Resumo: As definições de hospitalidade usualmente estão impregnadas pelo senso comum ou detém-se em tecnicismos operacionais do turismo e da hotelaria. Os estudos do tema pelos referenciais sociológicos e antropológicos gravitam sobre a pesquisa de Marcel Mauss, que trata da formação dos vínculos nas relações sociais pela circulação do dom nas sociedades primevas. O objetivo do presente trabalho é contextualizar e apontar elementos que possam ampliar a compreensão das questões da hospitalidade no processo de globalização na sociedade contemporânea.
Abstract: The hospitality definitions usually are impregnated by the common sense or abided by technical terms of the tourism and hotel industry. The studies about the subject in Sociology and Anthropology are among the Marcel Mauss research about the formation of ties in the social relations by the gift dynamics in the beginning societies. The objective of the current work is to point some elements that may enlarge the understanding of hospitality matters in the contemporary society globalization process.
Até a modernidade ocidental, as mediações sociais aconteciam nos contornos da temporalidade e espacialidade do mundo rural, ou seja, a vida social das comunidades era pré-urbana e guardava estreita relação com os ritmos agrários como as estações de plantio e colheita.
Com o retorno do fenômeno da urbanização, no início da Idade Moderna, a partir do final do século XV, há uma nova dinâmica tempo-espacial que traduz um ritmo de mudança consideravelmente mais intenso que os períodos históricos precedentes. O ordenamento mítico-religioso, as grandes questões do télos e da origem fundamental do mundo, do tempo e memória profundos que pautavam a vida até a Idade Média foram se deslocando para fora do eixo principal, e em seu lugar cresceram as influências iluministas: a ciência, a tecnologia, que alteraram o modo de formação dos vínculos sociais.
O desenvolvimento da tecnologia, da medição mecânica do tempo e seu impacto nas relações de trabalho e a dependência da produção por fontes de energia inanimadas; a interconexão de territórios (e continentes) pelo ciclo das grandes navegações e a transformação de produtos (o excedente na lógica capitalista) em mercadoria altera as dimensões de mercado (oferta-demanda), bem como o sistema político do Estado-Nação. Estas mudanças constituem o cenário do surgimento da sociedade de consumo2 .
Após o desaparecimento das antigas formas de propriedade e produção feudais e o surgimento da lógica capitalista e democrática a civilização passou a desfrutar, como nunca antes, o anonimato e a liberdade individual, mediados pela velocidade e virtualidade da tecnologia, dissolvidos nas relações sociais da equivalência mercadológica e do valor universal de troca. Esta realidade social precisou encontrar uma ética que a viabilizasse como bem aponta Maurice Godelier3 :
(...) pelo menos no Ocidente, encontra-se um sistema político que repousa sobre o princípio de que todos os indivíduos são livres e iguais em direito, livres para agir, para pensar como quiserem com a condição de que seus atos não atentem contra os direitos dos outros e não ponham em perigo o interesse geral, que o Estado tem por função representar e defender. Os indivíduos, desiguais por seu lugar na economia, gozam, portanto, no plano político, no quadro de um Estado democrático, da igualdade pelo direito.
Esta transição, ou seja, de uma sociedade pré-moderna estratificada para a sociedade de consumo moderna, funcionalmente diferenciada, significou que o papel social dos indivíduos foi fracionado, ou melhor, cada indivíduo passou a desempenhar diversos papéis sociais simultânea e independentemente. Isto implica que a partir da modernidade as pessoas individualmente não podem ser mais situadas de maneira exata em apenas um subsistema da sociedade. As pessoas ocupam transversalmente inúmeras funções sociais que compõem uma biografia peculiar à modernidade. A profissão, o trabalho, a comunidade religiosa, a vizinhança, a família, a escola, o círculo de amizades entre outros, são fóruns de relações autônomos pelos quais os indivíduos circulam. Esta nova configuração social deixa o indivíduo constantemente deslocado, como um estranho em toda parte. Independentemente do fórum social em que se encontre esta esfera social não é suficiente para conferir-lhe uma identidade plena e naturalmente reconhecida nos outros espaços. Sua história, sua reputação estão fracionadas, divididas funcionalmente, e só os aspectos relevantes de sua biografia para a relação em uma dada esfera social emergem para o conhecimento daquele grupo especificamente.
