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Patrimônio na metrópole: propostas para um roteiro judaico em São Paulo 1 - PARTE 2
Andréa Kogan 2
 
A presença judaica em São Paulo

1. Imigração e marcas nos bairros da cidade
Este trabalho não tem como objetivo mostrar a análise imigratória dos judeus para o Brasil e suas diferentes datas de chegada, mas é necessária uma explicação que limite e balize o tempo a fim de explicar a influência brasileira na cultura judaica e vice-versa. Será tomada como ponto de partida a Constituição de 1891, que separa a Igreja Católica do Estado e libera a prática das religiões ou até de outras confissões cristãs não-católicas.

É fato conhecido a questão da existência de judeus no Brasil desde, pelo menos o final do século XVII, em que há noticias da construção da primeira sinagoga em Pernambuco mais especificamente no Recife.

“`formada por judeus holandeses de origem ibérica, durante a ocupação holandesa (final do século XVI e inicio do século XVII), que foi desfeita com a expulsão daqueles ocupantes pelos portugueses.(...) Entretanto, há casos de indivíduos, de famílias e mesmo de pequenas comunidades estabelecidas no Brasil de longa data, que reivindicam suas origens judaicas ibéricas, chegando em alguns momentos ao retorno a religião israelita” 39

Apesar de alguns historiadores e estudiosos afirmarem a existência de judeus nas caravelas desde a chegada de Pedro Álvares Cabral do Brasil, o trabalho proposto não irá discutir tal fato, prová-lo ou desmenti-lo, somente tratará dos judeus vindos para o Brasil, desde 1891, como exposto acima e dos grandes fluxos que aqui se estabeleceram no Século XX.

Por meio de dados mostrados no livro O Brasil e a questão judaica, de Jeffrey Lesser, podemos notar uma maior quantidade de imigrantes chegando ao Brasil antes da Primeira Guerra Mundial, cerca de 8.750, entre os anos de 1901 e 1914, além de grandes contingentes entre 1962 e 1942. Neste período, cerca de 40 50.000 judeus entraram em território nacional 41. É preciso salientar, porém, que esses números são aproximados e não podem ser confirmados, pois quando os estrangeiros de origem judaica aqui entravam seus passaportes não continham informações quanto à religião, apenas a nacionalidade. Assim sendo, russos, poloneses, austríacos, húngaros e alemães podem apontar para indivíduos e famílias judaicas.

Os judeus que aqui chegaram, chegaram antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Vale ressaltar que o anti-semitismo não foi algo criado por Adolfo Hitler no começo da guerra, é um fenômeno anterior e podemos notá-los desde:

“o Congresso de Viena (1814-1815), quando reorganizaram-se as áreas limítrofes dos países europeus, a Alemanha formou um bloco unido no centro da Europa Deutesche Bund – Confederação Germânica. Neste contexto os judeus passaram a ser registrados como pertencentes a uma raça inferior..” 42

Por meio da propagação dessas idéias, tem se como resultado uma das maiores tragédias conhecidas do homem contemporâneo: a morte de seis milhões de judeus em campos de concentração nazistas entre 1941 e 1945. Vários sobreviventes de campos de concentração também vieram para o Brasil em busca de refúgio e paz. Ainda hoje, alguns membros de associações dos sobreviventes do Holocausto são ativos na comunidade judaica e até fora dela, proferindo palestras e conscientizando as novas gerações nascidas no Brasil e que viverem a Shoa (holocausto).

O Holocausto ainda é um dos principais temas abordados quando o assunto é judaísmo, e o principal, tanto em meios acadêmicos quanto em publicações diversas como livros e artigos em revistas. É comum encontrar discussões sobre este assunto em entidades judaicas ao redor do mundo. Em várias universidades americanas, uma das mais importantes disciplinas de cursos relativos ao judaísmo é sobre o holocausto e sua influência histórica no homem contemporâneo. Há pesquisadores que dedicam toda a sua vida acadêmica a esse estudo. Inúmeros livros sobre judaísmo publicados no mundo também e sobre a tragédia ocorrida na Segunda Guerra Mundial. Há uma necessidade interior dos judeus de sempre repetirem e estudarem o tema para o acontecimento seja rememorado e ainda as pessoas lêem sobre o holocausto em datas comemorativas celebradas diante de públicos eminentemente judeus e reportadas como eventos na vida das comunidades judaicas 43. Mas, como já esclarecido na introdução desta dissertação, é necessária uma proposta nova para que o judaísmo não seja sempre enfocado por essas razões. Há uma enorme riqueza cultural judaica e por mais que o assunto do holocausto precise ser resgatado, o tema não deve se tornar uma obsessão acadêmica ou literária.

Como anteriormente foi necessária a delimitação de tempo, agora se faz necessária a delimitação do espaço. Não será possível abordar a chegada de judeus e o estabelecimento em diversos estados brasileiros, embora tenha sido riquíssima a contribuição judaica para alguns desses estados, como Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, dentre outros. O trabalho aqui proposto aludirá apenas, à imigração para a capital paulista.
Ao chegar a São Paulo, vindos do Porto de Santos, inúmeros bairros da capital foram escolhidos para o início de uma nova vida. A proximidade com a região da Estação da Luz e com os pontos comerciais importantes no começo do século, era considerada um dos principais motivos do estabelecimento de imigrantes judeus em bairros centrais da cidade. Alguns deles, até hoje, continuam com marcas judaicas acentuadas em suas ruas, como é o caso do bairro do Bom Retiro que recebeu um grande número de judeus que se misturaram aos imigrantes italianos, que ali já haviam se estabelecido. Hoje em dia, é impossível para quem anda pelas ruas do Bom Retiro, surpreender a atmosfera tipicamente judaica que existia até algumas décadas atrás, quando o comércio se encontrava nas mãos de empresários judeus, além de diversas escolas e sinagogas.

O Bom Retiro vem atualmente se transformando; os rostos mais comuns vistos no bairro são de coreanos, bolivianos e peruanos. 4445

Todavia, por mais que outras características despontem neste local, antes tipicamente judaico, o Bom Retiro ainda é um bairro com referências judaicas visuais impactantes. É um sitio com grande concentração de sinagogas, além de restaurantes e lanchonetes. A respeito dos templos judaicos, Marcio P. Santos comenta:

Um diferencial a mais será encontrado principalmente em suas sinagogas, o que fez do Bom Retiro o bairro onde encontramos o maior numero delas no país e talvez no mundo – são cerca de dez, concentradas em quatro quilômetros quadrados.

