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Turismo e Artesanato: os bordados da cidade de Santos em perspectiva
Elis Regina Barbosa Angelo1
 
Resumo
A proposta deste artigo é refletir sobre a criação de subsídios para que o turismo possa se apropriar do bordado, transformando-o em produto turístico. Os objetivos permeiam a idéia de continuidade da tradição enquanto patrimônio cultural da cidade de Santos, redefinindo os usos dos produtos para novas gerações e, ao mesmo tempo, legitimar o produto enquanto elemento da cultura material feminina.

Abstract
The purpose of the article is to reflect about the criation of subsidies so that the tourism could apropriate of the embroidery, transforming it into a touristic product. The objectives permeate the idea of continuity of the tradition as a Santos’ cultural heritage, redefining the uses of these products to the new generations, and, at the same time, legitimating the product as an element of the female material culture.

A mão da mulher tem olheiros nas pontas dos dedos: risca o pano, enfia a agulha, costura, alinhava, pesponta, chuleia, cerze, caseia. Prende o tecido nos aros do bastidor: e tece e urde e borda.2


Ainda existem algumas bordadeiras na cidade de Santos que conseguiram manter o trabalho manual do bordado como um meio de subsistência e um legado trazido por suas antepassadas da Ilha da Madeira. Algumas circunstâncias impediram a continuidade desse artesanato, tipicamente feminino, entre a maioria das mulheres que se dedicavam aos bordados, em especial os valores dos produtos utilizados em sua confecção.

A maioria das mulheres que se dedicava ao trabalho domiciliar3 dos bordados passou a trabalhar para fábricas e lojas de grande porte em São Paulo. Entre as circunstâncias que parecem ter impossibilitado a continuidade do processo de bordar estão, além do custo dos materiais utilizados na confecção como pano e linha, as questões de moda e de descontinuidade no uso dos bordados pela modernização dos espaços onde eram anteriormente utilizados e a mudança nos hábitos e costumes das novas gerações.

A industrialização, e conseqüentemente, o barateamento dos artigos ornamentais e utilitários como colchas, lençóis, fronhas, toalhas de banho e rosto, toalhas de lavabo, guardanapos e toalhas de mesa, confeccionados nas fábricas e indústrias deste tipo de artigo, criou um mercado de produtos financeiramente mais acessível a todos. Por outro lado, as novas gerações, adaptadas a esses padrões, passaram a encarar esses artigos como um luxo arcaico e desnecessário.

Pode-se falar em luxo, pois os próprios consumidores, que atualmente adquirem esses artigos, assim os consideram. Os apreciadores desse tipo de artesanato são pessoas que possuem condições financeiras para adquiri-los.

As roupas bordadas caíram em desuso, daí um relativo desinteresse atual. Especialmente com a entrada de novos artigos, ou fibras, no mercado de vestuário, como a lycra e os sintéticos, que são muito mais acessíveis. O linho, anteriormente usado para a confecção de roupas e acessórios para a casa, também desapareceu do mercado, tornando-se um produto caro e raro. Considerando que o bordado é elaborado na maioria das vezes em panos de linho, o custo ficou também muito maior. O “gosto” por artigos artesanais como rendas e bordados passou a ser algo do “passado”. Pelo menos é o que algumas pessoas dizem ao serem questionadas a respeito disso.

Pessoalmente aprecio artesanato e, em especial, a renda de bilros; labirinto; crivo; redendê; renascença e filé; bordados e outras modalidades de artigos femininos ou de uso doméstico. Tenho comigo peças adquiridas em diversas partes do Brasil, consideradas legado português, seja da Ilha da Madeira, seja dos Açores. Mostrando-as e ao perguntar a uma empregada doméstica, sobre sua apreciação desses artigos, e se tinha algo no gênero ou os compraria, disse-me que os achava bonitos, mas, além de não possuir recursos para obtê-los, não os achava relevantes.