Essa nova ordem mundial tem como principal característica o fenômeno da globalização que pode ser definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que conectam destinos longínquos de tal sorte que acontecimentos locais podem ser impactados por eventos oriundos de outros continentes e vice-versa. “A transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e espaço."4
A globalização ainda é um processo em marcha. No decurso de algumas décadas houve transformações profundas no desenho das relações humanas. As tecnologias de transporte e logística encurtaram o tempo de transposição das distâncias globais com enorme impacto nas atividades de comércio e turismo, por exemplo, e no âmbito da comunicação as trocas acontecem em tempo real, como no caso da mídia, telefonia e internet. A velocidade dessas transformações modifica as fronteiras dos espaços sociais tradicionais deixando-as mais permeáveis e ao mesmo tempo abre outras perspectivas sociais, econômicas, políticas e culturais pela confluência de quatro forças centrípetas primordiais - o capital, as corporações, os consumidores e as comunicações. Segundo IANNI5 , "essas características da globalização, configurando a sociedade universal como uma sociedade civil mundial, promovem o deslocamento das coisas, indivíduos e idéias, o desenraizar de uns e outros, uma espécie de desterritorialização generalizada".
Bauman6 considera que o atual processo de globalização é um processo contraditório em si mesmo já que, ao mesmo tempo em que une todo o planeta por meio da compressão do tempo/espaço operacionalizada pela extraordinária velocidade de movimento advinda principalmente da chamada Terceira Revolução Industrial – a revolução informacional – também separa e segrega um número gigantesco de seres humanos que não conseguem e nunca conseguirão, devido à lógica interna do processo, ter acesso às suas benesses. Assim, a globalização amplia ainda mais o fosso que separa as classes sociais por outra característica: a mobilidade fluída entre as fronteiras para aqueles possuidores dos recursos info-técnico-econômicos7 , que pode ser considerada um tipo de liberdade censitária contemporânea, isto é, ausência de restrição espacial.
Esse contingente que transita relativamente sem impedimentos entre fronteiras constitui, portanto, uma classe social global8 que pode mover-se e deslocar seus investimentos de um lugar para outro, sentindo-se "em casa" em qualquer lugar do planeta, devido à hospitalidade (pública) dos Estados globalizados alcançada pela homogeneização do espaço em que ela habita e freqüenta. Mas também há as classes locais impossibilitadas de moverem-se e presas a uma espacialidade na qual nem conseguem mais decifrar seus códigos, sinais e símbolos, porque estes escaparam aos seus controles e não são mais produzidos por elas, uma vez que "os centros de produção de significado e valor são hoje extraterritoriais e emancipados de restrições locais"9 .
Detenha-se a reflexão apenas um instante na questão do patrimônio cultural que é um símbolo de referências essencialmente locais e importantes para a memória identitária oficial e/ou afetiva de uma comunidade. Prats10 alerta quanto à eleição desses símbolos:
“(...) nenhuma invenção adquire autoridade até que se legitime como construção social e nenhuma construção social se produz espontaneamente sem um discurso prévio inventado (seja em seus elementos, em sua composição e/ou em seus significados) pelo poder.” (...) “os critérios de legitimação simbólica e as ativações de repertórios referentes patrimoniais convenientemente adjetivados e articulados em discursos ao serviço de versões ideológicas e interessadas da identidade (para nós mesmos) e de versões, não menos ideológicas e interessadas da identidade (para os outros) para vender no mercado turístico patrimonial: isto é o que existe.”
As classes globais exercem considerável influência no processo de seleção dos repertórios patrimoniais para utilização turística. Elas representam não apenas a demanda interessada como também em muitos casos a própria estrutura do trade receptivo. Aqui se faz referência ao pool de corporações internacionais de hotéis, companhias aéreas, agências de viagens, agências de locação de veículos, instituições financeiras entre outros que homogeneízam (ou globalizam) a hospitalidade anfitriã (local). Isto é especialmente intenso nas cidades que desejam se tornar destinos de sucesso (sustentáveis) e se inserir no fluxo de turismo global. Destaca-se, portanto, a perspectiva do discurso de ativação de determinado elenco patrimonial. Para além dos óbvios poderes interessados e capazes de tal ativação pelo marketing, ressalta-se o status fracionado das identidades sociais locais e as pressões globais a que estão submetidas na eleição dos seus signos de memória e identidade.
