estava acontecendo, mais precisamente na Rua de Santo Antônio.




A Casa de Frontaria Azulejada: um caso turístico e arqueológico

No contexto do processo de acumulação de capitais oriundos dos negócios de exportação e importação de mercadorias em Santos, destacou-se a figura do comerciante português Manuel Joaquim Ferreira Netto que, aliás, tornou-se também comendador.



Fotografia: Mônica Yamagawa



Para se ter uma idéia da riqueza de Ferreira Netto, vale a pena observar o relatório elaborado pelo GEPAS6 (Grupo de Estudos do Patrimônio Histórico Santista) sobre a Casa de Frontaria Azulejada, onde é destacada a relação de bens deixados aos herdeiros do comendador:

“...1000 ações do Banco do Brasil, 200 ações do Banco Mauá Mc Gregor & Cia., 300 ações da Cia Amazonas, 20 ações da Cia. União e Indústria, 64 ações da Cia. Feliz Lembrança, 1 ação do Cassino, metade do Vapor Paulista, Casa da Rua Santo Antônio, Casa do Porto do Bispo, Chácara no Morro da Misericórdia, Sítio Cabuçú, 5 armazéns na rua do Sal n.º 9, 11, 13, 17 e 19, Casa de Sobrado à Rua Santo Antônio n.º 41, Casa do Jundiaí, Casas e Armazéns de Campinas em Santa Cruz, e Casa do Páteo da Matriz em Campinas.” ( p. 1 ).

A Casa de Frontaria Azulejada, localizada na numeração atual da Rua do Comércio n.º 92 / 98, é um patrimônio tombado nas esferas municipal, estadual e federal e, desapropriado pela prefeitura, abriga hoje a sede do Arquivo Permanente da Fundação Arquivo e Memória de Santos.7



Fotografia: Mônica Yamagawa



O edifício é um sobrado revestido em sua fachada com azulejos em alto relevo, típicos das regiões litorâneas. Tudo indica que foram colocados na casa após a morte do comendador. Quem teria realizado tal revestimento seria seu sócio, Luiz Guimarães.

O imóvel chama a atenção de quem passa pela Rua do Comércio, principalmente pela imponência do estilo neoclássico, característico do Segundo Império, sua grandiosidade, devido à enorme quantidade de quartos no pavimento superior, suas portas altíssimas em forma de arco, e dos próprios azulejos, que destacam a edificação das demais.

Além de abrigar a sede do Arquivo Permanente da prefeitura, a casa é um importante atrativo turístico e tem sido utilizada para eventos tais como exposições e até mesmo para festas destinadas ao público jovem que tenta redescobrir o Centro antigo da cidade.

Variadas tentativas de descrever o estilo arquitetônico do prédio, sua data de construção, sua destinação, materiais utilizados, entre outros dados, são encontrados na escassa bibliografia histórica sobre a cidade de Santos, nos folhetos de divulgação turística e na própria mídia.8

O foco de meu interesse, no entanto, é discutir a ausência da arqueologia no contexto do aproveitamento turístico deste local, fugindo das repetitivas considerações a respeito do imóvel, baseadas em “achismos” e argumentos infundados.

Desta forma, entendendo a arqueologia como uma ciência que deve atuar considerando o contexto social, a distribuição espacial, ou seja, investigar e analisar determinado caso no sentido global, prefiro, iniciar minha crítica partindo da própria justificativa do CONDEPHAAT13 para o tombamento da Casa de Frontaria Azulejada:

“...Em sessão da Câmara Municipal de Santos de 18/02/1863, Ferreira Netto apresentou a planta da casa que pretendia construir. (...) Mandado construir em 1865.(...) Foi construído...para residência, armazém e escritório da Casa do Comércio Ferreira Netto Companhia. (...) sob o impulso da exportação cafeeira, a cidade desenvolveu-se à partir dos meados do século XIX. O edifício expressa assim, todo um contexto, a importância do setor terciário no desenvolvimento das forças econômicas locais e regionais.”9

Com o processo de gradativo abandono do Centro antigo de Santos no início do século XX - quando a elite, que antes residia naquela região em seus palacetes, vai habitar lugares mais valorizados tais como o Paquetá e a orla marítima da cidade -, o grande sobrado do comendador, assim como todo o conjunto arquitetônico da Rua do Comércio, ficam esquecidos à própria sorte, sofrendo todos os tipos de ações de vandalismo.

