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Artigo
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OUTUBRO/2006: Santos, Alemães e o Cemitério Protestante: Colônias estrangeiras e Patrimônio cultural.
Haroldo Leitão Camargo1
 
RESUMO: Os primeiros imigrantes germânicos em Santos: dos primeiros anos após a Independência à primeira década do 2o reinado. Mercadores, trabalhadores, e a sua inserção social numa sociedade escravista. A construção da colônia alemã por meio de estruturas simbólicas. O Cemitério Protestante, também conhecido como Cemitério dos Alemães primeira representação de identidade dessa “colônia” urbana em Santos. As edificações e as respectivas instituições de origem estrangeira, no caso, aquelas das colônias, remanescentes ou desaparecidas, na medida em que foram articuladas para atender necessidades locais e se inserem na paisagem urbana, também são, da mesma forma que outros assim considerados ou classificados, bens do patrimônio histórico ou cultural local.



ABSTRACT: The first group of german immigrants in Santos, an harbour village in São Paulo Province (todays’ São Paulo State), in earlier times of Brazilian’s monarchy and independence from Portugal.Their settlement and social insertion among masters and slaves. Protestants’ Cemetery, the also called Germans’ Cemetery, as a simbolical, and the very first, structure of that urban colony. Therefore, in such case, buildings and immigrants’ institutions, since they are built for local needs, may be considered, as any other local, historical or cultural, heritage item.










Introdução

O artigo que se segue é uma síntese, muito reduzida, dos dois primeiros capítulos de minha tese de doutoramento: A colônia alemã de Santos e a construção do “perigo alemão”: da formação ao expurgo (1822-1943). Os capítulos originais, “Os primeiros germânicos em Santos” e “As estruturas simbólicas da colônia”, aparecem aqui fundidos, adaptados e simplificados para esse suporte que é a Revista Eletrônica. Tanto a linguagem utilizada, quanto o excessivo número de notas de rodapé, referências bibliográficas e anexos documentais, tornam inadequado o texto para os fins a que aqui se destinam, não obstante, tudo isso ter sido necessário para o trabalho e a sua destinação primeira, quando da sua apresentação em 1996.

Mas há outras considerações a fazer que dizem respeito ao conteúdo. A idéia do tema da tese surgiu quando eu ainda era historiador no Condephaat, órgão estadual responsável pelo patrimônio histórico de São Paulo. Inicialmente, tratava-se da instrução do processo de um casarão em São Vicente, a Casa do Barão, que pertencera a uma família alemã até 1943. A despeito do interesse pelo imóvel enquanto patrimônio arquitetônico, de pedra e cal, e de tê-lo efetivamente realizado, o estudo revelou, ao menos para mim, aspectos absolutamente desconhecidos referentes à presença alemã em Santos – São Vicente figurava apenas como domicílio, sem maiores vínculos com as atividades comerciais – e a necessidade de melhor compreendê-los, particularmente a sua expulsão de Santos e de todo o litoral paulista. Os acontecimentos durante as duas Guerras, o pangermanismo e o nazismo, assim como os problemas de rivalidades comerciais, de resto visíveis nesses períodos em Santos, não me pareceram adequados e suficientes para o entendimento do problema, cuja infra-estrutura se constituiu efetivamente em razão das singularidades das colônias alemãs homogêneas, principalmente no sul do país. Assim, retroagi até a década da independência, na tentativa de reconstituir a colônia urbana dos alemães em Santos, perdendo-se toda e qualquer perspectiva de um trabalho voltado para o patrimônio, no sentido mais restrito do conceito, ou seja, de remanescentes edificados.

