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Artigo
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MAIO/2006: Contribuições para construção de processos sustentáveis de preservação do patrimônio
Marilda Fróes1
 
RESUMO: A questão da preservação de edifícios e sítios históricos de significativo valor cultural é complexa por envolver problemas de dimensões distintas e muitas vezes conflitantes. Na maioria das vezes é observada do ponto de vista das expectativas institucionais estabelecidas pela política de preservação do Patrimônio vigente, nos diversos níveis de governo2, construída com base no instrumento do tombamento3 . Este representa a forma institucional encontrada para impedir a perda física de um bem, selecionado como relevante para a cultura nacional, dos processos de transformação gerados pelo desenvolvimento urbano no sec. XX, marcados pela substituição das construções. Ainda que tenha permitido a formação de um importante acervo urbano e rural no país, esse instrumento denota uma atitude de isolamento e defesa da preservação, onde o desenvolvimento do espaço urbano, vivo e complexo4, tornou-se vilão, o processo indesejável de ameaça ao bem tombado. O objetivo deste artigo é questionar essa diretriz demonstrando a viabilidade de dinamizar os processos de tombamento para inserção do patrimônio no desenvolvimento. Identificar vetores que permitam a integração da preservação na vida da cidade, através de processos sustentáveis.

ABSTRACT: This research focuses on the new ways that attempt to make viable the recovery of urban private buildings, of significant cultural value, as part of the re-qualification of deteriorated urban areas, through legal instruments used in São Paulo's municipal district, at the end of the 20th century. Such instruments represent the introduction to the City Statute recommendations in the city development orientation with social equality, right to citizenship and democratization of culture. It is a reflection on the possibilities of increasing the process of restoration of the urban cultural interest patrimony, by examining the approach strategies of public and private interests through real state market mechanisms in order to make possible the sustainable processes of intervention in the city. The selected laws which accomplish this urban preservation strategy belong to 2 kinds: the fiscal incentives laws, that use the tributary renouncement (Rouanet Law, Mendonça Law, Facades Law and Selective Incentives Law) and the laws that allow exceptions to land use and occupation and to the construction code (Center Urban Operation Law), through exchanges of made land, the so-called transfer of constructive potential, introduced by the Connected Operations and by Urban Operations. To do so, the efficiency and effectiveness of the application process of these instruments are verified, so as to demonstrate the established practices, in the 3 levels of government. The experience of the last 20 years in the municipal district central area of São Paulo is used as reference.



O tombamento na formação do patrimônio

Instituído para proteger elementos e sítios urbanos de interesse cultural foi consubstanciado pelo Decreto nº 25 de 1937, que permitiu a formação do Patrimônio Nacional. Representou a conquista de “uma fórmula realista de compromisso entre o direito individual à propriedade e a defesa do interesse público relativo à preservação de valores culturais”5 , então assumido pelo Estado, e desde então, reconhecido pela sociedade.

Foi uma fórmula ousada ao tratar de questões até hoje controversas, como por ex: (i) a dispensa da figura da desapropriação (inviável porque onerosa) ao conceder o direito de uso e a posse do bem tombado ao proprietário; (ii) a limitação de direitos sobre o bem tombado, que tornou-se “inalienável”, quando coisa pública, ou de “alienabilidade restrita”, quando bem privado (art.12º); (iii) a preservação voluntária ou compulsória (art.6º); (iiii) a salvaguarda das condições originais da edificação (art.17º); (iiiii) o impedimento da descaracterização do entorno do bem (art.18º) e a penalidade para destruição de coisa pública de interesse coletivo.

Definido a partir de um processo de seleção envolvendo valores materiais e imateriais subjetivos, caracterizando maior ou menor representatividade da cultura preservada em cada período6 , o tombamento elegeu exemplares que se tornaram edifícios isolados do seu entorno, sujeitos a regras especiais de uso e ocupação, que depreciaram seu valor econômico. A meta era então impedir a demolição do bem, de difícil implementação. O que fazer com o prédio e como restaurá-lo eram questões de responsabilidade do proprietário com respostas institucionais indefinidas. As exceções referem-se em geral a bens públicos, marcados pela falta de manutenção das obras e atividades neles instaladas (ex: museus).

Desse modo o tombamento inibiu as ações de restauro e gerou efeito contrário: a destruição involuntária do bem, pelo seu abandono ou pela sua descaracterização.