Além do bairro do Bom Retiro outros sítios da cidade de São Paulo serviram de abrigo para as novas famílias judaicas que aqui chegavam. Ipiranga, Brás e Vila Mariana, dentre outros, foram locais de extrema importância, no início do Século XX na cidade quando receberam um numero expressivo de judeus.

Famílias inteiras moravam em pequenas habitações em alguns daqueles bairros. Os pais da família iam em busca de emprego ou já haviam conseguido trabalho, enquanto as mulheres tomavam conta dos filhos e cuidavam dos afazeres domésticos, como em qualquer família de classe média baixa, dos idos de 1900.

Os judeus prezavam uma educação religiosa para seus filhos e sempre procuravam manter seus rituais mesmo longe da pátria natal e em um país antípoda daquele que nasceram, a começar pelo clima. As festas que ocorriam na Europa, no inverno, agora iriam ser celebradas em pleno verão e vice-versa. As estações e as condições climáticas diversas podem ter modificado algumas das tradições e alguns rituais trazidos dos países europeus. A absorção cultural de algumas práticas, principalmente alimentares, pode ter acontecido devido às mudanças climáticas e à sazonalidade para obtenção das matérias primas. Os rituais judaicos e suas práticas alimentares serão abordados posteriormente.

O Bom Retiro ainda pode ser considerado um bairro étnico nas reminiscências coletivas da população paulistana, principalmente porque preserva certas características que nenhum outro bairro da capital conseguiu construir ao longo da passagem dos judeus por suas ruas. Apesar de vários outros bairros serem também habitados por judeus, o Bom Retiro ainda representa uma volta para casa ou retorno às origens. Como salienta o historiador Boris Fausto:

“Embora não abandone a primeira (vida comunitária), construindo clubes e sinagogas a sua volta, já não terá contato cotidiano com a comunidade e poderá encarar o bairro étnico com os tempos heróicos aonde agora só vai comprar comida casher, ou para manter contato com velhos personagens que não quiseram ou não puderam se mudar” 46

Vale ressaltar que os judeus percorreram a cidade de São Paulo e mudam de endereço, como qualquer cidadão que resida na capital paulista, independentemente de sua escolha religiosa. Todos procuram segurança, condições favoráveis para a criação dos filhos e comodidade.

Como se pode observar, por mais que o Bom Retiro não seja o mesmo de décadas atrás, ele ainda é considerado um bairro étnico por seu passado histórico.

Quando algum membro da comunidade judaica decide mudar para um bairro diferente, que não possua uma infra-estrutura judaica - se é que podemos chamar sinagogas, restaurantes, mercearias e escola desta maneira – ele leva consigo os seus hábitos o que faz reconstruir ambiente judaico onde quer que vá. A passagem dos judeus pelos bairros deixa marcas na paisagem urbana.

Depois de estarem trabalhando com relativo sucesso no comércio da cidade, veio a oportunidade para a mudança de moradia. Muitos bairros abrigavam inúmeras indústrias ou tornaram-se unicamente comerciais (o Bom Retiro, por exemplo), e fazia-se necessário algum lugar mais estritamente residencial e mais sossegado distante da agitação. Iniciou-se então a expansão para diversas regiões da cidade, o que não indica apenas mudanças para a comunidade judaica, mas para os próprios bairros que acolheram os novos moradores e adquiriram novos traços.

Várias casas foram transformadas em sinagogas, o que significa dizer que há prédios que funcionam como sinagogas adaptadas e não construídas especialmente para este fim. Algumas leis baseadas na bíblia precisam ser seguidas para que uma sinagoga exista, para que um prédio ou uma casa possam dar lugar a um templo judaico, como por exemplo, a posição da Arca Sagrada que precisa estar voltada para a cidade de Jerusalém. Além disso,

“A planta da maioria das sinagogas é retangular, com a parte mais longa indo do oeste para o leste. Há uma ou duas cadeiras de cada lado da Arca, sobre a plataforma e o presidente e quaisquer convidados eminentes nelas se sentam durante o serviço. Acima da arca suspenso do teto, há uma lâmpada que está sempre acesa, dia e noite chamada de luz eterna” 48

Uma das características mais importantes da religião judaica refere-se à educação. É fundamental para todos os membros da comunidade que as crianças tenham oportunidades de estudo. A comunidade não precisa ter um clube ou um restaurante para configurar como tal, mas a educação e imprescindível. Por isso a quantidade de escolas judaicas é bastante expressiva dentro da cidade de São Paulo, tanto pra os judeus mais ortodoxos quanto para os liberais ou laicos. Os bairros onde as escolas estão localizadas variam também de acordo com a passagem da comunidade pelos mesmos. Exemplos (como já mencionados na introdução deste trabalho: Renascença – Higienópolis, Colégio I.L Peretz – Vila Mariana Colégio CN Bialik – Pinheiros, Escola do clube A Hebraica – Jardim Europa, Colégio Iavne Beith Chinuch – Cerqueira César e Bom Retiro).

Além das escolas é preciso, também notar a localização de outras entidades para pontuarmos a presença da comunidade judaica nas várias regiões da cidade. Por mais que haja uma tendência de concentração de judeus somente em alguns bairros, a comunidade não se restringe a esses pontos, mas acompanha a expansão territorial de São Paulo (como os dois clubes citados no capitulo anterior, localizados um na região norte: Macabi e outro na região sul – a Hebraica). Os judeus, por meio do trabalho, foram conquistando novos espaços e criando, de uma certa maneira, comunidades dentro de uma comunidade maior.


2. O patrimônio cultural judaico em um país católico
Desde a chegada de judeus ao Brasil as características religiosas e culturais deste grupo étnico procuram ser conservadas pelos membros.

Uma das diretrizes deste trabalho é mostrar, principalmente por meio de características relativas à gastronomia, o patrimônio deste povo; o quão rico ele é e o encontro de culturas diversas no Brasil, mais especificamente na capital de São Paulo. Entretanto, para verificarmos as características brasileiras dos judeus que aqui vivem, se faz necessária uma pequena abordagem de conceitos e ritos da religião judaica que são transmitidos de geração em geração seja qual for a localidade onde os judeus tenham se estabelecido. E ao mesmo tempo considerar as influências observadas no judaísmo local, em virtude da imigração no Brasil.

2.1. Características étnico-culturais judaicas
O povo judeu procura conservar certas tradições mesmo estando em países onde a cultura judaica não é predominante nem representa um número expressivo do contingente populacional, como é o caso do Brasil. Certos costumes e ritos são mantidos e alguns, senão a grande maioria, adaptados a nova cultura local. Para os judeus religiosos ortodoxos as mudanças são poucas, independente do país de residência, não importando as condições climáticas nem a língua falada (no caso o português). Já para os judeus laicos e liberais as mudanças são expressivas e os rituais são adaptados aos países de moradia.

