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Patrimônio e Meio Ambiente: os lugares da memória
Débora Dutra Vieira1
 
Patrimônio cultural. Qual o seu significado para os lugares e para os indivíduos? Seriam culturais apenas os bens materiais e imateriais mais diretamente relacionados à história e às artes?

Convencionou-se associar meio ambiente a patrimônio natural, talvez cedendo à tentação de categorizar, de tipificar os nossos objetos de estudo e reflexão (herança científica do século XIX que, se por um lado sistematiza o conhecimento, por outro acaba restringindo o nosso horizonte de análise). Mas os ambientes naturais também são patrimônio cultural, afinal a leitura que fazemos das paisagens é fruto de uma decodificação e de uma valoração criadas a partir de um referencial culturalmente sedimentado. Os bens que preservamos, os que consideramos dignos de conservação e aos quais atribuímos uma qualidade estética, histórica ou afetiva (e, conseqüentemente, também aqueles que excluímos) são espelho da cultura.

Deve-se ressaltar, porém, que os “lugares” – naturais ou não –, ainda que oficial e consensualmente “preserváveis”, só adquirem um sentido efetivo para o indivíduo na medida em que traduzem uma relação de cumplicidade, quando integram a história pessoal, transformando-se em “lugares de vivência” ou em “lugares da memória”.

Diga-se que, seja individualmente, seja coletivamente, o patrimônio não é consenso. Tampouco deveria sê-lo. Longe de designar apenas elementos sublimes e “aglutinadores” de caráter nacional, regional ou local, o patrimônio também é espaço de manifestação e reflexo das diferenças latentes em todas essas instâncias e, nesse sentido, o fato de ser ou não oficialmente preservado torna-se um fator de menor importância.

Um único “bem” engendra tantos significados quantos as ideologias podem forjar, o poder constituído avalizar e as idiossincrasias atribuir. Esse “bem” pode ser uma obra de arte, um monumento, uma festa ou um lugar.

Tomo, assim, a liberdade – ainda que com certo desconforto – de escrever na primeira pessoa para refletir sobre um desses “lugares da memória”, cuja característica fundamental era (e tomara continue sendo) a generosidade com que recebia e abrigava os mais diversos segmentos: moradores, proprietários de segundas residências, turistas e excursionistas.

Não dispunha, efetivamente, de “reconhecidas belezas naturais” nem abarcava bens culturais “importantes” do ponto de vista institucional; mas está contido na memória e, na maneira pela qual compreendo a realidade e expresso as minhas opiniões. Na verdade, a relação indivíduo/lugar não é impositiva; assim como nos apropriamos do espaço e lhe atribuímos valor, o espaço nos molda e nos distingue.

Até onde me lembro a Praia Grande nunca foi vista como um “modelo” de destino turístico. No entanto, essa pecha lhe foi creditada menos por seus atributos naturais do que por seu “perfil cultural”.

Desde que a praia passou a ser considerada um local atrativo para atividades de lazer e turismo, o valor estético/contemplativo e as práticas à beira-mar foram sendo construídos e solidificados não apenas a partir da sensibilidade do expectador/ator, mas, como aponta Corbin (1989: 266), “a maneira de estar junto, a convivência entre turistas, os signos de reconhecimento e os procedimentos de distinção condicionam igualmente as modalidades de fruição do lugar”.

Inúmeras vezes eu ouvi falar da Praia Grande como um local mal-cuidado, feio, degradado e mal-freqüentado. Leia-se, freqüentada pelas camadas menos abastadas da população, notadamente trabalhadores urbanos, como metalúrgicos e comerciários, e sobretudo os execrados “farofeiros” – grupo de pessoas que fretava um ônibus e descia a serra para passar o dia na praia.

Estranhamente não foi essa a imagem que eu carreguei durante a minha infância e adolescência, nem a que retive do lugar. Não que eu ignorasse a sujeira na areia ou os esgotos correndo direto para o mar; mas definitivamente a Praia Grande representava mais do que um balneário com problemas de infra-estrutura, mais do que a praia em si.