Achei curiosa tal colocação, não quanto à possibilidade de adquirir os artigos, mas, sendo de origem alagoana e tendo idade próxima à minha, pensei que o seu interesse fosse o mesmo, ou até que se interessaria, eventualmente, em executar os trabalhos. É provável que essa ligação com a tradição soasse como um peso, ou atraso, do qual gostaria de afastar-se. Pois bem, quem se interessa por isso? Em outras entrevistas com rendeiras, não necessariamente de Santos, obtive a informação que, de dez pessoas que procuram artigos de renda, oito delas são senhoras com idade acima de sessenta anos e diferem das jovens que procuram artigos de moda como cangas, vestidos, saídas de praia, biquínis entre outras roupas ou ornamentos. As senhoras buscam exatamente os artigos considerados “antigos” identificáveis em vários tipos de toalhas, colchas, entre outros. Elas são as clientes preferidas das rendeiras, que sentem prazer em atendê-las, pois estas vêem nessa escolha a valorização do seu trabalho. Essas clientes compreenderiam o tempo de dedicação ao trabalho e a sua reprodução nos valores estipulados.

Pode-se pensar com isso que, além dos valores das peças e do “olhar” que difere nas novas gerações, a casa ainda não faz parte da preocupação delas, pois além de morarem com os pais, os interesses por artigos “da moda” ocupou o espaço daqueles que anteriormente eram importantes para as moças que faziam enxovais para o casamento, por exemplo, cuja preparação começava aos cerca de doze anos da futura noiva. Atualmente parece não existir essa preocupação entre diversas classes sociais e entre as faixas etárias evocadas.

O descaso com esse tipo de artigo e que se pode constatar no país, sugere estar ligado a questões que permeiam a mudança da estrutura familiar, e como já foi dito, às transformações e à modernização dos artefatos utilizados no espaço doméstico que também se alterou e, principalmente, pelas mudanças cíclicas na moda.

A antiga casa deu lugar a espaços reduzidos e práticos com os quais não se pode perder muito tempo. As prendas domésticas, atribuição tradicional feminina, cederam lugar ao trabalho externo. Dessa forma, a mulher passou a exercer funções diferentes nesse espaço. Isso não quer dizer que a nova mulher não saiba cuidar necessariamente da sua casa, mas existem atualmente alternativas facilitadoras para os cuidados da casa. As atividades tidas como “prendas domésticas”, tais como tricô, crochê, bordado, culinária entre outras, foram substituídas pelo trabalho externo e pela busca da qualificação profissional. Cada vez menos se encontram jovens que sabem, por exemplo, cozinhar, pois os pratos prontos e os restaurantes “self-service” também ocuparam o espaço da mulher “prendada”. Esses requisitos antigamente tidos como imprescindíveis não são mais considerados relevantes e, o que se percebe hoje, é que as mulheres sentem-se seguras em dizer: “Eu não sei nem fritar um ovo!”. Isto passou a ter a conotação de “libertação” da obrigatoriedade de ser prendada e submissa.

Aprender a bordar, tricotar e ter habilidades fundamentalmente domésticas, foram afazeres substituídos por um novo modelo, voltado para o culto à profissão. Contudo, entre as novas necessidades para a formação do indivíduo no contexto atual, ainda cabem a formação e a habilitação domésticas.

A diferença observada em cidades ou localidades menores em relação aos grandes centros, parece ser um dos contextos de formação em habilidades domésticas tradicionais. A questão econômica das famílias, calcada em necessidades financeiras, acaba por exercer influência neste tipo tradicional de formação ou de tradição. A função cultural exercida sobre o conceito do produto também parece exercer forte influência na opção de perpetuar certas tradições. Quanto à igualdade entre os sexos no que tange ao trabalho, pode-se dizer que as mulheres, de um modo geral, estão conquistando cada vez mais lugares de destaque no mercado de trabalho em geral, porém:

“É possível afirmar (...) que, no âmbito da oferta de trabalhadoras, há significativas mudanças. Restam, no entanto, algumas continuidades que dificultam a dedicação da mulher ao trabalho ou fazem dela uma trabalhadora de segunda categoria, que está sempre em desvantagem no mercado de trabalho”.4


Estas mudanças ainda apresentam grandes divergências sobre a igualdade dos sexos no trabalho, principalmente quanto aos direitos e deveres femininos e a respectiva aceitação do novo modelo feminino pelos homens em geral.

As grandes universidades mantêm número igual ou superior de mulheres em relação aos homens. Algumas profissões têm maior ou menor número delas. A “igualdade” cresce cada vez mais e o papel da mulher muitas vezes é o mesmo exercido pelo homem, em muitas áreas do conhecimento e também na vida cotidiana. De qualquer forma, a questão da tradição de bordar requer reflexões e propostas para sua manutenção, indiferente do tipo de trabalho e das relações de poder e de saber que entremeiam a categoria trabalho.