O que abordaremos neste capítulo são alguns costumes judaicos e características religiosas desconhecidas da grande maioria da população. Características estas que são mantidas, independente da região onde os judeus se instalam, enfatizando sempre que o trabalho aqui proposto estudará somente a cidade de São Paulo, sem aprofundamento em questões religiosas.

O respeito ao Shabat (descanso religioso que os judeus devem realizar ao entardecer da sexta-feira até o anoitecer do sábado, consagrado a Deus), é um costume mantido e as sinagogas em São Paulo costumam receber pessoas para ouvir as rezas desse dia sagrado. Porém mais importante do que a própria celebração do Shabat é o fato da existência de tantas sinagogas na cidade de São Paulo. No Brasil, a maioria das cidades, mesmo com poucas centenas de habitantes possui cada uma a sua igreja, posto ser a maior parte da população brasileira constituída por católicos. A cidade de São Paulo, sendo local de residência de um número expressivo de judeus, também possui inúmeras sinagogas. Várias delas foram construídas no início de Século XX e outras são casas reformadas em bairros distintos que, pelo deslocamento e realocação dos judeus na cidade de sua migração por bairros novos, foram se formando na segunda metade do século XX, como já dito anteriormente.

Um dos mais importantes rituais que acontecem nas sinagogas e o bar-mitzva (maioridade religiosa concedida ao menino judeu quando o mesmo completa 13 anos. O nome em hebraico quer dizer filho do mandamento). Todas as famílias judaicas que vivem em São Paulo, ou em qualquer lugar do mundo realizam a cerimônia religiosa em sinagogas locais.

Em Israel, um costume é a realização da cerimônia junto ao Muro das Lamentações (única parede que sobrou do antigo Templo). As sinagogas que não ficam abertas durante todo o ano abrem a suas portas para a comemoração de ano novo – Rosh Hashana – e do dia do perdão – Yom Kipur. Vale lembrar que algumas sinagogas da cidade não ficam abertas para os serviços religiosos todos os dias. Em algumas delas, até as rezas obrigatórias feitas ao amanhecer e ao entardecer, realizam-se num espaço anexo. Isso se deve ao fato que a grande maioria dos judeus residentes na cidade de São Paulo (os não–ortodoxos) não tem o costume de freqüentar a sinagoga além dos dias santos e em comemorações, a sinagoga no judaísmo é tida como um local representando a reunificação dos judeus nas suas comunidades, posto que desde a destruição do Templo em Jerusalém as comunidades se dispersaram pelo mundo, mas mantém sua unidade (teoricamente) em torno do rabino provendo seu sustento e acatando sua liderança.

Em todas as sinagogas existentes seus freqüentadores se dividem em duas categorias os judeus ashkenazi e sefaradi, que mantém alguns rituais diferenciados uns dos outros. É importante ressaltar o significado das divisões e também notar que as diferenças e características de cada judeu ashkenazi ou sefaradi são reconhecidas entre judeus em qualquer local e podem ser percebidas até na constituição física pessoal de cada indivíduo, através de fenótipos diversificados.

Atualmente a palavra ashkenazi veio a significar qualquer que não seja de origem espanhola ou portuguesa, especificamente. O termo aplica-se igualmente aos seus descendentes de judeus de fala íidiche, alemã, francesa, húngara e russa, assim como a maioria dos judeus da Escandinávia, Finlândia, Inglaterra e Holanda. De modo geral, é quase certo que qualquer um cujos pais, avós ou bisavós falaram íidishe, alemão ou húngaro seja um ashkenz.

E sefaradim

Presume-se que o nome Sepharad originalmente significasse Espanha e os sefaradim são judeus de origem espanhola ou portuguesa. Na realidade hoje em dia o termo sefaradi foi ampliado de modo a incluir muitas comunidades judaicas em partes do mundo da fala árabe,persa e turca, as quais verdadeiramente, não são de descendência espanhola de maneira alguma mas adotaram o rito espanhol em suas preces e serviços de sinagoga(...) Outros judeus classificados como sefaradim, mas que em sua grande maioria não são de origem espanhola são os da Síria , do Líbano,do Egito,do Iraque e de outras nações árabes... 50

Os judeus sefaradim e ashkenazim de qualquer região diferenciam-se, portanto por suas sinagogas e por detalhes em seus rituais. Não há proibições de entrada, mas os judeus moradores da cidade sabem qual sinagoga devem freqüentar de acordo com a sua origem. As diferenças nos rituais não comprometem a proposta de elaboração de um roteiro e não possuem tanta importância para os futuros visitantes dos atrativos judaicos.

Há varias modificações introduzidas nas últimas décadas em virtude do crescimento das grandes cidades e de certa despreocupação religiosa dos judeus laicos por estarem vivendo em países católicos. Uma das mudanças foi provocada pela comodidade de freqüentar sinagogas que ficam localizadas perto da residência. Mesmo que alguns judeus voltem a seus bairros de origem nos dias das grandes festas tal fato acontece cada vez mais com menor freqüência.

2.2. O ciclo vital judaico
Todas as fases de uma vida regida pelo judaísmo ainda que sejam liberais em um país não-judeu, seguem certos preceitos e regras que acompanham o indivíduo desde o seu nascimento ate a morte.


É possível pontuar tais etapas (ritos de iniciação e passagem) da seguinte maneira (as características gastronômicas que fazem parte de cada uma das etapas serão vistas em capítulo posterior):
• Nascimento e circuncisão masculina;
• Bar – mitzvá (meninos de 13 anos de idade) e bat-mitzvá (meninas com 12 anos)
• Noivado e casamento;
• Morte, sepultamento e luto.

Mesmo em uma cidade cosmopolita como São Paulo, todas as tradições referentes às práticas acima citadas procuram ser mantidas. Há, claramente, influência da cultura local em vários destes ritos, principalmente pela comunicação em língua portuguesa e nas festas, mas a essência é basicamente mantida em todas as comunidades que vivem seguindo os preceitos da lei judaica como por exemplo, podemos citar a festa de Bar-Mitzvá e Bat-Mitzvá. Primeiramente é necessária a explicação das diferenças entre as duas cerimônias e a diferença primordial entre o jovem do sexo masculino com a jovem do sexo feminino. O menino torna-se um adulto judeu responsável pelos seus atos quando completa 13 anos. Há uma cerimônia religiosa individual, em que pela primeira vez o garoto é convidado a subir na Torá e entoar preces. A família toda se reúne e assiste a iniciação religiosa do menino. Já a cerimônia realizada para as meninas é coletiva e nenhuma pessoa do sexo feminino pode ler a Torá ou chegar perto da Arca Sagrada. A cerimônia realiza-se com outras colegas, geralmente de escolas onde as jovens estudam.