Na segunda metade da década de 80 do século passado, alguns indícios acenam para a necessidade da preservação do Centro histórico, devido à insistência nas denúncias e alertas feitos pela própria comunidade acadêmica da região, que encontra o apoio da mídia local. Um exemplo é a reportagem publicada em 19 de março de 1985, no jornal A Tribuna: “Casa azulejada de 1865, ameaçada de demolição”. Na ocasião, o jornal santista denunciava que o proprietário do imóvel ameaçava demolir o sobrado.

Considerando-se que já era um patrimônio tombado pelo então SPHAN10, fica evidente a forma como eram consideradas pela sociedade as questões relacionadas ao acervo histórico da cidade.

Acionado pela comunidade acadêmica, o SPHAN impediu que o proprietário do casarão demolisse o imóvel e parasse de utilizá-lo para guardar fertilizantes, provocando assim o abandono definitivo.

Desapropriada pela prefeitura em 1986, a Casa de Frontaria Azulejada estava quase totalmente destruída, sem o teto e piso superior. Os azulejos quase todos arrancados, um cenário desolador.

Iniciou-se então o trabalho de restauro onde sete mil peças novas foram utilizadas para recuperar o imóvel. A fachada foi reconstituída, inclusive com a colocação de azulejos novos em 1992. Hoje a casa abriga o Arquivo Público, é utilizada para festas e exposições, além de projetos existentes para transformá-la num centro cultural.

Quanto à atividade turística, não se pode dizer que o local esteja entre os mais freqüentados do Centro Histórico. Justamente, nesse ponto, é que entra a questão da arqueologia. Pelo que consegui levantar nesta breve pesquisa, nunca foi feito um trabalho contínuo de prospecção arqueológica11 na área.

Na ausência do trabalho arqueológico, foram construídos dezenas de mitos sobre a Casa de Frontaria Azulejada, na esperança de que tais lendas atraíssem maior público para visitação. Objetivo não alcançado, porque talvez o grande “chamariz”, que deveria existir para transformar a casa em um atrativo interessante só poderá ser construído através da pesquisa arqueológica séria.

Por que razão isto não aconteceu? Gostaria de evitar entrar nesse campo de discussão porque envolve fatalmente problemas de ordem política. Resguardo-me o direito de apontar apenas os mitos criados pela “falácia” histórica e tentar propor que isto se modifique em benefício do turismo, através da ciência arqueológica.

Mito n.º 1 : “ O comendador Ferreira Netto,por sua grande riqueza, mandou erguer a Casa de Frontaria Azulejada.”

Não se pode afirmar isto com toda a precisão. Há indícios não confirmados, inclusive, constando em relatórios de arquitetos e historiadores, de que o sobrado teria sido construído a partir de outro imóvel já existente. As plantas e projetos, documentos e demais evidências escritas não conseguem comprovar tal afirmação.

Mito n.º 2 : “Se no sobrado habitava somente o casal, os inúmeros quartos serviram para os hóspedes que vinham negociar com o comendador.”

Não se sabe com exatidão se o sobrado era geminado com outro imóvel e onde exatamente localizavam-se tais aposentos para hóspedes e onde residia o casal.

Mito n.º 3: “ O andar térreo da casa era utilizado como armazém e depósito de mercadorias da firma de Ferreira Netto.”

O próprio inventário de Netto descreve no andar térreo: “3 salas, 1 sala de jantar, 12 alcovas, 1 sala de soteia e um escritório”. Segundo o relatório elaborado pelo GEPAS “essa descrição coloca em dúvida a existência de depósitos e armazéns destinados ao comércio. Ao mesmo tempo ocorrem omissões de compartimentos importantes para qualquer residência, tais como a cozinha ou mesmo o banheiro”.12

Mito n.º 4 : “Na parte térrea do sobrado existia uma senzala urbana e os escravos eram recolhidos a ferros no fim da tarde.”