Entre outras, as razões que podem explicar esse processo são expressas: (i) pelo caráter estático desse instrumento; (ii) pela indefinição de critérios para aprovação das intervenções propostas; (iii) pela existência de posturas conflitantes entre técnicos de governo na aprovação de intervenções; (iiii) pela indefinição de prazos de aprovação de projetos, sujeitos a extensos e lentos processos burocráticos; (iiiii) pela falta de apoio técnico e financeiro aos proprietários de bens tombados.

Nesse sentido o desenvolvimento urbano tornou-se pejorativo e indesejável à preservação, porque uma ameaça. Representou uma forma de congelar para salvaguardar as condições físicas dos imóveis selecionados, que visa antes impedir transformações que viabilizar condições de fato para sua recuperação, manutenção e uso7. Ao congelar, isola, paralisa o bem atingido impedindo a sua inserção no entorno físico e social.



A descentralização da gestão do patrimônio

A preservação no Brasil foi de competência exclusivamente federal (IPHAN) até 1968, quando foi assumido pelos Estados (CONDEPHAAT) e depois pelos Municípios, em 1988 (Secretaria de Cultura). Estruturou-se de forma centralizada, refletindo posturas de um Estado nacionalista e da elite dominante, refletidas na definição dos elementos e manifestações da cultura a serem preservadas8. No fim do século XX, verifica-se um processo de descentralização da gestão do Patrimônio e de retomada dos ideais do Projeto Cultural Nacional9, que orientou a formação da política de preservação no Brasil, no início do século.

Acompanhando as transformações políticas do país, com o fim da ditadura militar, com as eleições diretas, com a abertura democrática, com a reestruturação da representação política de governo, com a conseqüente redução do papel do Estado na economia10, o crescimento das organizações sociais e a progressiva participação do capital privado nos diversos setores de produção, assistiu-se a um processo de reorientação das políticas públicas nas diversas áreas do desenvolvimento.

No planejamento urbano promoveram a abertura da participação da comunidade na definição e gestão das leis, através de ações mais transparentes, legítimas e viáveis. Regulamentando princípios expressos pela Constituição de 1988 a autonomia ao município na condução da política urbana é reforçada por novas leis11. Também é permitida ao Município a exploração onerosa do uso do solo urbano, para obtenção de recursos privados capazes de acompanhar o desenvolvimento. Aplicadas à cultura essas leis permitem criar novos formas de preservação: parcerias, consórcios, concessões, patrocínio e doações incentivadas. Viabilizam-se também programas de preservação urbana através de financiamentos externos (Projeto Monumenta), até então utilizados para infraestrutura.

A degradação do meio ambiente e a conscientização progressiva da sociedade da limitação dos recursos naturais12 implementam políticas de preservação ambiental com ampla participação através dos movimentos de organizações não governamentais (ONG). A inclusão social das camadas excluídas do desenvolvimento econômico é assumida como diretriz de políticas urbanas na educação, transporte, cultura, habitação e de acesso a equipamentos, para maior eqüidade e melhor qualidade de vida para todos. Tal cenário cria uma nova fase do planejamento no Brasil13, onde se insere a reorientação da política de preservação cultural.


A democratização dos processos de preservação

Com a municipalização do Patrimônio inicia-se a democratização dos processos de preservação. Com maior autonomia para seleção e mais fácil fiscalização de bens de interesse, conquistou-se a ampliação da representatividade14 dos bens a preservar e a maior participação da comunidade na gestão dos processos correspondentes.

Observam-se novas estratégias de apropriação do direito à memória urbana empreendidas pelos diversos atores envolvidos15 nesse processo, que se torna mais abrangente e dinâmico, por envolver inclusive interesses econômicos que passam a ser incorporados e equacionados pela administração pública.

As idéias de inserção do bem no seu entorno, de integração da preservação ao desenvolvimento urbano, econômico e social são valorizadas. A identidade local ganha relevância face aos processos de massificação de gostos e costumes que se espalha em vários países, promovidos pela comunicação eletrônica e pela globalização da economia, da produção e do consumo16.

Estão em curso novas formas de preservação, verificando-se a ampliação do interesse da comunidade pelo tombamento, transformado em um instrumento de características mais flexíveis e integrativas. O fato novo é que a preservação pode gerar contrapartidas, ou direitos para a obtenção de recursos financeiros para manutenção e preservação do bem considerado17. Identificar a forma como isso vem ocorrendo e as perspectivas de atuação através desses instrumentos de intervenção também são o intuito desta reflexão.