A família do menino que está realizando o bar – mitzvá, se possível oferece uma festa para celebrar a maioridade religiosa do mesmo. As festas podem ser realizadas em salões de eventos especializados ou nas danceterias de moda da cidade. É também o que acontece quando a maioridade religiosa das meninas é celebrada, mas geralmente com menor pompa e luxo. Embora, há alguns anos, a comemoração individual das cerimônias da maioridade religiosa feminina venha se tornando mais freqüente, isto não acorria até cerca de uma ou duas décadas atrás. Esta mudança pode demonstrar uma progressiva valorização da mulher com a liberação feminina, o que atesta a permeabilidade dos hábitos ao contexto global e local.

É interessante notar que as rezas são feitas em língua hebraica e como vivemos em um país de língua portuguesa, há muitas dificuldades. Quando a criança estuda em um colégio judaico a situação é facilitada, pois há um contato com o hebraico desde a pré-escola e a criança é alfabetizada nesta língua. Mas quando a criança não estuda em uma escola judaica é preciso fazer um curso de bar-mitzvá que é oferecido em diversas instituições e escolas judaicas. O aluno precisa aprender o que está escrito na bíblia e decorar a melodia das rezas, pois todas são cantadas. Assim há professores especializados que ensinam os alunos a ler, ou melhor, a decorar o que deverá ser cantado no dia da cerimônia. A mesma coisa acontece com o grupo de meninas que irá fazer o bat-mitzvá. A distância da língua portuguesa com a língua hebraica faz surgir a necessidade destes professores que mostram ao aluno a importância desta cerimônia ou despertam a sensibilidade de cada criança para o judaísmo.

Já o noivado possui características que não são seguidas fielmente, principalmente por influência do país em que se vive, onde o rito tende a tornar-se um arcaísmo. O noivado judaico costuma ser obrigatório de acordo com as leis religiosas, mas geralmente não mais acontece com a obediência a todos os preceitos, em famílias não-ortodoxas. O costume é de quebrar pratos em sinal de celebração e do comprometimento em relação ao parceiro. Nota-se cada vez mais a não-realização desse tipo de cerimônia. Faz-se apenas uma pequena celebração familiar.

Uma outra característica de extrema importância dentro de uma vida judaica é a educação, como já mencionado anteriormente. Todas as crianças possuem o direito ao estudo e de freqüentar escolas. Há assistentes sociais trabalhando em todas as instituições judaicas para analisar a situação das famílias e ajudar nos estudos dos mais necessitados.

Ainda que possa contrariar o estereótipo, a comunidade judaica conta com famílias carentes como qualquer comunidade. Não somente pessoas de excelente situação financeira fazem parte da comunidade judaica de São Paulo, como já visto no capítulo 2. O estereótipo sedimentado do imaginário judeu rico, não é a realidade. O que acontece é a ajuda da própria comunidade para com aqueles que passam por dificuldades diversas. E tal fato demonstra claramente e não homogeneidade do grupo.

Como qualquer agrupamento que viva num país com a grande maioria de outra religião ou de outra etnia há mudanças profundas nos hábitos tradicionais. Há uma assimilação de valores e conceitos que anteriormente eram dados como imutáveis. Conceitos judaicos e certos rituais e costumes foram se modificando e assim deram à comunidade uma outra feição. A comunidade judaica liberal que vive no Brasil e mais precisamente em São Paulo, sem sombra de dúvida, ficou parecida com a própria cidade.



A alimentação judaica

1. Uma breve introdução à alimentação judaica
Os rituais judaicos de alimentação e de preparação dos alimentos são fundamentais dentro da história de um povo hebreu. Como uma das civilizações mais antigas do mundo, as características alimentares são essências no estudo da etnia e nas influências recebidas por povos distintos. O modo de preparação dos alimentos, quais alimentos consumir em diferentes estágios da vida, rituais de preparação, comidas típicas para celebrações em festas e a sociabilidade ao redor da mesa são temas a serem explorados no trabalho proposto.

A dispersão e a circulação dos judeus por diversas partes do planeta é algo claramente notado na sua forma de alimentação. De acordo com as regiões por onde passavam e pelos locais onde assentavam suas comunidades, algumas características alimentares se perdiam enquanto outras eram incorporadas. Não é possível encontrar em qualquer localidade todos os tipos de alimentos necessários para a preparação deste ou daquele prato típico, considerando as condições climáticas desfavoráveis ao plantio de determinados tipos de gêneros alimentícios. Por outro lado, a proximidade de culturas com hábitos alimentares diferentes levou à absorção de alimentos devido à convivência no local. Todos esses fatores resultaram na alimentação judaica que conhecemos hoje, por exemplo, judeus provenientes das regiões do Mediterrâneo consomem alguns alimentos que foram incorporados nas suas tradições como grã de bico e frutas secas. Judeus vindos da Europa Ocidental, como a Bessarábia, têm como um importante ingrediente a batata.

Seria extremamente delicada a abordagem da comida essencialmente judaica, pois a forma de alimentação essencialmente judaica sempre varia de com a localização da comunidade. Não há pratos típicos que não tenham sofrido qualquer modificação com a inclusão ou exclusão de algum ingrediente. A cultura é mutável e se transforma, considerada aqui, também como alimentação. Nota-se isto no relato de um judeu egípcio radicado no Brasil que nos diz ser hábito da comunidade consumir, durante o período das festas de ano novo, (celebrar o Rosh Hashana) com um cordeiro assado. Quando a família imigrou para cá, não sendo mais possível encontrar o animal nas condições prescritas, um peixe, mais precisamente a pescada branca, foi o substituto desde então. 51

Existem pratos típicos, mas são os pratos típicos de certas regiões que a comunidade habitava. O único elemento da culinária, propriamente, judaico, se é possível chamar assim, é a maneira de preparação de alimentos para os judeus mais ortodoxos, a chamada Kashrut, que será explanada a seguir, ou seja, deve-se considerar uma estrutura invariável na qual se combinam, conjunturalmente, ingredientes e processos de preparação variáveis e mutáveis numa relação espaço-temporal dada. Pratos típicos são característicos da região com a qual a comunidade teve contato e se instalou e, assim, adaptados e readaptados para condições da vida atual. O strudel (torta doce) originário da Europa geralmente era feito de maçãs, mas era muito dispendioso e, no início da vida no Brasil, o trabalho era árduo e a situação financeira precária. A decisão de algumas famílias oriundas da Polônia, por exemplo, foi fazer o strudel com banana, pelo preço mais acessível do que o da maçã.