Não há nenhuma comprovação científica deste mito porque nunca foi encontrado nada que atestasse tal lenda.

Mito n.º 5: “A planta em forma de U e as atividades comerciais do comendador, ligadas aos negócios de importação e exportação de mercadorias, comprovam que existia um canal de mar que adentrava a casa para carga e descarga. O comendador tinha uma espécie de cais particular na parte inferior da residência onde pequenos barcos atracavam para descarregar as mercadorias que vinham dos navios.”

Este é um dos mitos mais divulgados pela mídia e pelas pessoas ligadas à área do turismo histórico na região central de Santos. Não existe, porém, nada que comprove a verdade destas afirmações. O mais interessante é que na própria justificativa do CONDEPHAAT para o tombamento do imóvel está escrito:

“... o térreo, destinado às atividades comerciais, que principalmente em Santos eram desenvolvidas em vista da presença do porto, constituía-se de um espaço amplo usado como depósito de mercadorias onde se desenvolvia a atividade comercial propriamente...” (folha 2)

Mito n.º 6: “ O tamanho das portas pressupõe que por ali passavam carruagens e liteiras e havia a existência de cocheiras no andar térreo.”

Aliás, a expressão pressupõe aparece de maneira no mínimo duvidosa na justificativa do CONDEPHAAT.

Poderia destacar vários outros mitos criados em torno da Casa de Frontaria Azulejada, mas, creio estes acima mencionados servem para uma reflexão da questão central deste trabalho que envolve a arqueologia na estratégia da atividade turística.

Talvez por desinteresse na desconstrução de tais mitos, talvez por má vontade ou vaidades pessoais ou problemas políticos, o fato é que foi realizada uma restauração de um importante bem patrimonial, testemunha de um importante momento histórico, apenas de forma superficial. Pensaram apenas na fachada, na parte visível da construção em ruínas. Jogou-se concreto em cima da história, conseqüentemente “aterrando” inúmeras possibilidades turísticas.

Se a arqueologia tivesse oportunidade de atuar naquele sobrado, quantas dúvidas seriam elucidadas? Quantas descobertas seriam feitas? Quanto conhecimento seria construído em benefício do entendimento total e contextualizado de nossa história e também do aproveitamento turístico? Quanto não se descobriria sobre as formas de trabalho no porto, as relações com o mar, os modos de produção, as relações sociais, os costumes, entre tantas outras informações?

Além das prospecções consideradas tradicionais, o local convida para que nele se realizem trabalhos de arqueologia subaquática, que poderiam elucidar as dúvidas em relação ao famoso caso do canal interno da casa:

“...0 patrimônio cultural subaquático é constituído por todos os bens móveis ou imóveis, testemunhos de uma ação humana situados inteiramente ou em partes no mar, nos rios, nos lagos, nas lagoas, nos cais, nas valas, nos cursos d´água, nos canais, nas represas, nos reservatórios artificiais, nos poços e outros planos d´água, em zonas de maré, manguezais, ou quaisquer outras zonas inundadas periodicamente, ou recuperados num tal meio, ou encontrados em margens atualmente assoreadas.”14

Se as filmagens da minissérie da Rede Globo de televisão “Um só coração”, em 2003, realizadas na Rua do Comércio e imediações do Centro histórico de Santos, arrastava multidões durante as cenas externas, transformando-se naturalmente em atrativo turístico, onde ganharam dinheiro desde o motorista de táxi, passando pelos restaurantes e bares da região até o pipoqueiro da esquina, porque não aconteceria o mesmo com o movimento de mergulhadores tentando decifrar enigmas debaixo d´água em plena região central?