Apesar das transformações nas atividades exercidas pelas novas gerações, é importante mostrar a função do bordado no processo de crescimento turístico como atrativo artístico-artesanal de relevante importância cultural para a comunidade, pois, além de sua função econômica e cultural, o bordado pode passar a exercer a função de atrativo turístico, uma vez que, sendo considerado como arte popular e também artesanato, essa manifestação da cultura material exerce influência na construção do patrimônio cultural da comunidade.

Sobre os conceitos de arte popular e artesanato, considera-se:

“Arte popular é aquela cujo produto só tem a função decorativa ou ornamental, provocando ao ser observada, uma sensação estética. Artesanato é essencialmente utilitário, mas com alguma decoração, possuindo duas funções: a estética e a utilitária.” 5


Nesse caso, considera-se o bordado como arte popular, tendo ele apenas a função de ornamento. Mas, dependendo do tipo e forma do trabalho, sua função pode variar além da ornamental. Uma colcha bordada possui uma função utilitária – cobrir a cama e ser usada como lençol/cobertor – e também tem função ornamental: causa uma apreciação estética ao ser observada. Uma blusa bordada possui, da mesma forma, a função estética e utilitária, enquanto um caminho de mesa pode possuir apenas a função ornamental. Dessa forma, o conceito a ser utilizado sobre a função do bordado depende do tipo e forma apresentados e não pode recorrer a uma nomenclatura exata.

As antigas rendas portuguesas6, assim como os bordados, possuíam a função ornamental, porém, com as mudanças oriundas das necessidades humanas, o papel e a utilidade também foram se adequando ao tempo e espaço, tanto no Brasil como em outras partes do mundo. As novas formas, cores, estilos e a utilidade dos produtos artesanais passaram a exercer funções diferentes, seja na utilidade doméstica, seja no uso pessoal. A aplicação do bordado em roupas e acessórios, por exemplo, é considerada como artigo de luxo, no mundo da moda.

Os usos e costumes para se utilizar este tipo de artesanato mudaram e se adaptaram às necessidades atuais, porém, muitas bordadeiras de Santos não se adaptaram a essas novas características do produto. A idéia de criação de artigos diferenciados, adaptados à moda, tanto de artigos pessoais quanto domésticos, está condicionada às velhas maneiras, pontos e estilos e, estas mulheres devem refletir sobre possíveis adaptações, seguindo tendências da moda. Isso de certa maneira conferiria uma re-significação para os produtos criados e daria uma nova característica ao produto, recriando sua funcionalidade e, talvez, barateando o custo dos materiais, o que possibilitaria uma abertura para as necessidades da demanda.

A proposta específica dessa reflexão é possibilitar a continuidade do legado cultural trazido pelas portuguesas7 da arte de bordar, criando subsídios para que o turismo possa se apropriar do bordado, transformando-o em produto turístico para a continuidade da tradição enquanto patrimônio cultural da cidade de Santos.

A idéia em questão permeia a criação de espaços direcionados para a confecção do bordado, além das exposições já fixadas, nos dois primeiros domingos do mês, nos quais ocorre a comercialização do bordado. No primeiro domingo do mês no Ilha Porchat Clube em São Vicente e, no segundo domingo do mês, no Orquidário Municipal de Santos. O problema é como proporcionar um espaço, ou espaços, de maior visibilidade para os turistas, adequando-os às necessidades das bordadeiras, de maneira que a representação do legado cultural seja mantida, e continue no tempo, da mesma forma que sirva para promover o fomento econômico para a comunidade e a cidade. Nesta perspectiva, “os fazeres e saberes na construção dos atrativos são gerados em pequenos grupos da comunidade. Orientam-se de forma intersubjetiva, preocupando-se com o homem em sociedade”8 e, a preocupação além de relativizada na figura feminina, neste caso, representa a memória material revelada nos seus traços, formas, funções e cores.

Pode-se dizer que a pretensão desse artigo é criar estratégias para promover um novo caminho com novas oportunidades do segmento artesanal. Mas, “...a proposta não é de “souvenirização” do produto artesanal, risco que se corre de fato, considerando que a indústria do turismo pode causar uma nova massificação de produtos artesanais, ao promover a produção de souvenires descaracterizados”.9

Neste caso, a proposta de apropriação dos produtos artesanais, do bordado pelo turismo no local, é a de proporcionar uma revitalização dos mesmos, integrando a cidadã artesã ao seu objeto de criação, permitindo além de sua continuidade, a geração de novas oportunidades de trabalho e renda para a comunidade e para a cidade e a possibilidade de oferta turística.

