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Requalificação de Áreas Urbanas no Brasil: caminhos para um balanço crítico em relação às práticas de turismo e lazer
Paulo César Garcez Marins1
 
Praias, festas, reservas naturais. Exotismo tropical e comemorações sensualizadas foram durante décadas os grandes motivadores das práticas de turismo no Brasil, tanto no que se refere a recepção de turistas estrangeiros quanto aos próprios nacionais. No que toca ao lazer, um similar horror ao “urbano” durante décadas povoou o imaginário daqueles cidadãos que podiam dispor de algumas horas para o descanso físico ou mental; assim, a freqüência a praias, cinemas, teatros, restaurantes, bares ou a prática de esportes foram igualmente as possibilidades mais freqüentes ou desejadas para o lazer, dispensando-se aqui abordar o papel fundamental das mídias na confirmação dos padrões acima aludidos.2

Os últimos 20 anos foram, entretanto, período bastante significativo no que tange à apropriação do patrimônio cultural, como fator de atratibilidade turística em cidades brasileiras, bem como para as práticas de lazer. A vasta intervenção na área central de Salvador, realizada ao longo dos últimos 11 anos pode ser considerada o estopim de um amplo processo de inclusão dos chamados “centros históricos” no rol dos investimentos públicos de numerosas capitais brasileiras, notadamente as nordestinas, visando-se a recepção de turistas nacionais e estrangeiros.

Em outro pólo, voltado prioritariamente para o lazer, Curitiba, Rio de Janeiro, São Luís e Santos capitanearam um movimento de requalificação de suas áreas centrais visando a restauração e conservação das edificações e da própria paisagem urbana, tendo-se como motivação estimular a recuperação econômica de tecidos urbanos decadentes, bem como a criação de novos espaços de lazer para seus cidadãos.

Tais iniciativas merecem, no entanto, uma avaliação que transcenda um sucesso meramente afeito às exigências do mercado ou do aumento expressivo de visitantes. Espaços urbanos não podem ser considerados meros produtos turísticos ou sujeitos a processos de elitização (gentrification), que não levam em conta, necessariamente, o benefício da população local, suas práticas sociais e culturais, bem como as características específicas das edificações que constituem conjuntos preservados. A historicidade de um determinado espaço é, portanto, a dimensão imprescindível a ser levada em conta pelos projetos e programas de requalificação urbana.



Experiência internacionais: o risco da “gentrification”

Diversas intervenções européias e norte-americanas têm sido apontadas como exemplos de sucesso no tocante a recuperação física e econômica de áreas em que o patrimônio edificado corria risco eminente de perda, seja devido ao abandono ou mesmo por acolher populações cujos recursos eram insuficientes para sua manutenção. A recuperação da área central de Bolonha, município italiano de sólida trajetória política de esquerda ao longo do século XX, constitui um parâmetro de intervenção que requalificou simultaneamente edificações e qualidade de vida da população residente, que não se viu obrigada a sair de suas habitações depois de concluídas as obras de restauração. Outros projetos notórios, como a intervenção oficial no bairro parisiense do Marais, aliaram a criação de museus e centros culturais, que funcionassem como ancoragem para a requalificação, a um gradual processo de valorização imobiliária que acabou por elitizar as áreas que sofreram intervenção, expulsando a população e alterando drasticamente a paisagem humana e social do bairro.

A terminologia utilizada para descrever essas intervenções, mais ou menos atentas a dimensão da população estreitamente vinculada ao local atingido, deve ser avaliada, na medida em que revela viéses conceituais capazes de explicitar os partidos de intervenção. Assim, o termo revitalização deve ser tomado com grande cautela, pois quase sempre ignora a vida existente na área a ser afetada; revitalizar, portanto, esconde um perigoso sentido de restituir algo a um local que, contraditoriamente, já o possui.

Áreas industriais ou portuárias obsoletas estão entre as poucas que podem ser enquadradas numa espécie de “vazio humano”, na medida em que suas edificações podem estar efetivamente desocupadas, sem qualquer uso, caráter que acaba por ser estendido aos próprios logradouros públicos. As áreas portuárias de Barcelona, Gênova, Boston, Baltimore e Buenos Aires, além das Docklands de Londres, são exemplos de refuncionalização de regiões semi ou totalmente desocupadas que resultaram em numerosas opções de lazer para os cidadãos, sobretudo os de estrato econômico mais alto, com grandes repercussões também para a atividade turística.3

A maior parte das áreas urbanas que sofrem projetos de intervenção não pode, entretanto, ser enquadradas na mesma situação. Encortiçamento, estados ruinosos, queda ou popularização acentuada na atividade comercial e de serviços estão entre os principais fatores motivadores de intervenções que, longe de “revitalizar”, acabam, a exemplo do Marais, refuncionalizando as áreas e reestruturando o perfil social de residentes ou usuários. Experiências recentes, entretanto, como a das intervenções em Southwark, região londrina na margem meridional do Tâmisa, devem ser tomadas como exemplo de como a articulação das populações locais podem agir no sentido de refrear as possibilidades de descaracterização de uma área a ser requalificada.4



Salvador, Pelourinho: buscando o turista

Quanto ao Brasil, as experiências já mencionadas de Salvador e Rio de Janeiro podem ser consideradas opostas no tocante a critérios de intervenção para requalificação, tanto no que toca a critérios de restauração arquitetônica, quanto no que se refere ao caráter participativo das comunidades imediatamente afetadas, ambos com grandes implicações para as atividades de turismo e lazer.