A inserção dos processos de preservação no desenvolvimento

Os projetos de preservação do Patrimônio são vistos nesta análise como processos18 que evoluem de forma a acompanhar as exigências das transformações políticas, econômicas, tecnológicas e sociais em cada período de formação da cidade19. A pesquisa de referência deste artigo demonstra a evolução das atitudes institucionais nos 3 níveis de governo no Brasil20 relativas à inserção do Patrimônio nas áreas da educação, da cultura, do planejamento urbano, do turismo, e recentemente, a convergência com a política de preservação do meio ambiente. É introduzida a noção de patrimônio ambiental urbano21.

Na perspectiva da sustentabilidade, os projetos de restauração e recuperação urbana são considerados como processos de intervenção para orientação do crescimento e desenvolvimento da cidade, capazes de gerar valores físicos, culturais e sociais, que ao serem explorados produzem os valores econômicos correspondentes22. Citam-se experiências ligadas ao turismo23, de difícil implantação no Brasil. Sem o devido apoio à proteção do bem exposto, ele fica sujeito a riscos de degradação precoce24.

Na dimensão das exigências do mercado imobiliário as áreas preservadas em geral não são atrativas aos investidores. Os diversos ciclos de substituição das construções na cidade de São Paulo25, para reprodução do capital imobiliário em cada período denotam esse fato. De um lado os valores econômicos agregados ao solo e às construções26 dificultam as intervenções nas áreas a preservar. De outro a tipologia das construções antigas dificulta a instalação de novos equipamentos com tecnologia adequada à atual demanda das atividades de comércio e serviços. Agrega-se ainda a localização das áreas a preservar na malha urbana, geralmente com baixa acessibilidade a veículos27. São fatores que representam deseconomias de escala.

O investidor imobiliário quer segurança, minimização de riscos e resultados financeiros rápidos. Opta por investimentos em áreas com menores restrições. O desafio que se coloca é como recuperar a atratividade das áreas de preservação. Nesse sentido a valorização da identidade local, salientando a peculiaridade das construções existentes, com incentivos de uso especiais, definidos por lei, é capaz de aglutinar interesses comuns dos cidadãos que estimam a localidade e a sua cidade.

Outro fator de risco é a aprovação dos projetos de restauro. A lei de tombamento define restrições de adequação física e funcional das construções28, para manutenção das suas “características originais”. Cabe ao proprietário atendê-las para manutenção e uso do bem de interesse da coletividade. A questão é complexa tanto do ponto de vista da aprovação dos projetos pelos órgãos competentes quanto da viabilidade de custo das obras. Existem aspectos subjetivos da lei, que permitem aos técnicos envolvidos interpretações divergentes29. Sem apoio técnico e financeiro institucional, sujeito a prazos indefinidos para aprovação, o proprietário abandona o imóvel ou o descaracteriza para fugir desse processo.

Conseqüentemente instalam-se os processos de degradação da edificação tombada - pública ou privada. Desse modo o bem, em geral inserido em área urbana que já passa por processo de substituição funcional no desenvolvimento da cidade30, perde completamente seu valor. Torna-se área propícia a invasão ou a usos coletivos precários31. A recuperação do seu valor simbólico, funcional e imobiliário, mesmo em áreas providas de serviços de infra-estrutura, exige da municipalidade esforços vultosos e incessantes32.



A isenção fiscal no incentivo da cultura

As leis mais usadas para a preservação do patrimônio são as leis de incentivos fiscais, que utilizam a renúncia tributária. Devido à falta de recursos de governo para investimentos culturais, a renúncia passou a ser “uma escolha dos governantes, como parte de sua política cultural, onde o próprio mercado realiza a escolha da atividade a ser patrocinada”33.

À experiência federal pioneira da Lei Sarney34, seguiu-se em São Paulo a Lei Mendonça, 1990, permitindo isenção do Imposto Sobre Serviço, ISS e do Imposto Predial e Territorial Urbano, IPTU. Admite-se como teto uma porcentagem anual da arrecadação desses tributos, que vai sendo distribuída entre as solicitações existentes. Essa lei atendeu no início, principalmente à demanda do teatro e do cinema, que foram atividades fortemente reprimidas no período da ditadura militar.