Como proposta inicial, pretender-se-ia buscar junto à prefeitura municipal, uma parceria para a divulgação e comercialização dos produtos em espaços públicos e, juntamente com a secretaria de turismo, propor um circuito cultural para os turistas que procuram a cidade e suas diversas atratividades. Uma outra parceria é com as empresas privadas que trabalham diretamente com o turismo receptivo da cidade, formando um elo estratégico para divulgação dos produtos. Neste caso, o desenvolvimento de um folder explicativo com o circuito cultural que se pretende alavancar, identificaria o tipo de trabalho produzido, as origens e tipologia do produto, apresentando também um mapeamento das artesãs da cidade em um local específico, criado com a função de agrupá-las em um ambiente próprio. Pois,

“A união estratégica do produto artesanal com o mercado turístico é uma fusão de interesses de igual proporção para as duas partes. O turista quer comprar, o artesão quer e precisa vender, o país e sua cultura precisam ser divulgados. Estamos falando, portanto, sobre um ajuste de linguagem, de um diálogo perfeitamente possível e necessário que demanda políticas públicas, gente capacitada, seriedade e vontade política tanto por parte da sociedade quanto dos governantes e, sobretudo, da participação ativa e autônoma dos artesãos.” 10


Para implementar estas idéias: 1- É imprescindível propor um mapeamento das bordadeiras da cidade de Santos, verificando seus respectivos interesses em participar dessa parceria para a implantação da proposta de formação de um “Circuito Cultural dos Bordados”. 2- Juntamente com esse levantamento inicial, apresentar à Secretaria de Turismo Municipal um projeto de criação desse circuito com a indicação de possíveis áreas para divulgação e comercialização dos produtos. 3- A iniciativa privada que compõe o trade turístico envolvido no turismo receptivo da cidade, receberia o mesmo projeto para a identificação dos interessados em participar de forma ativa e contínua em parceria com o poder público e com as artesãs. 4- A identificação destas empresas, bem como as parcerias que se pretende estabelecer, fomentariam o sucesso do circuito, trazendo uma fusão de interesses de igual proporção para as partes envolvidas.

Este ensaio refletiu sobre a possibilidade de estabelecer parcerias entre o turismo e o legado cultural, a fim de proporcionar novas alternativas para a comunidade de bordadeiras da cidade de Santos e o desenvolvimento de novos atrativos para a localidade, favorecendo uma ligação que pode dar certo, dependendo exclusivamente das parcerias que se quer estabelecer. A idéia é retirar as propostas de reflexões acadêmicas e implantá-las como iniciativas que possam garantir o futuro do bordado como um produto turístico e um legado da cultura material.
 
1Graduada em Turismo pela PUCCAMP; Especialista em Administração Hoteleira pelo SENACSP; Mestre em Turismo pelo UNIBERO; Mestranda em História pela PUCSP; Professora e Diretora da Faculdade de Turismo da UNISA.
2BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.470.
3Trabalho domiciliar deve ser entendido como aquele realizado na habitação do trabalhador, por encomenda da empresa ou de intermediários, envolvendo geralmente a realização de uma tarefa parcial do processo produtivo, último elo da cadeia produtiva, cujo pagamento era feito geralmente por peça. V. MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: História, Cidade e Trabalho. Bauru, SP: EDUSC, 2002. p.90.
4EGALE, Nilza B. Folclore brasileiro. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.p.35
5Id. ibid. p. 120.
6RAMOS, L.; RAMOS, A. A Renda de Bilros e Sua Aculturação no Brasil. Rio de Janeiro: Sociedade de Antropologia e Etnologia: Publicações n.º 04, 1948. Op. cit. p. 29 “A arte da renda por muito tempo em Portugal só foi praticada nos conventos, e sua utilidade praticamente única era a ornamentação de igrejas e vestes eclesiásticas.”
7Em Santos, quase todas as costureiras e bordadeiras eram imigrantes portuguesas, particularmente as vindas da Ilha da Madeira que traziam a tradição dos bordados. Ver MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: História, Cidade e Trabalho. Bauru, SP: EDUSC, 2002.Id. Ibid. p.92.
8MURTA, Stela Maris. ALBANO, Celina. (orgs.) Interpretar o Patrimônio: Um exercício do olhar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p.64.
9Id. Ibid. p.172.
10Id. Ibid. p.180.