Falta este tipo de mentalidade mais ousada para o incremento do turismo em nossa região. Os artefatos encontrados numa prospecção arqueológica poderiam ficar expostos no salão principal da Casa de Frontaria Azulejada. Além de servirem para contar a verdadeira história do local, aumentariam o fluxo de turistas que, principalmente, no caso de estrangeiros, levariam do Brasil a imagem de um país que valoriza a cultura material, a memória e o patrimônio cultural através da arqueologia, ciência cada vez mais em alta na Europa e Estados Unidos.




Considerações Finais

São 8 horas da manhã e os passageiros da embarcação, tipo catraia, que faz a travessia de Santos (Ilha de São Vicente) para Vicente de Carvalho (Ilha de Santo Amaro), estão apreensivos.

É necessário atravessar o canal do porto de Santos para chegar ao outro lado, mas, algo está atrasando a viagem. A catraia não pode passar. Está parada no meio do canal. Tem que esperar a saída de um cargueiro russo abarrotado de contêineres que se despede do porto de Santos. É um navio enorme em comprimento e altura e o prudente piloto da catraia nem pensa em competir com ele em velocidade. É um navio muito bonito, vermelho e branco, e tem um aspecto de novo ou recém-reformado. Vai para a Rússia cruzando os oceanos e nada podemos fazer a não ser esperar que se afaste de nosso caminho.

No meio de tantas reclamações e demonstrações de mau-humor, comecei a refletir sobre as aulas de arqueologia ministradas nesta pós-graduação. Eu, que tenho que atravessar todos os dias o bendito canal para lecionar na área continental de Santos, pensei comigo mesmo: “Nada pode nos separar do mar”.

O professor da disciplina começou o curso dizendo: “Vocês que moram aqui, devem pensar mais nas questões ligadas à “maritimidade”.

Talvez por isso resolvi escrever algo sobre a Casa de Frontaria Azulejada. Não foi à toa que o comendador Ferreira Netto a construiu naquele local. Havia um porto, havia o comércio e principalmente, havia as pessoas que trabalhavam e viviam em função deste porto, deste canal de mar. Nós que moramos aqui temos obrigação de prestar atenção nisto.

Se ignorarmos o porto, não compreenderemos nossa sociedade. Enterraremos nossa história, assim como fizeram aqueles que aterraram e jogaram cimento em cima do piso da Casa de Frontaria Azulejada, transformando-a numa espécie de “souvenir” histórico do centro de Santos, onde está tudo pronto e acabado, não existe a necessidade de maiores esclarecimentos, é melhor deixar como está.

Se começarmos a desvendar o passado através da arqueologia, muitos mitos desaparecerão e com eles pessoas que deles se alimentaram. Têm medo do novo e do desconhecido.

Isto deve mudar e espero ter contribuído para esta reflexão. A utilização da ciência arqueológica é primordial para a construção do conhecimento histórico real, não aquele pacote pronto e “embalsamado” pelos historiadores oficiais com suas afirmações baseadas no discurso, no documento escrito.

Chegou a hora de arrancar a maquiagem da história contada pelas elites, tentar torná-la mais concreta para que as novas gerações tenham a oportunidade de conhecer o passado a partir da ciência e não da falácia.

O turismo só se beneficiará disto, porque metade ou mais dos atrativos que podem ser oferecidos estão enterrados ou embaixo d´água. É preciso abrir os olhos antes que seja tarde demais.
 
1 Alexandre Assis, licenciado e bacharel em história pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UNISANTOS, professor efetivo de história e sociologia da rede pública estadual de ensino, professor efetivo de história da rede pública municipal de Guarujá, ex-aluno da primeira turma do curso de pós- graduação Cidade e História da Unisantos, trabalhou como coordenador do departamento pedagógico da Fundação Arquivo e Memória de Santos, onde desenvolveu projetos de pesquisa ligados a área de turismo e história regional no centro histórico de Santos, autor do "Roteiro Histórico-Interativo", projeto em que atores percorrem as ruas do centro de Santos, dramatizando passagens da história local com enfoque no patrimônio edificado, adotado pela Prefeitura Municipal de Santos para programas de turismo cultural e educação escolar e autor de artigos para o Diário Oficial de Santos e jornal Boqueirão News sobre temas de história regional do litoral paulista.