Nas férias escolares, especialmente aquelas do mês de julho, a Vila Mirim era o meu destino – meu e de meus pais, irmãos, primos, tios e quem mais chegasse para compartilhar de dois apartamentos de quarto, sala, cozinha e banheiro em um prédio de rua “de terra”.

Hoje seria impensável deixar um “bando” de crianças na praia desde as 9 horas da manhã até as 6 horas da tarde (com breve pausa para o almoço) sem a companhia sistemática de um adulto, entregues aos banhos de mar – impróprios –, às brincadeiras e jogos da beira-mar e à convivência com todos os personagens que transitavam por aquele espaço.

À noite, e eventualmente à tarde, íamos passear – a pé – até a Cidade Ocean, passando pela estátua de Iemanjá, pela rua das colônias de férias dos sindicatos, pela estátua de Netuno (que eu particularmente adorava) até chegar à sorveteria, ao parque de diversões e ao Cine Ocean.

Esse período de férias, além do atrativo da praia e da própria cidade – que para mim se resumia no trecho Ocean-Vila Mirim com eventual caminhada até o posto 7, na Vila Caiçara, à cata de conchinhas e de todos os bichinhos que proliferam na orla – era também oportunidade de convivência com outras pessoas, crianças e adultos, das mais diversas origens, profissões, religiões, etc.

Os passeios noturnos pela praia eram os mais excitantes, até porque não havia iluminação artificial. O barulho do mar e a escuridão conferiam ao ambiente, ares de mistério, somente “quebrado” pelo clarão das velas e pelos batuques das rodas de umbanda, que num misto de receio e curiosidade eu não conseguia evitar. Por outro lado, passei a ver com naturalidade a presença de pessoas tão diferentes em um mesmo espaço; méritos também para pais e tios que, não obstante o arraigado catolicismo, não nos repreendiam por acompanhar outros cultos, nem criticavam a religião alheia.

Há anos não retorno à Praia Grande, apesar da proximidade geográfica. Soube que há um esforço no sentido de reurbanizar a orla. Gostaria de crer ser esta uma empreitada com vistas à melhora da condição de vida dos moradores locais e da qualidade de estadia dos visitantes, e não uma tentativa de elitização para atrair turistas com melhor poder aquisitivo; ainda que não me pareça ser a degradação ambiental um traço específico das “praias populares”. Vide Guarujá e cidades do litoral norte do Estado onde, além da evidente deterioração das praias, a sanha dos condomínios fechados e da privatização do espaço público arroga para si a nobre responsabilidade de preservar a paisagem.

Praia conservada não é praia segregada/privatizada, mas praia aberta; assim como patrimônio preservado não é patrimônio “escondido”, mas exposto, acessível, palpável.

Talvez o maior diferencial da Praia Grande seja ter sido (?) ela um local extremamente democrático e tolerante, e a sua tolerância estava longe de significar indiferença; ao contrário, compreendia aceitação e partilha do espaço. Não era, efetivamente, um local de rara beleza cenográfica ou de sofisticados equipamentos turísticos. Mas era a minha praia. E aí a referência a Fernando Pessoa é praticamente irresistível:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

É provável que o distanciamento tenha feito com que eu percebesse hoje essas qualidades da minha praia. Antes eu apenas a vivia intensamente. Longe de querer ser nostálgica, penso residir na permanente capacidade de transformação a virtude e a magia dos lugares. Mas independente do quanto mudem, eles não deixarão de ser um pouco nossos, pois é justamente esta característica mutante que alenta o futuro e garante aquilo que pode ser recordado.

Italo Calvino, em seu As Cidades Invisíveis, vê esses espaços como organismos vivos com múltiplas características que os distinguem enquanto lugar e que distinguem seus habitantes enquanto moradores desse espaço singular. Não vivem em função do seu passado, mas a sua história e a história de seus habitantes é um elemento intrínseco à sua compleição.

A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. [...] Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (Calvino, 2003: 15-16)

Pulsantes, mutantes; artífices e artefatos.

Assim são as pessoas. Assim são os lugares. Assim é o patrimônio.
 
1Graduada em História PUC/SP. Mestre em Turismo. Coordenadora editorial da Editora Aleph/SP. Co-autora de Turismo e Terceira Idade da Coleção ABC do Turismo da Aleph/SP.