O que proponho aqui é refazer o caminho ao inverso. Ao invés de deter-me apenas em questões de identidade nacional, étnico-culturais ou abordar mais enfaticamente situações permeadas por ideologias políticas, tomar os primeiros tempos da formação da colônia e rememorar historicamente bens patrimoniais desaparecidos, particularmente evocando o primeiro deles, o Cemitério Alemão que ao fim e ao cabo foi, em Santos, o cemitério dos protestantes. Aos leitores interessados por assuntos históricos correlatos, aqui descartados e que não abordarei, convido à leitura de um outro artigo meu, “A construção do Perigo Alemão”, na Revista Eletrônica Históriae-história, , entre os links da revista Patrimônio: Lazer & Turismo.





Os primeiros germânicos em Santos: sociedade e inserção social.


“O estrangeiro está próximo na medida em que sentimos traços comuns de natureza social, nacional, ocupacional ou genericamente humana, entre ele e nós. Está distante na medida em que estes traços comuns se estendem para além dele ou para além de nós, e nos ligam apenas porque ligam muitíssimas pessoas”.

Georg Simmel, “O Estrangeiro”.



Ao rememorar, nas últimas décadas do século XIX, a antiga população santista, Garcia Redondo2 dizia, predominarem “... dez ou doze famílias paulistas, muito aparentadas entre si (...) a colônia portuguesa, alguns alemães e raros indivíduos de outras nacionalidades”. Em sua percepção, a cidade que lhe era contemporânea naqueles anos que antecedem de pouco a Abolição e a República, já se afastava consideravelmente dos tempos em que “o largo da Cadeia Nova era um banhado, onde se matavam narcejas a tiro a qualquer hora do dia” e “o da Coroação não passava de um monturo infecto e nojento onde os tropeiros, que então conduziam o açúcar do interior da província para Santos, às costas de burros, arremessavam o capim que lhes servia para forrar os jacás onde traziam sacos de açúcar” e “nos dias de sol (...) as ruas da cidade cobriam-se de couros sobre os quais os negociantes mandavam estender o açúcar para secar...”.

Essas memórias, no entanto, são permeadas por alguns preconceitos, pois, não atribuem qualquer importância à população não pertencente àqueles grupos nacionais estrangeiros e às famílias paulistas dizendo em adendo, “o resto era a arraia miúda...”. Por outro lado, manifesta-se o articulista por meio de uma certa “ideologia de progresso” característica da camada social a que pertencia. O autor era engenheiro, de origem portuguesa, responsável pela construção do teatro Guarany, do qual hoje em Santos, mantém-se apenas os escombros, desaparecido pela indiferença e o desprezo que lhe votaram. Desprezo que, em outra circunstância, também é perceptível em Garcia Redondo pelas formas de vida no passado, onde efetivamente faltavam meios, posturas municipais eficazes, para ordenar o comportamento, coibir hábitos e manter condições sanitárias adequadas nos espaços públicos. Mas, ao mesmo tempo em que os critica, atribuiria às cargas de açúcar destinadas ao porto e ao tipo de transporte, traço ou sinônimo de atraso. Todavia, é de fato a incipiente industrialização em torno dessa mercadoria e sua exportação, naqueles ritmos e com aquela feição, que principia a se estabelecer um substrato para a exploração e comercialização do café, bem sucedidas, na Província de São Paulo.

Evidentemente, o relato é memória, não é história, ainda que a discussão e a interpretação das memórias sejam fator para a construção de história. Contudo, para que passado voltaria os olhos, o nosso memorialista? Não seria remoto, embora as diferenças que nota, “os costumes eram outros”, lhe pareçam tão grandes que parecem evocar a noite dos tempos. Nada que ultrapasse além de 37 anos. Se, escrevia na última década da monarquia, referia-se quando muito, aos últimos anos do 1o. Reinado, ao período Regencial e, com alguma largueza, aos primeiros anos do 2o Reinado. De 1828 a 1850.

É oportuno em primeiro lugar, não absorver o discurso de Garcia Redondo como o retrato histórico e fiel da população local – embora sinótico – e, não aceitar essa invisibilidade e falta de importância da arraia miúda. Comecemos então, pelo resto.