2 Curso de pós-graduação lato sensu, ministrado pela UNISANTOS – COEAE.

3 Em 1765, foi estabelecida a cultura canavieira pelo governador da capitania de São Paulo, D. Luiz Antônio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus. “A produção de açúcar no planalto paulista criou a necessidade de trazer o produto para Santos, tornando a cidade conhecida como ‘porto do açúcar’. Cf. Santos na formação do Brasil: 500 anos de história, p. 22.

4 Em 1765, segundo o historiador Alberto de Souza, que reconstituiu a topografia da Vila de Santos, a Rua Santo Antônio, hoje Rua do Comércio, chamava-se Rua de São Francisco, porque em sua extremidade havia o Convento de São Francisco, atual Santuário do Valongo. Já em 1822 aparece com o nome de Rua Santo Antônio e, na sessão de 3 de janeiro de 1919, a Câmara Municipal , em homenagem à Associação Comercial de Santos, recebia a indicação do vereador Benedito Pinheiro, para que passasse a chamar-se Rua do Comércio, o que só foi oficializado, após inúmeras discussões, em 16 de fevereiro de 1921. Sobre a história das ruas de Santos, Cf. Olao Rodrigues, Veja Santos, s.d..

5 No esplendor da produção cafeeira, sustentáculo econômico brasileiro a partir de meados da segunda metade do século XIX e, principalmente no primeiro período republicano, gerando fortunas imensas por sua aceitação no mercado internacional, o café era conhecido por “ouro verde”, devido à coloração dos frutos quando surgem nos cafezais aliada ao seu valor monetário.

6 O relatório intitulado Algumas notas acerca da Casa de Frontaria Azulejada, situada à Rua do Comércio n.º 92/98, Santos, encontra-se à disposição para consulta na sede da Fundação Arquivo e Memória de Santos, porém, não consta a data de sua elaboração.

7 Para conhecer melhor esta instituição, que é uma autarquia da Prefeitura Municipal de Santos, Cf. www.fundasantos.org.br .

8 Para uma apresentação oficial da Casa de Frontaria Azulejada e ou para uma análise comparativa das formas de descrição do atrativo turístico, Cf. http://www.santos.sp.gov.br/turismo/centro/casas/frontaria.htmI .

9 Processo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) n.º 22046/82. Fonte: Fundação Arquivo e Memória de Santos.

10 SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje denominado IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Cf. www.iphan.gov.br

11 Cf. FUNARI, Pedro Paulo. .Arqueologia, São Paulo, Contexto, 2003.

12 Relatório GEPAS, p. 03, s.d . Fonte: Fundação Arquivo e Memória de Santos.

13 Relatório CONDEPHAAT. Fonte: Fundação Arquivo e Memória de Santos.

14 Cf. RAMBELLI, Gilson. Arqueologia até debaixo d´água, p. 39.
 
 
BARBOSA, Maria Valéria. e outros. Santos na formação do Brasil: 500 anos de história. Santos: Prefeitura Municipal de Santos, Secretaria Municipal de de Cultura, Fundação Arquivo e Memória de Santos, 2000.
FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003.
RAMBELLI, Gilson. Arqueologia até debaixo d´água. São Paulo: Maranta, 2002.
RODRIGUES, Olao. Veja Santos. Santos: Prefeitura Municipal de Santos, s.d..
RELATÓRIO do Condephaat para o tombamento da Casa de Frontaria Azulejada.
RELATÓRIO do Gepas. Algumas notas acerca da Casa Azulejada, situada à Rua do Comércio n.º 92/98, Santos.
CASA azulejada de 1865 ameaçada de demolição. A Tribuna,19. 03. 1985.
FUNDAÇÃO ARQUIVO E MEMÓRIA DE SANTOS. www.fundasantos.org.br
IPHAN. www.iphan.gov.br
TURISMO. http://www.santos.sp.gov.br/turismo/centro/casas/frontaria.htm1