Os projetos realizados na área do Patrimônio são poucos, em relação às outras áreas da cultura (5%)35. Salienta-se ainda que entre os projetos apresentados (71), poucos são aprovados (37), e apenas alguns são realizados (6). Ou seja, essa lei apresenta baixa produtividade. Foi utilizada para obras de restauro de menor custo, como recomposição de retábulos, praças e esculturas. E em conjunto com outros incentivos.

Não teve uma aplicação regular nas diversas gestões de governo subseqüentes, caracterizando um processo descontínuo, com problemas de aprovação de projetos, de controle e de destinação de verbas tributárias. Isso gerou insegurança nos empreendedores e investidores. Há demanda crescente pela existência de poucas opções no mercado.

Em 1997, a Prefeitura de São Paulo criou a Lei de Fachadas, para incentivar a recuperação da área central, que despertou interesse da população porque permitia isenção de IPTU por 10 anos, porém foi muito pouco usada (3 anos). Quando os problemas de aprovação dos projetos e dos recursos foram equacionados, houve mudança de governo e a sua implantação não teve continuidade.

Existem projetos municipais para agregar a utilização da renúncia de diversos impostos incluindo o ITBI, Imposto de Transmissão de Bens Imóveis, visando a ampliação dos recursos a serem aplicados. Propõe uma distribuição mais eqüitativa e proporcional ao valor da obra. Isso permitiria atender a obras de restauro do Patrimônio, porém não foi regulamentada.

A renúncia do ICMS, Imposto de Circulação de Mercadorias, de recolhimento estadual, não tem sido admitida no Estado São Paulo para preservação. Contemplando essa finalidade, foi introduzida pelo Estado a Loteria Cultural. Regulamentada em 2003, essa lei não foi operacionalizada.

A lei federal que permite isenção do IR – Imposto sobre a Renda, para investidores culturais é a Lei Rouanet36. Aplica-se à produção de artes cênicas, artes integradas, artes plásticas, humanidades, literatura, música, patrimônio cultural e audiovisual.

A Lei Rouanet é uma experiência mais contínua e consolidada. Viabilizou investimentos culturais diversos e, principalmente nas artes visuais, a recomposição da produção cultural nacional37. Dessa forma permitiu a criação um mercado de atividades culturais que envolve produtores, empreendedores, investidores criando demandas fixas. Daí as inúmeras empresas de produção cultural constituídas nos últimos anos38, que estão dinamizando o setor.

Hoje a produção cultural no Brasil depende dessa fonte de recursos. No entanto apresenta baixo rendimento, pois ¾ dos projetos aprovados não são realizados. A maior dificuldade está em conseguir a captação de recursos.

A aplicação da lei Rouanet na área do Patrimônio apresenta um menor número de projetos, mas o maior volume de recursos captados (1996-2000), comparados a outras atividades culturais, devido ao custo elevado das obras de restauro. É a melhor experiência entre as leis de renúncia.

A realização de projetos de preservação do patrimônio através da renúncia fiscal é significativamente menor que nas outras áreas pelas próprias características do mercado ligado à preservação da memória: projetos de restauro interessam a uma pequena parcela da sociedade; são complexos; exigem altos investimentos; prazos indefinidos de aprovação do projeto pelos órgãos competentes; implantação da obra a médio e longo prazo; retornos de difícil mensuração.

Ainda que tais leis apresentem problemas como privilegiar determinadas demandas regionais e grandes investidores, que absorvem grandes parcelas da destinação anual de recursos, falta de divulgação, problemas burocráticos, e limitações de uso dadas por exigências de mercado financeiro entre outros, representam uma das únicas opções para investimentos culturais.



As leis que permitem a exploração onerosa do espaço urbano aplicada à preservação

Procurando dar suporte para implantação de intervenções urbanas, a legislação municipal recente introduziu instrumentos urbanisticos que permitem ao município participar da exploração econômica do espaço39. Diversas formas de alavancar recursos privados para finalidades públicas são introduzidas através de parcerias com a iniciativa privada40, viabilizando interesses comuns.