Havia em primeiro lugar, entre os habitantes, os escravizados. Deixando de lado o gênero e as respectivas faixas etárias, africanos e crioulos ou ladinos, os últimos, nascidos no Brasil. Além da tradicional divisão em escravos do eito e domésticos, aqueles chamados do ganho, treinados e dotados de habilidades artesanais, mecânicas, jornaleiros ou tarefeiros que, alugados para alguns indivíduos ou famílias, deveriam remeter o soldo para o senhor. Legalmente, todos sem exceção, eram reconhecidos como semoventes, o mesmo estatuto jurídico que identificava os animais domésticos, o gado, por exemplo. Se eram ou não bem tratados, dependeria dos humores de seus proprietários. A verdade é que, bem ou mal tratados, como semoventes, legal e socialmente, seu próprio corpo não lhes pertencia.

Entretanto, em função desse caráter de pertença, é até possível que nosso engenheiro não os incluísse sequer entre a arraia miúda. Talvez, o que permanece como suposição, se referisse apenas aos libertos e à população não-proprietária de mestiços e brancos que simplesmente vivia do seu trabalho e não tinha outras posses que não alguns trastes, a vestimenta e instrumentos para o seu trabalho. Aliás, como se pode identificar nos recenseamentos em diversos lares, ou fogos como figuram nos documentos, atividades apreendidas como: vive das suas quitandas; vive das suas ervas (medicinais); de pescarias, eventualmente das suas costuras, etc. Além desses indivíduos, domiciliados e, em cuja companhia figuram com muita freqüência, os agregados – que também se pode identificar em outros estratos sociais superiores – há um número considerável de “flutuantes” não recenseados e que tende a aumentar sempre em relação à importância local na 2a metade do século XIX, do porto, em particular. Marujos ou marinheiros, embarcadiços, tropeiros e como desdobramento, a existência de uma singela estrutura de serviços, precária, adequada apenas àquele público, de tavernas com serviços de alimentação e hospedagem que nada têm em comum com hotéis e restaurantes como os conhecemos.

Sob esse aspecto, hospedagem e em particular a alimentação, em Santos como na maioria das cidades brasileiras na primeira metade do século XIX, não deve causar muita estranheza, nem seria absurda a caça às narcejas citada por Garcia Redondo. Não se pode dividir com muita clareza, naquele tempo, a caça por simples prazer ou proeza, da necessidade efetiva de encontrar com o que se alimentar. Durante a viagem de Saint-Hillaire a São Paulo, seu criado providenciava “as refeições” abatendo pequenos animais no entorno da Hospedaria do Bixiga, no atual bairro da Bela Vista. Apesar disso, em razão do transporte por meio dos navios a vapor, ainda muito antes da Inglesa, as preferências dos paulistanos e provinciais do interior, por essa modalidade de viagens em demanda ao Rio de Janeiro principalmente, ao invés das terríveis viagens terrestres, pode ter contribuído para existir público flutuante de diferente perfil, como estímulo mais precoce em Santos, do que na capital, para o aparecimento dos negócios de alimentação e hospedagem.

E as famílias paulistas? Seria oportuno desenhar um pouco melhor os seus contornos sociais, abandonando a identidade que as faz descenderem dos pais fundadores, caciques indígenas e bandeirantes. Até é possível que assim fosse, não obstante, a ênfase no nascimento e vínculos de sangue, tradição construída em torno da idéia de aristocracia da Terra, de eupátridas, bem nascidos, pouco esclarece o seu perfil enquanto camada social. Na verdade, o perfil se fez mais recentemente e forjou-se por meio de processos de acumulação de capitais, formas de investimentos e da sua respectiva inserção no mercado internacional, com as peculiaridades históricas que lhe dizem respeito. Paradoxalmente, serão justamente esses novos contornos que impulsionarão a revisão do passado, para justificar sua posição social e nobilitar as estirpes que se fizeram burguesas, por meio de genealogias re-visitadas, dourando heroísmos e brasões.