2. A preparação dos alimentos
As formas de preparação dos alimentos, de acordo com as leis da Torá (Pentateuco), são claras e precisam ser seguidas rigorosamente além da inspeção de rabinos. Os alimentos passivos para ingestão são chamados de alimentos casher, que precisam ser preparados de acordo com a Kashrut, as leis dietéticas de preparação, no que refere e carnes em geral a mistura de certos alimentos (derivados de carne e leite), a produção de vinhos, etc...

Uma das importantes características ortodoxas judaicas é a não mistura de derivados de carne com derivados do leite no mesmo prato. Isso se deve ao texto onde lemos: “Não cozerás o cabrito no leite de sua mãe” 52. Essa forma de incesto alimentar como salienta Jean Soler foi se ampliando e não apenas o cabrito, mas nenhum outro animal pode ser cozido no leite, qualquer que seja origem deste leite.

A forma do abate animal é feita de maneira distinta de outras culturas. Nenhum judeu pode ingerir sangue, pois o mesmo é considerado fonte de vida. Assim quando um animal é abatido, todo sangue deve ser escoado e logo após as porções de carnes são colocadas em uma solução salgada para que não haja nenhum resquício dele quando a carne for vendida. Por esse motivo a carne torna-se mais dura, e vários condimentos, temperos e molhos são criados para torná-la mais adequada à ingestão e principalmente mais saborosa. Ainda quando há algum tipo de dano em algum órgão do animal nenhuma parte pode ser consumida.

Os animais que podem ser consumidos, de acordo com as leis judaicas são:
• Os mamíferos ruminantes de cascos fendidos (como vaca, cabras e ovelhas);
• Aves domésticas (como patos, galinhas e perus);
• Peixes com nadadeiras e escamas;
• Aqueles que vivem na água como camarões, lagostas e siris ou que atendem a denominação corrente de frutos do mar;
• Suínos.

Ovos, vegetais, legumes e frutas são perfeitamente consumíveis nos moldes da preparação judaica. Vinhos e bebidas alcoólicas também possuem certas normas para poderem ser consumidos. O vinho precisa ser produzido por judeus e tem de ser certificado como casher.

Bebidas alcoólicas, refrigerantes, sidras, uísque vodca, etc... são considerados casher por natureza embora os mais ortodoxos não bebam uísque feito pela mistura de outros (blended) porque pode conter glicerina. O uísque puro garantido como tal o uísque escocês, o rum, a aquavit a, tequila, a cachaça etc. podem ser aceitos por todos os judeus. 53

Sempre foi necessária a instalação de um açougue onde se estabelecia uma comunidade judaica para manter as ordenações religiosas. Nenhuma outra religião parece determinar tais normas para o abate dos animais (que também procuram 54 evitar o sofrimento dos mesmos segundo o preceito). Assim sendo mesmo com a existência de outra comunidade no local que dispusesse de carne em retalho, um novo açougue era construído e gerenciado sob a supervisão de profissionais e rabinos.

Atualmente nas diversas comunidades do mundo somente os judeus ortodoxos vivem de acordo com as leis rabínicas que ainda preservam os costumes de preparo dos alimentos. Estes contam com o açougue judaico e mercearias somente para produtos casher. Os judeus não ortodoxos não seguem as mesmas normas e vêem os seus costumes alimentares se assimilarem aos costumes do país onde residem.

3. Etapa da vida (ritos de iniciação e passagem) e características dos alimentos para celebrações
Para cada etapa da vida judaica, desde o nascimento até a morte existem rituais específicos. Dentre estes rituais há os tipos de alimentos que devem ser ingeridos em cada ocasião.

Vale ressaltar novamente que dependendo da região onde a comunidade instala-se os costumes podem se transformar e até ser copiados de hábitos não judeus daqueles que também ali residem. O que é preciso frisar são os costumes atuais que foram recebidos dos ancestrais e que, ainda permanecem como originais, por mais que saibamos estar lidando com culturas híbridas e tradições inventadas. A respeito do costume, pinturas em cerâmicas gregas atestam este costume entre egípcios e a permanência naquela região que se encerra com o êxodo, pode ter sido determinante para este hábito.

Assim, os alimentos característicos de certas celebrações, o vinho e certos tipos de bolo estão quase sempre presentes em vários destes rituais como a circuncisão (oitavo dia de nascimento do menino judeu), quando o próprio rabino oferece ao bebê o seu dedo com um pouco de vinho para que este não sinta as dores durante a pequena cirurgia que se realiza.

No bar-mitzvá, quando a família possui uma situação financeira estável, sempre convida para uma festa com muita comida e bebida. Os pratos variam de acordo com o país e com as condições climáticas onde a celebração se realiza. Mas pratos usuais da comunidade judaica são servidos, como algum tipo de peixe e doces diversos, além do vinho. A celebração feminina vem se tornando mais comum nos últimos anos, como já descrito em capítulo anterior.

A mesma coisa acontece com o casamento, onde há uma celebração maior. Os noivos também oferecem aos seus convidados uma festa repleta de bebidas (geralmente vinho) e comidas típicas. Podemos notar desde a Idade Média, características alimentares referentes aos casamentos, quando as famílias (sefaradim principalmente) ofereciam uma recepção na qual eram servidas roscas açucaradas e “tarales” (roscas grandes à base de farinha, óleo e açúcar) e as refeições eram invariavelmente acompanhadas de música e danças 55, o que ainda ocorre nas festas atuais. Quando a festa é de judeus mais ortodoxos, todos os rituais da preparação dos alimentos são respeitados. Em regiões onde a comunidade é representada por um contingente considerável, há vários serviços de alimentação como buffets casher, que são especializados na realização dessas festas. Em São Paulo, a comunidade judaica conta com diversos serviços que podem ser contratados para todas as ocasiões aqui descritas.