Uma progressiva ruptura entre as elites extraterritoriais, cada vez mais globais, e o restante da população, cada vez mais localizada, vem contribuindo eficazmente para o surgimento de tendências neotribais, fundamentalistas, etnofóbicas e também da nova hierarquia e estratificação social. A simultaneidade e polarização do Fórum Social Mundial em oposição ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, ilustram bem esta situação.
Este processo parece inevitável e irreversível nos grandes centros urbanos onde funcionam os mecanismos de desencaixe social11 – a desatenção civil e os sistemas peritos. No entanto, essa lógica tende a se reproduzir nas comunidades tradicionais e rurais, nos lugares onde os laços sociais se estabelecem em circunstâncias de co-presença segundo a lógica maussiana12 da dádiva - o dar, receber e retribuir em oposição à lógica mercantil do vender, comprar e fidelizar. Estas localidades apresentam inicialmente uma resistência natural à globalização, mas freqüentemente terminam seduzidas (pelo menos seus representantes políticos) com a promessa dos benefícios do desenvolvimento econômico.
A hospitalidade pública está atrelada aos interesses comerciais corporativos globalizados, e, portanto, contingenciada. Porém, a hospitalidade no domínio privado-familiar produz uma força centrífuga à ideologia dominante, em direção a alteridade, onde a identidade individual e dos grupos é assegurada, tanto do lado do anfitrião (local) como do visitante (estrangeiro). Tal força permite a abertura de espaços verdadeiramente hospitaleiros que possibilitam o contato real, não anônimo ou virtual, aos indivíduos para compartilharem suas subjetividades. É preciso um mínimo de civilidade (e humanidade) com o estrangeiro a fim de que se possa não só acolhê-lo enquanto outro, mas permitir um redimensionamento dos próprios valores por sua diferença radical. E isso se torna decisivo, principalmente na comunidade européia que teme a invasão de imigrantes que trazem consigo não somente uma outra língua, mas todo um outro corpo cultural. Fechar-se ao estrangeiro é abrir mão daquilo que pode revitalizar a comunidade. A hospitalidade passa pelo imperativo da acolhida do Outro e da reestruturação do anfitrião, sem que nenhum nem outro se destruam. Isso é o que outrora se chamava de tolerância. Mas uma tolerância que seja apenas reticente em face do outro está ainda demasiado próxima das formas de guerra e de destruição que se conheceu até hoje, praticadas em nome da salvação e da saúde da comunidade.
É importante refletir a hospitalidade como a relação política e social que se dá entre as nações, nas cidades, em sua qualidade estrutural e cultural. A hospitalidade requer do anfitrião cidadania, pois este é seu lugar, seu lar, seu espaço de vivência e convivência, que traduz sua cultura, tradições e seus valores, enfim sua identidade. Tal identidade implica em responsabilidades cidadãs ao anfitrião e, como qualquer outra identidade, não está imune à trama do tempo. Seja no plano individual ou coletivo, a identidade pressupõe sempre uma relação dinâmica e profícua com a alteridade. A hospitalidade do lugar será sempre impregnada da qualidade ambiental, estética, cultural e social que a identidade da comunidade imprime ao território.
Está em questão pensar os desafios (filosófico, ético, jurídico, político e cultural) da hospitalidade, através de uma reflexão da problemática das fronteiras, ou seja, da mobilidade das pessoas, das idéias, da informação, dos hábitos, de capitais e mercadorias nos diversos espaços sociais reconfigurados na contemporaneidade. A título de exemplo turistas, bancos, investidores e corporações internacionais, exércitos supranacionais, movimentos religiosos, ONGs, entre tantos outros dignos representantes da globalização se inscrevem nas sociedades anfitriãs locais. Como se os acolhe e os rejeita? O que distingue a lógica da invasão da lógica da visitação? Como reelaborar as questões da cidadania, da integração/assimilação, do turismo, da xenofobia e do racismo, a partir da questão da hospitalidade?
Toma-se como importante referência para este ensaio a filosofia dialógica de Martin Buber13 que investiga profundamente o que denominou de “esfera do inter-humano'. Na concepção buberiana é na inter-relação, no encontro de alteridades que se pode viver a integração, cujo principal pressuposto é que cada um veja o outro tal como precisamente ele o é – uma totalidade e contudo, ao mesmo tempo, sem abstrações que o reduzam.