A existência daquelas famílias paulistas não deve ser entendida apenas, nos seus elementos constitutivos e sociais como manifestação autônoma de singularidade local. Ela é em grande parte, o resultado de uma política metropolitana de estímulos, na segunda metade do século XVIII, para o povoamento e sedentarização na Capitania de São Paulo. A região tinha ocupação rala, o que despertava os temores de invasões e ataques de “castelhanos” e, era paupérrima. Exceto pequenos burgos, em sua quase totalidade vilas diminutas e pouco importantes, nada mais havia senão o sertão, índios de arco e flecha – em oposição aos mansos – e sítios volantes, transitórios, de indivíduos seminômades. Num total estimado de 300 mil habitantes, incluindo o atual Estado do Paraná a capital, São Paulo, fora feita rapidamente cidade em 1708, não por sua importância, mas para poder abrigar o primeiro bispo. As constituições eclesiásticas impediam a instalação dessa autoridade religiosa que não fosse em cidades.

Ora, Santos era o que lhe remetia o interior da Capitania, exceto o sal armazenado, monopólio da Coroa e que era distribuído para o interior. Do interior viriam índios escravizados; trigo do planalto e mais uns poucos gêneros que também poderiam vir do próprio litoral. Porto quase sem movimento de navios ou naus, sem ligações diretas com o exterior, dependendo do porto do Rio de Janeiro ou simples ponto de passagem. Também não havia muito a importar em razão dos índices de pobreza, resultado da ausência de produção de gêneros com alta aceitação nos mercados metropolitano e europeu.

Esse quadro levará a extinção administrativa da própria Capitania de São Paulo. Restabelecida em 1765, datam daí as medidas para provê-la como produtora e inseri-la no mercado exportador. O ouro obtido das expedições a Goiás e Cuiabá fará então a fortuna de algumas famílias extensas paulistas. Não o ouro entesourado, mas aplicado nos investimentos em terras, escravos e no plantio de cana em grandes propriedades. Isso propiciará a sedentarização, rendimentos pagos em forma de impostos, homens para o ofício de armas e importação de gêneros. Na medida em que se conseguia riqueza, ainda muito relativa, com a exportação de açúcar, seco, encaixotado e despachado pelo porto de Santos, mas ainda dependência do seu homônimo no Rio de Janeiro, lentamente, as transformações ocorreriam.

De forma sinótica, constituiu-se um sistema familiar, sedimentado em costumes, práticas e interesses materiais. As relações de parentesco e os casamentos ligam os que produzem o açúcar no interior, no chamado Quadrilátero3 , a Santos, com os responsáveis pela sua comercialização, que o porto e as ligações mais fáceis com o Rio de Janeiro, obviamente propiciavam. Como todas as sinopses perdem-se relações muito mais complexas, pois os comerciantes santistas também eram proprietários de terras e produtores de alguns gêneros na própria região litorânea, ou até no interior próximo. De qualquer forma, o que se procura acentuar aqui é apenas um aspecto dominante.

Pois bem, os paulistas casavam-se entre iguais, portanto, a característica de formação dessa elite dominante é de casamentos endogâmicos, entre familiares, mesmo porque os estoques de mulheres, em circunstâncias matrimoniais, eram relativamente reduzidos. Interesses múltiplos como o dote – que irá desaparecer ainda no século XIX – a manutenção do patrimônio sem dividi-lo, o que aconteceria com os casamentos exogâmicos, o controle do poder político local e regional, estão na base daquilo que se falou. Assim, não são estranhos os casamentos entre primos, às vezes de primeiro grau e, não raramente, tios com sobrinhas. Ou até de viúvas que desposam em segundas núpcias, o próprio cunhado. As eventuais diferenças de idade são comuns, pois se espera que os homens, já maduros e entrados nos quarenta, tendo sido capazes de acumular capitais, propiciem a mulheres muito mais jovens, e das quais se esperam filhos, uniões materialmente estáveis e prósperas para a prole que deve sucedê-los.