Com base em experiências semelhantes francesas (“plafond legal de densité”41) e americanas (“development right transfer”42), foram definidos novos instrumentos de intervenção na cidade. Aparecem as trocas de direitos de construir43, realizadas por mecanismos do mercado imobiliário, introduzidos nas leis. Trata-se da outorga de direitos adicionais de uso do solo, concedidos pelo município aos interessados em construir acima dos limites aprovados por lei. Essa outorga ou cessão de direitos é feita de forma onerosa. É uma forma do poder público atender tanto àqueles proprietários interessados em construir mais quanto àqueles proprietários penalizados pelas restrições impostas pela preservação, compensando-lhes as suas perdas.

Cita-se aqui a Outorga Onerosa de Potencial Construtivo utilizada nas Operações Urbanas, para diversas finalidades, e na Transferência de Potencial Construtivo para restauração do patrimônio. O interesse desta reflexão é estudar as experiências de transferência da Operação Urbana Centro, realizadas no município de São Paulo (1997-2000). São iniciativas pioneiras, porque anteriores à aprovação da lei federal que lhes deu suporte: o Estatuto da Cidade44, aprovado em 2001.



1. As Operações Urbanas

São leis criadas para permitir maior autonomia ao município para implementar processos de reurbanização sustentáveis45. Iniciadas na década de 90 em São Paulo, as Operações Urbanas foram criadas como uma forma da administração poder acompanhar a necessidade de requalificação de áreas urbanas. É uma forma de projetar intervenções, num perímetro da cidade, para uma determinada finalidade, capazes de gerar recursos para sua implantação. Trabalha com o adensamento oneroso das construções, através de projetos aprovados por lei.

A partir do conceito de solo criado46, que se refere às possibilidades de construção em altura nos lotes, foram definidos por lei os níveis mínimos e máximos admissíveis de ocupação dos lotes, de forma gratuita. Isso permitiu à municipalidade introduzir a outorga onerosa de área construída em áreas de interesse ao adensamento vertical das construções. Permite-se a maior exploração de áreas públicas e privadas, desde que o empreendedor imobiliário arque com parte desses custos.

Isso permitiu à municipalidade em determinados perímetros da malha urbana, aprovados por lei, a arrecadação de recursos extraorçamentários para atender às necessidades da execução de obras locais de adequação da infra-estrutura e equipamentos, capazes de suportar o adensamento proposto. Representa uma conquista do planejamento da cidade, que permite ao município participar da renda auferida pelo setor imobiliário da execução de melhorias na utilização do espaço público. Se bem utilizada poderá alterar significativamente a qualidade da requalificação urbana proposta a essas áreas.



2. A transferência de potencial construtivo para restauração

A transferência de potencial construtivo47 é a outorga onerosa de um bem tombado transferida a um terceiro, capaz de adquirir esse direito. É um instrumento que cria uma parceria na transação de troca entre 2 partes: a que cede e a que recebe o direito de construir, numa relação mediada pela Prefeitura.

Permite ao proprietário de um bem tombado vender uma área potencial ou hipotética, que poderia ser construída no seu lote, se o imóvel não fosse tombado. Essa área é avaliada, caso a caso, e alienada a um terceiro. Isso é possível pela conversão em valor monetário48 da área adicional que é transferida por um valor equivalente. A Prefeitura fiscaliza esse processo, autorizando o uso de recursos conforme cronograma da obra, para que o restauro seja feito conforme o projeto aprovado.

Pode atender a bens privados e a bens públicos tombados, quando estes forem bens dominiais, podendo auxiliar na sua manutenção, com deficiência crônica de verbas.

Foram observadas as práticas dos diversos órgãos municipais envolvidos para aplicação desse instrumento aprovado pela lei da Operação Urbana Centro em 1997.

Observou-se que num primeiro momento houve mais demanda por comprar potencial que de oferta para venda. Houve mais interesse dos investidores imobiliários em comprar potencial. Já os proprietários de imóveis tombados, que poderiam vender potencial, em geral desconheciam a lei, e não disponibilizaram seus direitos.

Em 4 anos houve 101 propostas, das quais 33 foram para ceder potencial e 33 para comprar e outras 34 para regularização de imóveis através de concessão onerosa. Apenas 11 propostas foram aprovadas. Isso de deve ao complexo processo de aprovação então proposto que envolveu muitos órgãos (4 Secretarias: Planejamento, Habitação, Cultura e Finanças, a EMURB, Bancos e Seguradoras) envolvendo decisões conflitantes e demoradas.