A área central da capital baiana, popularmente denominada Pelourinho, contava desde 1985 com o título de “patrimônio mundial”, concedido pela UNESCO e que certificava, para além das próprias instâncias nacionais, a importância do sítio histórico. O estado de degradação física das edificações era de grande escala, havendo ainda numerosas construções arruinadas. A intervenção, comandada pelo governo estadual, foi realizada mediante desapropriação dos imóveis e indenização aos moradores, a maior parte sem diretos locatícios devido às condições irregulares de sublocação. A restauração propriamente dita foi implementada mediante um conceito celular, que previa não as edificações, mas os quarteirões como unidade de intervenção5. Tal critério ao mesmo tempo em que facilitou enormemente a instalação de infra-estrutura urbana para os imóveis, comprometeu seriamente o caráter documental das edificações, restauradas mediante intervenção mais standartizada que não recuperou na imensa maioria das unidades as características específicas que as singularizavam.

A opção preferencial por criar-se condições para o deslocamento dos residentes abriu caminho para que a requalificação do Pelourinho transformasse a antiga região residencial, ao menos nas primeiras etapas da restauração, numa área estritamente voltada para o comércio e os serviços. O turismo foi evidentemente o alvo preferencial do perfil de ocupação da área, com grande quantidade de lojas de artesanato, souvenirs, jóias, restaurantes e bares de alto padrão, além de meios de hospedagem como os albergues da juventude. A sensação de descontinuidade em relação ao restante da cidade de Salvador é igualmente marcante, não apenas pelo caráter específico do patrimônio arquitetônico, mas pela ausência das formas de ocupação costumeiras, de apropriação por parte dos cidadãos.

Muitas capitais nordestinas seguiram com fascínio o exemplo explosivo propiciado pela requalificação da área central soteropolitana, de rápidos resultados turísticos. Natal, João Pessoa, Fortaleza, Maceió e, sobretudo o Recife possuem programas de restauração e refuncionalização de áreas centrais semelhantes ao de Salvador, muitas vezes com as mesmas cores berrantes, altamente sedutoras para a mídia, que cobrem os sobrados desta sem qualquer critério histórico. O caráter expulsor é também freqüente, o que acaba por criar uma estranha sensação de se estar no mesmo lugar, não importando qual seja a cidade ou “centro histórico”.



O Corredor Cultural e o centro carioca: a opção pelo cidadão e pelo lazer

A cidade do Rio de Janeiro oferece um exemplo bastante consistente de contraste ao acima exposto. Priorizando o caráter participativo da população afetada, e voltado, sobretudo para alcançar o cidadão, o programa Corredor Cultural, concebido pela prefeitura municipal em 1979 e implementado a partir de 1984, foi dirigido para 4 grandes áreas do centro da cidade (1 - Cinelândia/ Lapa; 2 - Praça XV; 3 - Largo de São Francisco; 4 - SAARA). Tais áreas, malgrado a grande vitalidade comercial e de serviços, encontravam-se profundamente degradadas fisicamente, com grande poluição visual e, péssimas condições de conservação arquitetônica. O critério de intervenção baseou-se, inicialmente, na retirada obrigatória dos anúncios e fachadas falsas que recobriam as edificações do século XIX e primeiras décadas do século XX; as etapas seguintes deveriam ser realizadas a partir da adesão de proprietários interessados em obter a isenção de IPTU, mediante realização de restauro a partir de recursos próprios.

O alto valor de IPTU, bem como a possibilidade de ostentar uma fachada adequada a um estabelecimento que depende da sedução da clientela foram fatores que motivaram cerca de 50% dos proprietários de imóveis nas áreas do Corredor Cultural a aderir ao programa desde a década de 1980. A ausência da desapropriação como instrumento de intervenção foi, certamente, um caminho seguro para manter-se a ocupação tradicional das áreas mencionadas, sem que houvesse alteração substantiva no perfil da ocupação das edificações. O centro continuou, portanto, como antes, acrescido da qualidade da paisagem urbana, da valorização dos imóveis e, sobretudo, da atenção da população carioca para uma área que antes escondia seus atrativos arquitetônicos.