O ritual de morte também requer alimentos especiais. Todo o ritual de morte de um judeu é regulado por traços diferenciados de qualquer outra comunidade. Uma série de preceitos deve ser seguida de acordo com as leis bíblicas. Essas leis são respeitadas em todos os países e cada comunidade possui a sua associação que cuida dos mortos e das tradições relativas à lavagem do corpo, velório, sepultamento e rezas posteriores. Logo após a morte de algum membro da comunidade a família senta-se em luto, como um pedaço de seus trajes simbolicamente rasgados, durante uma semana, e recebe visitas de amigos e familiares. O rasgo no tecido simboliza o descaso com os valores materiais, que é necessário ter na hora do luto, pois as roupas são meros acessórios ao evocar a lembrança da pessoa que falece e é para a sua memória que as atenções devem estar voltadas. Depois da volta para a casa a família faz as refeições que, em geral, podem consistir em: ovos duros, pães, alguns doces e água. Os alimentos são trazidos de fora e não são preparados por aqueles que estão de luto. A forma do ovo lembra o ciclo vital, fazendo com que nos conscientizemos a respeito da vida, em que a morte é algo inevitável. Nestes dias de luto, os alimentos devem ser simples (como pão e água) para que os enlutados foquem sua atenção no sofrimento e luto e não no prazer de se alimentar com iguarias.

4. Festas e costumes alimentares
Todas as festas que fazem parte do calendário judaico também possuem seus alimentos característicos. Desde o Shabat ao anoitecer da sexta-feira até o anoitecer da sábado, inclusive as festas anuais como o Pessach (Páscoa Judaica) e Rosh Hashaná (ano novo).

O Shabat é uma data respeitada por judeus que, dependendo do seu grau de religiosidade (mais ou menos ortodoxo), realizam certos preceitos rituais.

“Quando a Torá afirma que Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo ordenando-nos assim que descansássemos também. Estamos plenamente conscientes de que Deus não se cansa e nem necessita de repousa, mas a Torá fala que na língua dos homens e todos os seus comentadores concordam que Deus descansou e seu trabalho de criação única e simplesmente para dar aos judeus , seu povo escolhido, o exemplo e a base para este mandamento” 56

Depois da volta da sinagoga, logo após as rezas da sexta-feira à noite, a comida deve estar pronta, pois não é permitido cozinhar e fazer qualquer esforço neste dia sagrado. Um dos pratos mais importante é o tcholent (uma espécie de cozido que consiste de fava, grão de bico feijão, cevada, batata, trigo.etc...) Todos os ingredientes dependem da origem de quem prepara o prato isto é ashkenazi ou sefaradi. A preparação do prato deve começar e acabar antes do início do shabat, e assim o prato deve continuar no fogo até ser consumido geralmente pelo almoço, pois não é permitido ligar nem desligar o fogo neste dia.

Uma das rezas feitas durante o Shabat é a reza do pão onde os judeus agradecem e pedem a Deus abençoar o pão. O pão ingerido no Shabat é a chamada chalá uma espécie de trança com sabor adocicado.

Outra festa judaica em que os costumes alimentares são imprescindíveis e o Pessach que nos remete a liberação dos judeus no Egito e aos quarenta anos que eles permaneceram no deserto. Um dos exemplos de comida típica, mais clássico, e que é consumido tanto por judeus mais ortodoxos quanto pelos mais liberais é o pão ázimo. A história judaica nos conta que no deserto não havia fermento e para fazer o pão foram usados outros ingredientes que deram origem ao matzá (pão ázimo), que se assemelha a uma espécie de bolacha salgada de espessura fina.

As leis alimentares da Páscoa judaica são rigorosas e, basicamente proíbem o consumo de todos os alimentos que possuem qualquer tipo de fermento e cereal. Nos lares judaicos, todos os alimentos são retirados e as louças também são trocadas por aquelas que só são usadas em dia de festa. Vários outros alimentos são ingeridos nesta semana de Páscoa (a comemoração tem a duração de oito dias) simbolizando a luta para sobreviver no deserto. Os alimentos também variam de acordo com a procedência da família que se prepara. Se a família for ashkenazi, por exemplo, proíbe a ingestão de diversos tipos de cereais, como milho, arroz e se a família for sefaradi, porém, vários cereais podem ser consumidos, inclusive o arroz.

No ano novo judaico é costume comer alimentos doces para que o ano comece doce e feliz. Um dos ingredientes é o mel, geralmente usado em bolos e biscoitos. Além disso, a maçã com mel é ingerida para que o ano comece doce.


5. A sociabilidade ao redor da mesa
O judeu, como em todas as comunidades, não come somente para satisfazer suas necessidades diárias, mas também para reunir-se com sua família ao redor da mesa e principalmente nas comemorações para desfrutar momentos de sociabilidade. Ao sentar-se ao redor da mesa, a família não está somente fazendo uma refeição, mas a mesa pode ser comparada a um altar sagrado onde a comida representa um sacrifício em homenagem a Deus.

Na Páscoa judaica, já explicada anteriormente, nos imprescindíveis jantares de família, esta se reúne à mesa e entoa canções religiosas. A mesma coisa acontece antes do jejum do Yom Kipur (dia do perdão) e logo após o início do ano novo.

Mais do que a simples tradição de comer certos alimentos, os rituais à mesa, a forma como os talheres são dispostos, a forma e a cor das toalhas e louças fazem parte dos costumes judaicos. A importância da família e da comunidade reunida faz parte da necessidade da preservação da identidade. No shabat uma toalha branca diferenciada precisa ser colocada na mesa. Na maioria das vezes a toalha é branca, pois significa pureza e elevação espiritual.

“O banquete torna-se assim por excelência da identidade do grupo que se trate do núcleo familiar ou de toda população de uma cidade que se reúne em torno de uma mesa comum seja com a presença física de todos os seus membros seja por uma representação simbólica” 57

O banquete judaico realizado em ocasiões especiais como já vistas anteriormente possui fortes características de conteúdo social. A identidade tão fortemente procurada nos dias de hoje é, de certa forma, resgatada por meio de celebrações especiais, como as festas vistas anteriormente.

Entretanto, é preciso reiterar que a comunidade judaica por mais que pareça homogênea e transparente, também possui as suas divergências inclusive alimentares. Notamos essas diferenças principalmente entre os ashkenazim e serafadim. Judeus iugoslavos são na maioria sefaradim pois foram os que saíram da Espanha, depois da Inquisição e foram nesse caso domínio do Império Turco e por isso têm diferentes hábitos alimentares. Uma imigrante sefaradi iugoslava comenta: “Eu fui conhecer as comidas tradicionais judaicas asquenazim quando me casei. E estranhei bastante. Na primeira vez que estive na casa da minha sogra, deparei-me com o gefilte fish. 58que comi só para não fazer feio. Mas foi um sofrimento”. 59 As diferenças sociais também podem ser vistas na hora das refeições e na preparação dos alimentos desde os mais simples (como bolos em geral) até mais complexos (o tcholent – a feijoada judaica), e principalmente no convívio com a comunidade não-judaica do local por razões já apontadas.