Porém essa lei sofreu outros impactos negativos logo após a sua aprovação, que impediram viabilizar as propostas existentes e inibiram novas, como:
• A falta de divulgação do instrumento.
• A complexidade dos cálculos envolvidos para chegar ao valor equivalente de troca em área e em valor monetário (dinheiro).
• A falta de estrutura de atendimento técnico aos proponentes.
• A dificuldade de aprovação do orçamento, pela falta de valores oficiais de referência para obras de restauro, que envolvem atividades artísticas, por exemplo.
• A dificuldade de acompanhamento para controle dos desembolsos.
• O grau de incerteza desse processo, que exige aprovação de 2 ou mais projetos correspondentes (pelo menos um de cessão e um de compra de potencial com valores equivalentes), para atingir os valores desejados pelas partes envolvidas.

O fato mais importante foi a contestação feita pelo Ministério Público, que não reconheceu ao Município o direito de exercer a transferência de potencial construtivo da área central para outras áreas da cidade, sem aprovação do legislativo. Essa ação, contestada pela Prefeitura, gerou total insegurança nos investidores e paralisou os processos. Foi resolvida em 2002, com a aprovação da lei do Plano Diretor Estratégico SP, que definiu os perímetros de adensamento passíveis de receber transferências de imóveis tombados da área central. Finalmente com a mudança de gestão houve a estagnação dos processos até então propostos pela Operação Urbana Centro.

A aprovação do Plano Diretor, se por um lado permitiu a regularização das transferências, por outro, tornou o instrumento pouco atrativo. Isso se deve à limitação da taxa de transferência e ao fato da Prefeitura passar a vender potencial diretamente aos interessados na compra, sem necessidade dos complexos processos de transferência vinculados à de preservação de determinados bens. Apesar de constar da lei do Plano Diretor, a transferência tornou-se pouco interessante à preservação.

Para que essas intenções se viabilizem é preciso vontade política para criar processos eficientes, com disponibilidade de técnicos competentes e disponíveis para estruturar o atendimento dessa finalidade, em instâncias administrativas com autonomia de decisões, para que as respostas sejam mais ágeis e conclusivas.

É possível apontar conquistas nos processos de preservação que estão sendo estruturados como:
• A dinamização da interface entre os atores envolvidos nesse processo: de um lado os técnicos, o poder público, o proprietário, os usuários; de outro os empreendedores; os patrocinadores de projetos culturais.
• O apoio à participação da sociedade organizada (ONGs, Associações, etc.) para melhoria da qualidade de vida de todos.
• A atuação institucional como “ponte” entre o agente financeiro e o proprietário e com autonomia na gestão dos planos em perímetros de preservação.
• A criação de contrapartidas financeiras para compensar as perdas provocadas pelo tombamento e a criação de recursos para manutenção do bem tombado.
• A introdução de incentivos para dinamizar atividades que gerem renda e emprego nas áreas tombadas, exigindo cooperação entre os 3 níveis de governo.
• A integração de diretrizes de políticas públicas (habitação, transporte, educação) à preservação com flexibilização das exigências para aprovação das propostas.

Finalmente salienta-se que o resultado positivo desse processo verifica-se pela crescente disposição da comunidade em participar da recuperação da área central, através de Associações de usuários (empreendedores, comerciantes moradores e outros), de movimentos por interesse de uso, como de moradia, segurança, entre outros. Isso denota a existência de interesse em alterar os aspectos negativos ligados ao tombamento, até então relacionados ao abandono, desvalorização e destruição do bem atingido.

Ainda que as experiências analisadas sejam incipientes, apontam um caminho que poderá ser trilhado para a sustentabilidade e integração do Patrimônio ao desenvolvimento.




 
1 Fróes, Marilda Stenghel. Novos Instrumentos de Incentivo à Preservação do Patrimônio: a experiência recente no município de São Paulo.Dissertação de mestrado, FAUUSP, SP, 2005.

2 Fonseca, M Cecília Londres. O patrimônio em processo, UFRJ, IPHAN, 1997

3 http://iphan.gov.br/legislac/decretolei25.htm/ Decr. 25/1937: Inscrição do imóvel no livro de tombo.

4 Santos, Milton. Paisagem e método:espaço tempo e conhecimento, vídeo 192, FAUUSP, SP, 1995

5 Fonseca, (1997:115).

6 Fenerich, Antonia R. Luz. Preservação em São Paulo: análise de procedimentos.FAUUSP, SP, 2000.

7 Mengozzi, Frederico. A difícil equação de tombar e preservar. In Revista Urbs, 28, SP, 2002, p.24-25.

8 Fonseca 1997;

9 Fonseca, 1997: cita os ideais de Mário de Andrade, Paulo Duarte e Oswald de Andrade, onde a cultura é representada por todas as formas de manifestação relavantes da população, inclusive das minorias.

10 Sevcenko, Nicolau.O desafio das tecnologias à cultura democrática.In, Pallamin Vera, org.Cidade e Cultura.SP, Estação Liberdade, 2002.

11 Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 do Estatuto da Cidade

12 Relatório Brundthland Nosso Futuro Comum: Comissão Mundial sobre o meio ambiente e desenvolvimento.1ºed. RJ, FGV, 1988.

13 Villaça, Flávio, Dilemas do Plano Diretor.In: o Município no Séc. XXI:cenários e perspectivas. SP, CEPAM, Ed. Especial:1999.

14 Fenerich, 2000: analisa critérios de seleção pela sua dimensão racional, sensorial e emocional

15 Ver Meneguello, 2000. São atores os representantes do setor terciário (empreendedores, consultores, técnicos comerciantes e construtores), da administração pública (técnicos de governo), representantes da comunidade, moradores e representantes de entidades civis e de classe.

16 Arantes, Otília B. F. Cultura e transformação urbana. In Pallamin, Vera org: Cidade e Cultura, SP, Estação Liberdade, 1997.

17 Não se refere aqui aos incentivos turísticos atrelados à preservação de cidades históricas, por ex. Mas à exploração do potencial construtivo, de uso e ocupação do solo urbano, aplicado à preservação.

18 Ver Fonseca, UFRJ / Minc / IPHAN,1997: O Patrimônio em Processo.

19 Ver SÃO PAULO, Estado, IPEA ,1978: 33 -35: A idéia de Patrimônio Ambiental Urbano é um desdobramento natural da noção de Patrimônio Histórico e Artístico; enquanto a noção originária se baseia nos atributos de singularidade e monumentalidade, a noção mais recente reconhece antes o valor representativo dos aspectos históricos, sociais, culturais, formais, técnicos e afetivos dos elementos, como critério para sua inclusão. Espaço urbano e seus componentes estão sempre associados ao relacionamento social que nele tem lugar. Não a mera preservação de edificações, mas a trama de interações que lhe confere a vitalidade e importância, transformando-os em patrimônio vivo.

20 Fróes, Marilda S. Op. Cit. item1. Cap. 1, Quadro de referência sobre a formação institucional do Patrimônio no Brasil

21 Moreira, Antonio Claudio M. L. Mega projetos e ambiente urbano. Tese de doutorado, FAUUSP, SP, 1997.

22 Menezes, Ulpiano T. Bezerra, 3:Comunidade em debate.EMPLASA, SP, 1978:122.

23 Iniciadas com o tombamento de Ouro Preto 1933 : Monumento Nacional.

24 Estudos de capacidade de suporte aos fluxos turísticos orientam os projetos mais recentes na Europa.

25 Toledo, Benedito Lima de. Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno. Identifica em SP: 4 períodos: em1875, João Theodoro; no início sec. XX, Antonio Prado; com Duprat; e com 1938-1945 Prestes Maia. SP, Empresa das Artes, 1996.

26 Ver Programa de Reabilitação do Centro de São Paulo, EMURB/ PMSP/BID/2002: desvalorização imobiliária avaliada pelo IPTU, pela obsolescência das edificações, pelo esgotamento do estoque fundiário para novas edificações, pela poluição sonora e da paisagem, e pela falta de segurança.

27 Ver Toledo, 1996: - na parte mais antiga da área central de SP o arruamento é resultante da ocupação original da cidade, do século XVI, com quadras irregulares entre ruas estreitas e sinuosas. A expansão do início do século, no centro novo, permitiu melhor acessibilidade de veículos. Os bondes e o depois o metrô, privilegiaram o acesso de pedestres da metrópole ao centro histórico de SP.

28 Estabelecido pelo Decreto 19.835 / 84, que define lista de imóveis e os níveis de preservação na Z8-200, e regulamenta o art.2 da lei 8328/75, que define a zona especial de proteção citada.