A requalificação lenta propiciada pelo programa Corredor Cultural permitiu também uma cuidadosa intervenção técnica nos imóveis restaurados. Com projeto e acompanhamento individual propiciado pelo caráter participativo do programa, os imóveis mantiveram suas características específicas. O possível fachadismo que sempre ronda intervenções muito rápidas foi também superado pela obrigatoriedade de reconstituir-se os interiores dos edifícios, mormente os pisos junto aos vãos do frontispício e as clarabóias internas, de modo a preservar a qualidade ambiental dos imóveis a serem beneficiados pela isenção fiscal. Quanto às cores, a palheta permitida pela prefeitura garantiu tonalidades e composições que respeitam o cromatismo do período em que se edificaram os edifícios.6




Centro de Artes Hélio Oiticica
Fotografia: Mônica Yamagawa




A atenção gerada pelos resultados do programa Corredor Cultural acabou também por estimular outras iniciativas na área central carioca. Diversos equipamentos como os centros culturais do Banco do Brasil, dos Correios, da Light, da Justiça Federal, o Centro de Artes Hélio Oiticica e o Espaço Cultural da Marinha foram alguns dos novos investimentos públicos voltados para o lazer dos cariocas, em muito estimulados pela renovação urbana gerada pelo Corredor Cultural. O turismo é, certamente, beneficiário desse processo, mas vem a reboque do foco que privilegia o lazer e o cidadão, bem como a manutenção dos traços mais relevantes da historicidade local, que foi protegida, estimulada pelos órgãos governamentais.

Os programas de recuperação das áreas centrais de São Luís e de Santos, guardadas as devidas especificidades, têm também a população local como público-alvo preferencial das estratégias de viabilização econômica, bem como do estímulo à permanência das atividades inscritas na história local7. Assim, áreas como a Praia Grande, na capital maranhense e o centro santista foram alvo de programas, em que, mediante instrumentos jurídicos diferentes como a desapropriação pontual e a isenção fiscal, promoveu-se a reapropriação de áreas arruinadas ou semi-abandonadas para uso local, beneficiando-se ainda da sazonalidade turística.

Frise-se, portanto, que os instrumentos de requalificação voltados aos cidadãos podem vir preservar as mais importantes características de um local que por eles foi construído e utilizado. Serão assim preservados não apenas a materialidade das edificações, mas igualmente, os diferenciais sociais que o identificam e singularizam, algo caro a determinados segmentos das atividades turísticas que procuram fronteiras para além da standartização e da massificação. Estabelecer uma crítica dos diferentes programas de intervenção e requalificação em áreas urbanas consideradas patrimônio cultural no Brasil permitirá, assim, retificar determinados descaminhos que, embora possam estar imbuídos de intenções promissoras, por vezes comprometem ainda mais os sinais que fazem de uma cidade, de uma rua ou de uma casa locais significativamente únicos.
 
1Historiador, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e no curso de pós-graduação Cidade e História: meio-ambiente, lazer e turismo da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS).
2Ver, por exemplo: BIGNAMI, Rosana. A imagem do turismo no Brasil. São Paulo: Aleph, 2002.
3Ver: “PÓRTICO do mar: o novo porto Velho de Barcelona”. CHIAVARI, Maria Pace. “Gênova – cidade porto: um reencontro entre a cidade e o mar”. DEL RIO, Vicente. “O modelo da revitalização urbana e o caso de Baltimore”. TIFFEN, C.E. “Obras de melhoramentos nas docas da cidade vizinha de Manchester”. Todos, em: Cadernos do Patrimônio Cultural, Rio de Janeiro, 4/5, 1994 (Dossiê Áreas Portuárias).
4TYLER, Duncan. Colocando o turismo em pauta – política de desenvolvimento da unidade administrativa de Southwark, Londres. In, Gestão do turismo municipal (D. Tyler et al., orgs.). São Paulo: Futura, 2001.
5BAHIA – Centro Histórico de Salvador – programa de recuperação. Salvador: Corrupio, 1995. COUTO, Adriana Almeida. Programa de recuperação. In, CENTRO Histórico de Salvador – Bahia: patrimônio mundial. São Paulo: Horizonte Geográfico, 2000.FERNANDES, Ana e Marco Aurélio A F. Gomes. Operação Pelourinho: o que há de novo, além das cores. In, ESTRATÉGIAS de intervenção em áreas históricas (S. Zanchett et al., orgs.). Recife: MDU/UFPE, 1995.
6 COMO recuperar, reformar ou construir seu imóvel no Corredor Cultural. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1985. A cor. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; RIOARTE, 1990. PINHEIRO, Augusto Ivan de Freitas. Aprendendo com o patrimônio. In, Cidade: história e desafios (L.L Oliveira, org.). Rio de Janeiro: Editora FGV, CNPq, 2002.
7Sobre São Luís e o programa Reviver Praia Grande, ver: CENTRO Histórico de São Luís – Maranhão: patrimônio mundial (L.P.C.C. Andrès, coord.). São Paulo: Audichromo, 1998.