6. A alimentação como parte do patrimônio cultural de um povo
O patrimônio cultural de cada povo vivendo em grandes metrópoles como São Paulo é único e necessita de preservação, aspecto já abordado no capítulo sobre identidade cultural. Todas as características culturais (entendendo a cultura material como manifestação exterior de valores internalizados conforme a antropologia) que pertencem às etnias são fundamentais para qualquer estudo antropológico/sociológico e também para o turismo, como oferta cultural.

Uma das riquezas cultural de qualquer povo /etnia é sua alimentação principalmente nos casos dos imigrantes, como apontado nesse trabalho,

“pois, se o imigrante que carrega para seu novo destino os hábitos de sua terra nativa, logo ele é obrigada a se adaptar a novas formas de sociabilidade e trabalho permanecendo a culinária como marca de resistência à aculturação absoluta” 60

O conceito de patrimônio não se refere apenas a sítios, prédios arqueológicos ou casas tombadas, pois a Constituição Brasileira de 1988, (Seção II artigo 216) reconhece que também fazem parte do patrimônio bens de natureza material e imaterial em que a alimentação exerce um papel fundamental. Vale recordar que as Constituições anteriores a de 1988, como a de 1934, 1937 e de 1946, faziam menção ao patrimônio somente como monumento .61

Podemos notar, por meio das Cartas Internacionais, mais precisamente da Carta de Fortaleza, denominada Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção, datada de novembro de 1997, que:

O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional) deve identificar, documentar, proteger, fiscalizar, preservar e promover o patrimônio cultural brasileiro, constituído por bens de natureza material e imaterial conforme determina a Constituição federal e que os bens de natureza imaterial devem ser objeto de proteção específica. 62

Em edição especial do Jornal da Cultura, informativo do Ministério da Cultura, lê-se que o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural regulamentou o registro dos Bens culturais de natureza imaterial aplicado pelo IPHAN, abrindo assim um livro de tombos para o patrimônio imaterial brasileiro 63, desta maneira, a gastronomia é considerada como de suma importância no âmbito patrimonial.

Considerando-se que a alimentação faça parte do patrimônio cultural que é essencial para o turismo, é possível chegar a conclusão que um roteiro com base na culinária de qualquer etnia torna-se extremamente interessante para os turistas como para os moradores da cidade que podem usufruir os seus momentos de lazer conhecendo o patrimônio cultural de algum povo distinto.
 
1 Por razões editoriais esse trabalho foi dividido, e será apresentado em duas partes.

2 Andréa Kogan é mestre em Turismo; graduada em Letras, língua e literatura inglesa pela PUC-SP. Atual diretora de Turismo e Hospitalidade da UNICID, Universidade Cidade de São Paulo, e professora dos cursos de graduação e pós-graduação, em cursos de Letras dessa Universidade. Foi também docente nos cursos de Turismo e Hotelaria do SENAC-SP.

3 A diáspora (ou dispersão) judaica é um conceito que se refere aos judeus que imigraram da antiga Palestina, principalmente para a região constituída pelo antigo Império Romano; fora do Estado de Israel (dispersão acentuada pela destruição do Segundo Templo em Jerusalém).

4 SORJ, Bernardo. “Sociedade Brasileira e Identidade Judaica”. In: SORJ, Bila (org.) Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1997.p.28

5 Vale lembrar que há alguns estudos que mostram a chegada de judeus junto com as caravelas de Cabral, mas em virtude de uma necessidade de delimitação do trabalho proposto, o mesmo analisa a chegada dos judeus a partir do final do século XIX.

6 De acordo com George Simmel, em Metrópole e a vida mental, a metrópole sempre foi a sede da economia monetária, além de implicar que o homem que lá vive tenha uma consciência mais elevada e uma predominância da inteligência.

7 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz T. Silva e Guacira L. Louro. 3.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.p.62

Várias formas de turismo são conhecidas através da segmentação do mercado pelas ferramentas de marketing. As ferramentas procuram segmentar o público pela sua idade, hobbies, posição social, religião, etc... O marketing não é o alvo principal deste trabalho.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da república Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

PIRES, Mário Jorge. “Levantamentos de atrativos históricos em turismo – uma proposta metodológica”. In: LAGE, Beatriz H.G., MILONE, Paulo C. (org.) Turismo: teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2000. p.111.

A pós- modernidade, não é facilmente traduzida ou explicada, nem existe a seu respeito qualquer consenso acadêmico, mas de acordo com Luiz G.G. Trigo, em A sociedade pós- industrial e o profissional em turismo, podemos notar que a época é de novas tecnologias, educação em um mundo que se transforma rapidamente, lazer, cultura e turismo ocupando posições centrais, questionamento dos metadiscursos dos organizadores de pensamentos, era do conhecimento, etc...

MORAES, Claudia C. “Turismo – segmentação de mercado: um estudo introdutório”. In: ANSARAH,Marilia Turismo segmentação de mercado. São Paulo: Futura, 1999. p.19.

KRIPPENDORF,Jost. Sociologia do turismo para uma nova compreensão do lazer e das viagens. São Paulo: Aleph, 2000. p. 54.

COOK,Roy,YALE Laura, MARQUA, Joseph. Tourism – the business of travel.New Jersey: Prentice Hall,1999 p. 32. “O antigo ditado, você não pode agradar a todos, o tempo todo, certamente é verdadeiro no que diz respeito às empresas turísticas. Se você não pode agradar o todos, a quem você deve agradar? Uma resposta comum a essa pergunta é focar os esforços de marketing à segmentação dos consumidores potencias em necessidades e desejos razoavelmente similares”. Tradução da autora.


RYAN, Chris ‘The time of Our Lives`or Time for Our Lives: An Examination of Time in Holidaying. In: RYAN, Chris (org) The Tourist Experience: A New Introduction. New York. Cassel, 1997 p. 201 “As férias são os melhores tempos da vida e elas possuem a oportunidade de criar um tempo memorável”. Tradução da autora.

17 LAGE,Beatriz. “Segmentação do mercado turístico”. In: Turismo em Analise, v3, n.3, nov/92.

18 MIELENHAUSEN, Ulrich. “Gestão do mix promocional para agências de viagens e turismo”. In: LAGE, Beatriz e MILONE, Paulo. Turismo: Teoria e Prática. São Paulo: Atlas 2000. p.52

19 Op.Cit.

20 Jairo Fridlin é escritor, tradutor e grande conhecedor da cultura judaica (algumas obras tradução e transliteração da Hagadá de Pessach, Machzor completo,Sidur completo e Salmos) A Sêfer está localizada à Alameda Barros,893.Home page: www.sefer.com.br, e-mail sefer@sefer.com.br.