29 Principalmente quanto à manutenção das “características originais das construções”, art. da lei, onde o Estado (CONDEPHAAT) e o Município (DPH) apresentam análises contraditórias entre si.

30 Frugoli Jr, Heitor. Centralidade em São Paulo. Editora Cortez, EDUSP, SP, 2000.

31 Ver Rocha (2004)p. : “todo casarão vira cortiço, não só aqui, no mundo todo”.

32 Citam-se diversos investimentos na área central feitos nos últimos 30 anos. Na década de 70 a implantação do Metrô, dos Terminais ônibus, do calçadão de pedestres, e as obras na Praça da Sé, da República, a revitalização do Edifício Martinelli, e o programa São Paulo Mais Bonito, restauração do viad. Santa Ifigênia, da Galeria Prestes Maia. Na década de 80 a reforma do Teatro Municipal e o projeto do Vale do Anhangabaú; na década de 90, a conclusão das obras do Vale do Anhangabaú; a transferência do Gabinete da Prefeitura ao Palácio das Indústrias, o Parque D. Pedro; a partir de 2000 o Programa Ação Centro, com diversas intervenções pontuais incluindo o incentivo à habitação de interesse social. Devido à falta de manutenção, alguns locais foram restaurados mais de uma vez nesse período como o viaduto Santa Ifigênia, (1979 e1998), a Praça Ramos de Azevedo e a Ladeira da Memória e o Lg São Francisco (1991 e 2000) e a recuperação integral do Mercado Municipal.

33 Olivieri, Cristiane. Cultura Neoliberal, SP, Escrituras, 2004.

34 Lei Sarney1986-90, revogada gov. Collor, foi bem aceita, atendeu à demanda, mas foi mal gerida.

35 Período analisado: 1991 e 1995. Dados não oficiais mais recentes não permitiram avaliação

36 Criada em 1990, foi regulamentada em 1995.

37 Brandt,2002:8 - Mamberti, cita o Estado como fomentador da cultura, através de projetos competentes

38 Veja-se pela literatura produzida orientando a execução de projetos culturais.

39 Azevedo Netto, 1994. O jogo das interligadas. Dissertação de mestrado. EAESP FGV,SP, 1994.

40 Arantes, Otília Mudança do papel do Estado delegando a terceiros a implementação de serviços públicos e de ações de cunho sóciocultural, acompanhando a mercantilização do espaço urbano.

41 SP Câmara Vereadores. CPI Operações Interligadas: Relatório final. Em 1975, foi estabelecido em Paris o Coeficiente Básico de construção gratuita igual a 1,0 (hum) - uma vez a área do lote, e de 1,5 – para toda a França. Acima desse limite a concessão do direito de construir somente poderia ser obtida por meio de compra e somente o Estado poderia vendê-la.

42 SP Câmara Vereadores. CPI Operações Interligadas: Relatório final. Chicago, 1973, houve o tombamento de edifícios de 2 e 3 andares, em local passível de construir em altura. Para apoiar esses proprietários, que foram prejudicados, criou-se a transferência do direito de construir para terceiros.

43 Outras exceções à lei vigente foram autorizadas como: alterações de uso, de taxa de ocupação, de uso do espaço aéreo e subterrâneo.

44 Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001.Recomenda: autonomia municipal, inclusão social urbana, direito à moradia digna e participação para legitimação do processo de urbanização da cidade.

45 A partir a experiência da Operação Interligada, a lei da Operação Urbana estabelece condições para que direitos adicionais de uso e ocupação do solo, possam ser concedidos aos proprietários de imóveis contidos na área de intervenção em troca de uma contrapartida financeira, paga à Prefeitura, que será empregada em melhorias urbanas na região”, Cartilha da Área Central, PMSP, 1997.

46 Ambrosis, Clementina de. Recuperação da valorização imobiliária decorrente da urbanização. In: O Município no Século XXI: cenários e perspectivas.SP, CEPAM. Ed. Especial, p.275-284, 1999.

47 Operação Urbana Centro, lei 12.349/87.art.4º, inc II; art. 7º, parágrafos 1º a 10º e art. 10º.

48 Avaliação imobiliária feita no local que cede e no local que recebe as cotas de construção, calculada pos regras de proporcionalidade entre os valores envolvidos, definidas pela lei.