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JULHO/2006: Ambiência cotidiana como formadora dos lugares para o lazer e o turismo
Angela Moreira1
 
RESUMO: Este trabalho tem como objetivos conscientizar acerca da importância da manutenção / preservação de certas ambiências cotidianas como parte de nosso patrimônio cultural; de sua utilização como base turismológica para o estabelecimento do chamado turismo com base local; e de sua importância para a elaboração dos projetos em lugares onde o lazer e as atividades ligadas ao turismo poderão ser realizados.


ABSTRACT: His work has as objectives to become aware near of the importance of the maintenance / preservation of certain daily ambiences as part of our cultural patrimony; of the utilization as a tourist base for the establishment of the called tourism with local base; of the importance in the projects of the places where the leisure and the linked activities to the tourism can be accomplished. Based on this research we can increase:
new programs for the leisure activities in the neighborhood (and in the city).
•a visitation program (knowledge and recognition) of the most important points seeking the patrimonial understanding, the maintenance and the revitalization in some places of the neighborhood, as well as, for the future, the incorporation of new attractives that could also be able to reach possible visitors
.






Quando se pensa em turismo hoje, fica absolutamente imprescindível a questão de sua sustentabilidade. Como sustentabilidade aqui não estou me referindo somente aos recursos econômicos que o turismo aporta, mas e, principalmente, às suas condições de existência. Uma das muitas correntes de estudo desta atividade toma como condição de sua exeqüibilidade a chamada base local, ou seja, as condições materiais e imateriais existentes nos lugares onde o processo de turistificação (e o de lazer da população local) será exercido. Este tipo de turismo vai utilizar-se da base material e imaterial existente nos lugares. Ora, sabemos todos que objetos arquitetônicos, espaços urbanos, atrações naturais ou artificialmente criadas são importantes, na medida em que atraem moradores e turistas. Mas, desejo aportar aqui algumas considerações acerca de alguns elementos que considero igualmente importantes, pois completam a identificação da ambiência dos lugares dedicados ao lazer e ao turismo: trata-se principalmente dos tipos de criação, apropriação ou uso da cidade. Sua finalidade seria a de empreendermos um processo de aprofundamento do conhecimento acerca do patrimônio de um lugar (seja para os próprios habitantes locais ou não). Para tanto, devemos estar conscientes da necessidade de uma boa compreensão e do reconhecimento do que compõe o patrimônio cultural que está ligado aos lugares que estruturaram e estruturam uma cidade.

Assim, cada grupo social que viveu ou vive em um lugar deixa nele suas marcas – algumas o tempo leva, outras permanecem com ou sem significado para as atuais gerações, algumas permanecem mesmo na memória oficialmente estabelecida, outras permanecem na memória afetiva das pessoas que usam os lugares cotidianamente, lugares que só elas detêm os segredos e que carregam claros ou secretos significados.

Estas marcas ou sinais podem apresentar-se de diversas maneiras, algumas foram “cristalizadas” com o rótulo de Patrimônio Cultural e compreendem os bens (móveis ou imóveis) tombados, preservados ou tutelados, que compõem um repertório oficialmente estabelecido e passível de guarda. Outras marcas ou sinais, porém, vivem apenas através na memória ou na vivência das pessoas, são suas experiências de vida, suas histórias e estórias, que foram marcadas por objetos, signos, lugares, paisagens, odores, cores, ventos, vozes e acontecimentos, elementos aparentemente insignificantes, mas que denotam uma parte consideravelmente grande e importante de suas vidas e do afeto que a cidade (e o lugar, principalmente) inspira em cada um que vive ali.

Estes elementos reunidos compõem a ambiência cotidiana a que estão submetidos os habitantes de cada lugar. Bela ou não, positiva ou não, a ambiência se impõe pela maneira e pela freqüência com que cada cidadão (e cada grupo social) se relaciona com ela, pois uma íntima relação espaço-temporal com um lugar afeta a capacidade de percepção dos objetos e dos ambientes que o compõe e a de seleção e fixação destes na memória de quem usa ou visita o lugar.

Logo, é preciso antes perceber a cidade, selecionar os elementos que cada pessoa ou grupo considera como importante e que formam a identificação do lugar que, agregada à freqüência de uso e à profundidade deste conhecimento, provoca o sentimento de pertencimento ao mesmo – dando-lhe sentido.

O que diferencia a memória de uma caótica justaposição de elementos é que a memória impõe uma ordem, uma organização. Acima de tudo ela é o relato, uma narração de um povo. Kerby (1991, p.76) chega a dizer que o self, a identidade, emerge da prática da narração:


Elegemos a história a cada dia do presente, sempre dentro de certos limites. O passado impõe limites às possibilidades de reinterpretar o presente que, ainda são acrescentadas dos próprios limites do presente e do desejo de aspirações ao futuro

(KERBY, 1991, p.76-77).



Portanto, será preciso um esforço maior para compreender a ambiência / modo de vida e captar seu sentido para o grupo social em questão, que usa / recria o espaço e o tempo a sua maneira, de modo a que o visitante consiga perceber de forma mais clara e a menos deformada possível as características identitárias do lugar. Muitas vezes a cidade trata estas ambiências, elegendo as mais convenientes para si, expurgando as ambiências cotidianas de conteúdos indesejáveis ou potencializando alguns aspectos, mas sem levar em conta que estes conteúdos ou aspectos podem possuir significados importantes para os que a habitam. Outras vezes a cidade possui uma imagem confusa, mesmo inconveniente e a busca de novas imagens mais de acordo com a política de seus governantes (do que com os desejos de sua população) tem levado a remodelação das cidades. Em face de leituras excessivamente standartizadas das cidades (como muitos circuitos, guias oficiais e trajetos turísticos) está o conhecimento da ambiência cotidiana dos cidadãos, de seus significados e dos seus desejos de mudança, como o elemento mais importante na definição de um lugar.

O processo de requalificação de um lugar, segundo Tzonis (1992, p.102) passa pelo jogo de re-potencialização do poder simbólico contido nas ambiências que compõem a cidade, pois cada elemento re-conectado reforça ou refaz as recordações – ou seja, a cognição e a seleção dos componentes que entrarão na memória. A requalificação passa por um estranhamento da ambiência cotidiana, mas que deve partir dos elementos da identidade do local, realçando-os ou reinterpretando-os, mas sempre levando em consideração àqueles que lhes dão significado – os moradores. Este estranhamento faz com que as pessoas se tornem conscientes das condições de suas vidas, iluminando as coisas familiares de outra maneira e ordem.

Para tanto é preciso identificá-los e oferecer ao olhar cotidiano (e também ao do turista) a oportunidade de estranhá-los, reapreendê-los e reintegrá-los na experiência do cotidiano e/ou da visitação. Assim, mais importante que a criação de um cenário, que será um mero espetáculo para o visitante, é preciso enriquecer a experiência sensorial e afetiva do morador, fazendo-o reconhecer o lugar onde vive, reforçando experiências e usos, criando passagens, umbrais, direcionando o olhar, recolando elementos fragmentários, dando estrutura e unidade ao todo realçando a identidade do lugar ou dando uma nova interpretação compositiva, que leve em consideração os desejos e necessidades dos seus usuários (moradores e visitante), reforçando a cognição, o conhecimento, o uso e o afeto que os moradores têm pelo lugar e permitindo ao visitante apreender esta situação.

Esta não é uma tarefa fácil nem simples, devido à complexidade de nossos cotidianos. Um de nossos trabalhos recentes foi o estudo do Bairro de Vila Isabel, na cidade do Rio de Janeiro, que teve como objetivos principais propiciar para alguns de seus moradores (crianças /adolescentes) a possibilidade de melhor conhecerem este local. Logo, tínhamos duas tarefas árduas para começar: conhecer o bairro e conhecer estes grupos sociais, verificando como os mesmos exerciam suas atividades de lazer e seus desejos e necessidades com relação a esta atividade. Portanto:

Vila Isabel é um subúrbio da zona norte do Rio de Janeiro, área considerada menos prestigiosa da cidade. Seu processo de urbanização foi começado no final do século XIX, sendo o primeiro bairro projetado da cidade, com grandes ruas e uma ampla avenida, o Boulevard 28 de Setembro, seguindo o modelo francês da época. Aos poucos a Vila foi crescendo, principalmente depois dos anos 20, quando foram implantadas ali fábricas de tecidos que criaram uma série de vilas operárias para os seus trabalhadores, hoje tombadas pelo patrimônio histórico da cidade. Com o passar do tempo, o lugar foi tomado por dois tipos de moradia: nas áreas mais planas e de maior acessibilidade e facilidade de transportes, a classe média carioca se instalou com suas casas, sobrados e prédios de apartamentos, nos morros e áreas mais altas estabeleceram-se as classes mais baixas com suas favelas, famosas pela sua violência, como a do Morro dos Macacos, por exemplo.

Nossa preocupação inicial foi o levantamento dos bens oficialmente considerados como importantes pelo Poder Público. Além disto, outros bens foram levantados e incorporados a esta lista. Eles correspondem aos pontos de caráter afetivo e simbólico mais importantes do bairro para a população em geral, mas em particular para os grupos sociais estudados.2

A definição destes lugares foi baseada na compreensão do lazer pelos grupos sociais escolhidos. Começamos com a jovem população do Bairro... Assim, temos que a principal atividade diária3 das crianças e dos adolescentes entrevistados foi: em casa, assistir a TV durante, em média 2 horas, e fora de casa, simplesmente brincar ou divertir-se ou praticar esportes, durante 2 ou 3 horas. Fora de casa, se tomamos em consideração os esportes citados, o futebol é o mais apontado. Entretanto, estas crianças têm outras necessidades de lazer, pois gostariam de brincar e passear em outros locais e de ir mais às praias e shoppings.

Os seus lugares preferidos (em ordem decrescente) para atividades de lazer foram os shoppings-centers e os supermercados (de grande porte possuindo atrativos para as crianças), os locais que possuem jogos de computadores e a dança (para os adolescentes), por causa da diversidade de opções e a segurança oferecidas pela moda e pelo preço. A maior parte do lazer de fim-de-semana eles passam (em ordem decrescente) em casa mesmo ou na casa de um amigo, na rua ou nos shoppings (estas duas últimas respostas foram ofertadas, principalmente pelos adolescentes).

Suas férias situam-se dentro do Estado do Rio de Janeiro, onde a Região dos Lagos foi a mais citada (principalmente os municípios de Cabo Frio e Saquarema) e na própria cidade do Rio de Janeiro. Poucos apontaram outros estados e somente um dos 500 entrevistados foi ao Disneyworld. De qualquer modo, nas férias sua preferência é viajar para qualquer lugar fora de sua casa e do seu bairro. Estas crianças e adolescentes não sonham com saídas do país, desejam simplesmente quebrar o seu cotidiano em algum lugar onde possam simplesmente se divertir, mesmo que seja no próprio bairro.

Para compreendermos algumas destas respostas, tentaremos situar melhor a Vila Isabel (espaço cotidiano) no imaginário destas crianças e adolescentes. Para eles, predominantemente, a Vila ou é “violência” ou “não têm uma opinião formada” ou não quiseram responder (sentimentos negativos), alguns a consideram “legal” (sentimento positivo). Logo, sua necessidade de evasão de um cotidiano agressor é bastante premente. Este fato, aliado ao baixo poder aquisitivo da população local, não permite sonhos de grandes viagens. Para eles, os principais locais do bairro para serem visitados são os shoppings, as praças e as escolas (muitos responderam que o seu lazer se resumia em estudar e as escolas do bairro foram apontadas como um lugar de grande importância para atividades prazerosas). As escolas foram consideradas como a principal válvula de escape da violência cotidiana a que estão submetidas estas crianças, pois a maioria delas freqüenta a escola pública e gratuita.

Os lugares do bairro considerados os mais importantes, do ponto de vista geral, foram: o Shopping Center Iguatemi, suas escolas, as praças, as igrejas e o Boulevard 28 de Setembro (principal artéria da região e o lugar de maior oferecimento de serviços).

A cultura de Vila Isabel também foi apontada como um item importante do lazer local. O lugar mais importante apontado foi o Recanto do Trovador (antigo zôo da cidade do Rio de Janeiro, hoje um pequeno parque esportivo) e a Música (a Vila é famosa pelos sambas, principalmente os de Noel Rosa que foi morador do local), as calçadas musicais (as calçadas do Boulevard 28 de Setembro têm letras de músicas escritas e são tombadas pelo patrimônio histórico da cidade) e o Extra Boulevard (antiga fábrica de tecidos reciclada em hipermercado).

No bairro eles jogam futebol e andam de bicicleta, brincam e passeiam. Na cidade vão às praias e passeiam e fora da cidade viajam ou praticam esportes (principalmente a natação, daí apontarem como seu destino preferido a Região dos Lagos ou Costa do Sol – que compreende os principais balneários da região periférica da Cidade do Rio de Janeiro).

Todavia, foi interessante observar a expressiva resposta das crianças e adolescentes que não exercem atividades na cidade ou fora dela, ficando o seu lazer restrito ao bairro e ao que ele pode oferecer a elas. Logo, é de grande importância o incentivo do lazer local. Num lugar de subúrbio afastado das praias, a água atrai o desejo de estar nela mais tempo, sendo este o lazer mais desejado, embora muitos se contentem com a simples saída de seu cotidiano considerado demasiado estressante.

Inquiridos sobre o que mais gostariam de fazer como lazer, suas respostas foram: Na Vila, esportes, principalmente a natação – apesar do Rio ser uma cidade balneária, poucas crianças e adolescentes têm a oportunidade e o dinheiro para sair do subúrbio e acessá-las. Na cidade, a prática dos esportes também aparece inicialmente (futebol e natação), seguida de passeios para conhecer os pontos mais pitorescos e turísticos da mesma (estas crianças pouco saíram do bairro e desconhecem os outros pontos interessantes da cidade e eles atraem a sua curiosidade). Fora da cidade, não especificaram um lugar, qualquer lugar serve, desde que eles possam sair do seu cotidiano e viajar. Somente 004 dos 500 entrevistados sonham com uma visita ao Disneyworld.

Eles desejam compartilhar seus momentos de distração, desfrutando da companhia de seus amigos e de sua família, reforçando os seus contatos primários e mais íntimos. Mesmo o viajar implica em viajar com eles e conhecer novos lugares na segurança do nicho conhecido ou familiar. Ninguém apontou o item fazer novos amigos, isto é um dos frutos da violência a que estão submetidas estas crianças cotidianamente.

Esta enquête foi respondida por crianças e adolescentes de 8 a 18 anos, sendo os do sexo feminino ligeiramente predominante (53%); com local de nascimento principalmente na Cidade e no Estado do Rio de Janeiro; todos moradores de Vila Isabel, durante em média, de 10 a 15 anos (44%) ou de 5 a 10 anos (25%); morando em casas de dois quartos (32%), de três quartos (18%), de um quarto (17%) ou em apartamentos de dois quartos (14%); sendo a maioria com residência própria (75%) e uma parte possuindo uma residência secundária (25%) que freqüenta nas férias (principalmente) e nos fins-de-semana; o número de membros da família varia, em média de 4 a 5 pessoas; e a renda familiar média é de 2 a 5 salários mínimos, apenas um pequeno percentual ultrapassa 10 salários mínimos (10%), sendo que aqui houve muitos que não quiseram ou não puderam responder a questão.

Esta enquête também permitiu determinar os principais elementos identitários que caracterizam o bairro e a sua cultura. Contudo, considerando-se o rico acervo patrimonial local fica claro que estes grupos não têm uma idéia clara da plenitude do mesmo. Esta pouca visibilidade prejudica muito o sentido de pertencimento da comunidade. Os elementos arquitetônicos citados estão dispersos no espaço, alocados de forma a não produzir nem uma clara leitura do local, nem de seu conjunto, daí a necessidade de um trabalho exaustivo para a identificação dos mesmos e de sua localização. Este fato interfere diretamente na escolha dos espaços de lazer mais importantes do bairro e nas suas formas de uso. Um processo mais amplo de revitalização urbana de toda a área do Boulevard 28 de Setembro parece ser o melhor caminho, desde que o mesmo ressalte estes elementos e leve em consideração TODAS as funções do lazer. Assim, estaremos recriando o espaço público, mas, sobretudo, estaremos recompondo a História Pública dos Cidadãos que moram no local.
 
1 Arquiteta e urbanista. Mestre em Geografia Urbana / IGEO-UFRJ; Doutora em Planejamento Urbano/ Université de Paris X; Pós-Doutora em Turismo e Desenvolvimento / Université de Paris I Panthéon-Sorbonne. Professora do Mestrado e do Doutorado do Programa de Pós Graduação em Arquitetura da FAU / UFRJ e da FAU / UFRJ.

2 Logo, foram definidos os seguintes lugares como a lista de Bens Visitáveis do bairro: o Conjunto Arquitetônico da Antiga Fábrica Confiança e Vilas Operárias Atual Extra Boulevard (parte externa); as Calçadas Musicais do Boulevard 28 de Setembro; o Colégio Estadual João Alfredo (parte externa); a Escola Municipal República da Argentina (parte externa); a Basílica Nossa Senhora de Lourdes; a Garagem da Cia. de Transportes Coletivos (e a Escola de Samba Vila Isabel a ela agregada); o Hospital Universitário Pedro Ernesto (parte externa); Convento da Ajuda (parte externa); o Shopping Iguatemi; a Igreja Metodista (parte externa); a Igreja do Divino Espírito Santo na praça Barão de Drummond (parte externa).Consideramos, neste caso e somente neste caso, as Praças como parte das ambiências associadas aos objetos arquitetônicos para fins de visitação.

3 As atividades aqui consideradas foram àquelas exercidas fora do tempo laboral (no caso, tempo dedicado às aulas e aos deveres de casa) e sempre aproveitando a dicotomia dentro e fora da casa, como bem nos lembra Roberto Damatta (1984 p. 06/08).