22 Extraído do original em inglês do texto “Ethnic identity and tourism marketing” in WITT, Stephen and MUTINHO, Luiz. Tourism marketing and management handbook UK: 1989, Prentice Hall. p. 137.

23 SCLIAR,Moacyr. “Em busca da identidade judaica”. In revista Kol News, Suplemento especial. Abril 2001. p.28

24 WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Trad. Viviane Ribeiro. São Paulo: Edusc,2000. p.72.

25 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós –modernidade. 3.ed. Rio de Janeiro: DP &A p. 77.

26 ASHERI, Michael . O judaísmo vivo - as tradições e as leis dos judeus praticantes 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1995 p. 255.

28 SIMMEL,Georg. “A metrópole e a vida mental”. In: Textos básicos de ciências sociais. Rio de Janeiro: Zahar,1967. p 23.

29 DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. p 25

30 PLES,Cristina Férias? Nem pensar. Revista Veja, edição 1693 ano 34 número 12 – 28 de março de 2001. Apesar de referencia da mídia, denota os problemas vigentes na sociedade metropolitana.


32 DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular .3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. p 34

33 KRIPPENDORF,Jost. Sociologia do turismo para uma nova compreensão do lazer e das viagens.
São Paulo. Aleph:2000. p.36.

35 UNIBES – União Israelita Brasileira do Bem Estar Social “criada em 1976 que foi o resultado de um processo sistemático de pelo menos cinco anos de reuniões entre as diretorias de Ezra, Linath Hatzaked, três entidades com uma longa tradição e trajetória de trabalho assistencial, associado aos imigrantes e a própria formação da comunidade judaica paulista entre os anos de 1910 e 1920”. In CYTRYNOWICZ, Roney (coord). Unibes - 1915-2000. Uma história do trabalho social da comunidade judaica em São Paulo. São Paulo: Narrativa-um, Projetos e pesquisas de história, 2000.

36 Organizações políticas sionistas que fazem reuniões semanais onde os membros formam grupos de dança, fazem e ouvem palestras e discutem sobre judaísmo.

37 No clube A Hebraica este grupo existe há diversos anos e os membros fazem atividades diversas como palestras e pré-estréias de peças que entrarão no circuito teatral da cidade. Como o próprio nome já diz, é direcionado a pessoas solteiras (há também uma limitação de idade mínima e talvez máxima para participar dos eventos).

38 Podemos notar dois guias semanais, um deles publicado as sextas-feiras pelo jornal A Folha de São Paulo, totalmente dedicado a opcoes de entretenimento do paulistano ( como shows, pecas de teatro,bares,restaurantes,cinema,exposição, etc...) E também a revista Veja São Paulo, revista semanal que mostra as opções da semana referentes a cinema ,teatro,shows,concertos, etc...

39 GRUN, Roberto. “Construindo um lugar ao sol os judeus no Brasil” In: FAUSTO, Boris (org).Fazer a América A imigração em massa para a América latina. São Paulo: Edusp, 1999 p. 354.

40 GRUN, Roberto. Construindo um lugar ao sol os judeus no Brasil In FAUSTO, Boris (org).Fazer a America A imigracao em massa para a America latina São Paulo. Edusp, 1999 p. 354

41 JEFFREY, Lesser. O Brasil e a questão judaica. Trad. Marisa Sanematsu. Rio de Janeiro: Imago, 1995. p. 316.

42 CARNEIRO, Maria Luiza T.O anti-semitismo na era Vargas (1930-1945). São Paulo: Brasiliense, 1988 p 52.

43 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto . Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p 11.

44 O pesquisador e sociólogo LAZO, Albino Ruiz, divulga em artigo do jornal o Estado de São Paulo. “Há escravos em São Paulo. Estão em prisões infectas nos subterrâneos do trabalho ilegal, circulam pelas ruas antes do nascer do sol e, sobrevivem vizinhos de todos nos, na esquina do inferno com o mundo globalizado” de 18/03/2001 escreve: “Os coreanos foram os primeiros a chegar em São Paulo a partir de 1963, quando a falta de trabalho reinava na Coréia do Sul. Em 1982, foi lhes dada a anistia e centenas de lojas atacadistas havia florescido no Brás e Bom Retiro . Já os Bolivianos habituados a ir de um lugar para o outro a viver em túneis e ver o mundo e a luz do dia umas poucas horas por semana acomodaram-se em viver nas oficinas de costura dos coreanos em condições semelhantes ou piores que as enfrentadas nas minas.

46 FAUSTO, Boris. “Imigração: cortes e continuidades” In: História da Vida Privada no Brasil. V.I. São Paulo Companhia de Letras, 1998 p 34.

48 ASHERI,Michael. O judaismo vivo Trad. Jose Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago 1995. p 159.

50 ASHERI Michael O judaísmo vivo. São Paulo: Imago 1995 p. 118.

51 HECK, Marina BELUZZO, Rosa Cozinha dos imigrantes – memórias e receitas. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998. p 325

52 SOLER, Jean. “As razões da Bíblia: regras alimentares hebraicas”. IN: In Flandrin, Jean Luis e Montanari, Massimo História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade: 1996 p. 109.

53 ASHERI Michael O judaísmo vivo São Paulo: Imago, 1995 p. 125.

55 DOLANDER, Miguel Angle. “A alimentação judia na Idade Média”. In Flandrin, Jean Luis e Montanari, Massimo História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1996 p 363.

56 ASHERI Michael O judaísmo vivo São Paulo: Imago, 1995 p. 125.

57 MONTANARI, Massimo. “Sistemas alimentares e modelos de civilização”. In Flandrin, Jean Luis e Montanari, Massimo: História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade 1996 p 109.

59 Depoimento registrado na obra de HECK, Marina e BELUZZO,Rosa Cozinha dos Imigrantes Memórias e receitas São Paulo: Companhia melhoramentos, 1988 p 227.

60 Op. Cit p. 14.

62 CURY, Isabelle (org.) Cartas patrimoniais. 2.ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. p.363/364

63 CULTURA HOJE. Informativo do Ministério da Cultura. Ano 5. 15 de agosto de 2000.

64 BAHL,Miguel Legados étnicos na cidade de Curitiba: opção para a diversificação da oferta turística local. Dissertação de mestrado p 26

65 O restaurante no shopping já foi fechado.

66 SIMON-NAHUM, Perrine. “Ser judeu na França”. In: ÁRIES, Philippe; DUBY, Georges. História da Vida privada. Vol.5. São Paulo: cia. Das Letras, 1992. p.467.

67 Op. cit. P. 465.

68 Boletim Informativo. Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. Ano V. número 22. Maio 2001

69 Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo.