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NOVEMBRO/2005: Resenha Crítica "Patrimônio Histórico Cultural"
Pedro Paulo Funari 1
 

CAMARGO, Haroldo Leitão, . 2ª. Edição. São Paulo: 2004.
ISBN 85858876729.



Haroldo Leitão de Camargo, com sua sólida formação no campo da História e do Turismo, possui larga experiência na área e, por isso, produziu uma pequena pérola sobre um tema de importância capital para o Turismo: o patrimônio. De fato, num mundo de comunicações instantâneas e de desterritorialização dos serviços, podemos ter acesso, em nossas próprias cidades, a um imenso manancial virtual e ao consumo de tudo que o mundo pode oferecer, da cozinha tailandesa ao artesanato africano. Neste contexto, mais do que nunca, o deslocamento turístico assume significado cultural, pois na origem da viagem está o desejo de conhecer e vivenciar, no seu ambiente próprio, uma outra cultura. Não se pode, portanto, desvencilhar Turismo e cultura, e o livro de Leitão de Camargo representa uma excelente introdução ao tema.


O Turismo liga-se ao desenvolvimento do capitalismo. O barulho, poluição, trânsito lento, ritmo acelerado nas construções, tudo isso já era vivenciado pelos londrinos, há mais de dois séculos. Esse ambiente urbano, resultado da divisão social do trabalho, gerou, também, as oportunidades de evasão, ao menos por parte da elite, em busca do lazer e das viagens. Roma e Londres não eram ou são cidades industriais, mas centros urbanos da sociedade industrial, a mostrar que o capital transformou a vida urbana não apenas nos centros industriais como, talvez ainda mais, nos centros urbanos ligados ao capital. Neste contexto, surgiram os conceitos de preservação e conservação do patrimônio nacional, no bojo da Revolução Francesa, que viriam a fundar as bases do Patrimônio no Brasil e, também, da própria Humanidade.


Leitão Camargo remonta às origens, ao mostrar que, até fins do século XVIII não havia museus, pois as coleções de objetos eram de acesso limitado. Com o estado nacional resultante da Revolução Francesa, surgem os monumentos, construções que visam a perpetuar a memória. As viagens culturais são muito anteriores, pois desde 1670 já se mencionava o grand tour. O humanismo renascentista, ao retomar os estudos sobre o mundo antigo, forjou um modelo de conhecimento que se baseava no domínio da língua latina, tornando-a universal. As antigüidades pompeianas tiveram um enorme impacto na produção artística européia, nos modismos. Os deslocamentos ainda não são o turismo moderno, pois são acompanhados pelos servidores e os equipamentos comerciais são raros e precários. De toda forma, a sensibilidade e os olhares britânicos principiam a inventar o turismo.


Para a criação do turismo, dois fatores ligados à revolução industrial devem ser mencionados: as locomotivas e os navios a vapor que, aliados ao telégrafo, foram fundamentais para a organização das viagens. Apareceram, na seqüência, as atividades de suporte básico, na hospedagem, alimentação, transportes. Os guias turísticos começam a difundir-se a partir da década de 1830. As livrarias em estações de trem, na Inglaterra e França, a partir de 1850. Antes de aprofundar-se sobre o turismo no Brasil, Camargo trata do lazer no Rio de Janeiro, já no século XIX. Mostra como a escravidão marcou a visão de mundo da elite carioca. Petrópolis foi a primeira estância climática no Brasil, para recreio da corte. A modernização da capital federal no início do século XX voltava-se para expulsar a ´aldeia africana´ que maculava a visão idealizada de cidade burguesa, ´Paris nos trópicos´. Idealizam-se as edificações coloniais ou de partido colonial, desde a Primeira Guerra Mundial, reação das elites de origem lusa para reafirmar seu prestígio e antigüidade, frente à imigração européia. A viagem, em 1924, a Ouro Preto e outras cidades coloniais mineiras, com a participação de Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e figuras da elite cafeicultora paulista, como Paulo Prado, terá papel relevante nessa invenção do patrimônio nacional, identificado ao colonial. Durante o Estado Novo, com a criação do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1938, o Turismo fazia parte do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e o turista deveria ver o que o governo ditatorial determinava. Havia uma intenção de promover o turismo cultural nas cidades históricas mineiras.


Seria necessário esperar a restauração da democracia, após a última ditadura, na década de 1980, para vencer as resistências modernistas para a incorporação de outros bens que não os barroco-coloniais. O mais importante é que a reiterada preocupação com as raízes e com as tradições, que sabemos inventadas, não deixou de acalentar uma nostalgia pelo passado escravista, rejeitando o legado dos descendentes dos escravos, dos imigrantes e das classes populares em geral. A identidade nacional foi tomada a partir de um modelo normativo, que pregava uma única identidade homogênea, enquanto a teoria social, nas últimas décadas, tem ressaltado a multiplicidade e fluidez dos vínculos identitários. Isso tudo tem conseqüências para o Turismo no Brasil. As pessoas só se locomovem se quiserem conhecer outras realidades e se, também, puderem se identificar, ainda que em parte, nas novas experiências sensoriais das viagens turísticas. Neste sentido, o diagnóstico de Haroldo Leitão Camargo sobre o caráter elitista e patriarcal da sociedade brasileira e, por conseguinte, do Turismo, assim como das políticas turístico-patrimoniais, contribuem, de forma produtiva, para a discussão dos rumos do Turismo no país.


Nos últimos anos, tem havido uma multiplicação de cursos de graduação e pós-graduação na área do Turismo, surgiram revistas e coleções especializadas e o Turismo cultural viu ampliarem-se as reflexões sobre o tema. As discussões das Ciências Sociais e Ambientais sobre a diversidade cultural e natural não deixaram de serem consideradas pelos estudiosos do Turismo. As especificidades da sociedade brasileira, com sua História de relações patriarcais que resultaram numa das maiores desigualdades sociais no planeta, também têm sido consideradas importantes para que se possa refletir sobre como gerir, de forma includente, o Turismo. O livro de Haroldo Leitão Camargo mostra como é importante diagnosticar as origens históricas do Turismo cultural, para que se possa propor políticas que gerem prosperidade não apenas para os visitantes com recursos, como para os turistas comuns e para as comunidades locais. Desta forma, a consciência das desigualdades que marcam o passado pode ajudar a propor um futuro menos excludente. A atenção à diversidade cultural no passado ensina, também, a valorizar a diversidade no presente e no futuro. Leitura obrigatória para os estudiosos do Turismo, por sua abrangência, este livro também constitui uma pequena jóia para historiadores, museólogos, para todos que se preocupam com o patrimônio ou que, simplesmente, querem melhor conhecer os desafios diante da nossa sociedade no início do século XXI.
 
1 Professor Titular do Departamento de História e Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos, Universidade Estadual de Campinas, C. Postal 6110, Campinas, 13081-970, SP, .