Para o “filósofo do diálogo” o encontro é o campo entre duas totalidades que se tocam mutuamente, onde os participantes se confirmam como pessoas, numa relação recíproca. Essa premissa dialógica é mais que apenas o relacionamento dos homens entre si, é antes seu comportamento, a atitude de um para com o outro. Na situação dialógica, o elemento essencial é a reciprocidade da ação interior do homem que está face a face com um outro, o qual nunca pode ser reduzido à categoria de objeto sem transformar a relação com outro em relação com a coisa. No encontro verdadeiro é preciso que todos os envolvidos se tornem presentes na sua totalidade. Nessa lógica, há dois caminhos distintos de relacionamento: a relação “Eu-Isso” que se baseia na observação do “Eu” sobre o outro, à distância, como coisa ou objeto separado e à parte de seu mundo; e o caminho do “Eu-Tu”, onde há verdadeira consideração pelo outro, e a relação é um encontro entre vidas, possibilitando-se o autêntico diálogo.
Essas considerações implicam em questões fundamentais quando transportadas para o plano da hospitalidade. A relação de hospitalidade se dá invariavelmente entre anfitriões e hóspedes nas mais variadas circunstâncias, como migrações, exílios, turismo, etc. Na perspectiva buberiana, pode-se fazer a seguinte leitura: o “Eu” anfitrião tem, em potência, duas atitudes frente ao relacionamento com o hóspede, ou seja, como “Tu” ou como “Isso”. A primeira diz respeito a uma atitude essencial do homem, um encontro, uma relação com um outro presente e direta em que se confirma a existência de ambos e o sentido maior desta existência (atitude ontológica). O hóspede “Tu” revela a reciprocidade mútua do vínculo repleto de significações, cujo exemplo característico é a dádiva da hospitalidade doméstica e religiosa. A segunda atitude se dirige à experiência prática no mundo como objetos passíveis de serem conhecidos objetivamente. O hóspede “Isso” é reificado e, portanto, produto de uma relação redutora de significados, cujo símbolo pode ser o turista-cliente. O mesmo raciocínio é válido pela perspectiva do hóspede, sendo o anfitrião reduzido ao papel de provedor ou fornecedor.
A primazia da relação “Eu-Tu” como reveladora da existência do humano não reduz a atitude “Eu-Isso” a concepções negativas ou inferiores. A atitude “Eu-Isso” é fundamentalmente humana e possibilita o homem conhecer e interferir na realidade objetiva. Mas, na sociedade de consumo, ela deteriora (ou simplifica) os encontros, e o homem perde muito de sua humanidade, o fundamento ontológico de onde nasce a vitalidade de sua existência. |
1 Mestre em Hospitalidade e Bacharel em Administração e Marketing pela Universidade Anhembi-Morumbi. Especialista em Planejamento e Marketing Turístico pela Faculdade de Turismo e Hotelaria SENAC. Professor nos cursos Superior de Turismo e de Tecnologia de Eventos da UNICID, e no curso de Pós-graduação em Gestão em Serviços de Hospitalidade da UAM.
2 Não é objetivo deste texto explorar historicamente as transformações indicadas, mas apenas apontar as implicações que elas suscitam nesta análise.
3 GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2001, p.310.
4 GIDDENS, Anthony: As Conseqüências da Modernidade, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991, p.70.
5 IANNI, Octavio. O Labirinto Latino-americano. Petrópolis: Vozes, 1993, p.59.
6 BAUMAN, Sygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
7 Exemplo: o conhecimento e domínio de línguas estrangeiras, a familiarização com os meios digitais de informação e comunicação fazem a distinção entre inclusão ou exclusão no processo de globalização.
8 Denominação criada por Bauman para as classes possuidoras. Ele classifica de locais as classes despossuídas de tais recursos.
9 BAUMAN, Sygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.9.
10 PRATS, Llorenç. El concepto de patrimonio cultural. Política y sociedad. Madrid: Universuidad de Barcelona, 27 ,1998, p. 63-76.
11 Conceitos desenvolvidos mais extensamente em GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991.
12 Para melhor compreensão ver MARTINS, Paulo H. (org.). A dádiva entre os modernos. Petrópolis, Vozes, 2002.
13 BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo, Centauro, 2001. |