Um outro aspecto desse “sistema” é o costume, que não é local, mas consagrado em todo Brasil, da inserção nas elites, de portugueses de origem que se casam em famílias já brasileiras, – considerando aspectos culturais de integração – com mulheres igualmente brasileiras, que por sua vez, são filhas de brasileiras com pais de origem portuguesa. É fato também bastante conhecido que os caixeiros lusos, interessados em negócios e casas comerciais, venham a desposar as filhas do patrão, esse último, geralmente, também português de origem. Mais interessante do que citar documentos é observar essas peculiaridades por meio da literatura nacional no século XX. E, não é impossível que esses traços também venham, em outras circunstâncias, a manifestar-se acolhendo em casamento estrangeiros de outras origens, com mulheres brasileiras nessas famílias, entre as quais, as de grossos cabedais.

Mas enfim, antes de nos determos nos outros estrangeiros, em que medida são assim, também estrangeiros, os portugueses? Senão, como admitir uma colônia portuguesa, um grupo extra-nacional aparentemente homogêneo que poderia sugerir a denominação colônia? Desde quando são estrangeiros? Até a independência, e sob o ponto de vista jurídico-político, tais diferenças não se colocariam. Nascidos no Brasil ou em Portugal, sob o Antigo Regime, todos eram súditos do rei. Claro que o estatuto legal não tem, necessariamente, correspondência com a realidade social. Sob esse aspecto, a dicotomia binária de origem ou proveniência, do Reino/da Terra, é uma contraposição cujo significado transcende a qualificação de gêneros ou mercadorias, mas é campo para reflexão das diferenças e das hierarquias sociais entre indivíduos, uns e outros. Evidentemente, o que se diz aqui de forma generalizada, não capta a realidade histórica nos seus aspectos singulares, enquanto dimensões espaço-temporais múltiplas, e por vezes, contraditórias.

Fica assentado que após a independência e com a grande nacionalização, que ofereceu aos estrangeiros aqui residentes a possibilidade de se tornarem brasileiros, estrangeiros e imigrantes são entendidos pelo estatuto jurídico político, num quadro delineado pelo Estado Nacional. Por outro lado, em contraponto, são brasileiros aqueles que aqui nascidos tem direito de solo, independente das origens dos pais.

Aparentemente tudo muito simples se, para alguns estados, como a Alemanha unificada, não vigorasse diferentemente o direito de sangue, ou da origem das estirpes parentais. Ou seja, nessas circunstâncias como de fato ocorreu entre o Brasil e a Alemanha as situações de conflito se multiplicaram desde finais do século XIX e se arrastaram, não sem confrontos, durante os primeiros quarenta e cinco anos do século XX. Isso, para não lembrar também, que na primeira metade do século XIX, no caso de propriedades e heranças dos nacionais de quase todos os países europeus, e sua respectiva transmissão, invocavam-se direitos de extraterritorialidade e os respectivos processos ficavam afetos aos cônsules locais dos países estrangeiros. Não é, portanto, uma banalidade para a explicação histórica, um mero viés legalista, o estatuto jurídico-político dos estados nacionais para a compreensão da situação do imigrante estrangeiro e seus descendentes.

Apesar disso, é mais complicado o entendimento quando a questão do estrangeiro imigrante tem por foco aspectos lingüísticos, religiosos e raciais, com suas implicações e desdobramentos, para citar apenas os mais importantes. O contexto étnico-cultural. E por étnico, como também considera Claude Levy-Strauss, nada mais há do que um eufemismo em vigência desde o fim da 2a. Guerra Mundial, para designar raça.

O contexto citado pode ser compreendido por meio da assimilação, que teria o significado de dissolução ou desaparição de particularidades num todo étnico-cultural nacional dado; aculturação, um processo de inteiração dialética entre novos traços aportados e a absorção daqueles originais encontrados no local, dando origem a uma nova realidade, uma síntese; ou simplesmente integração, mais uma estratégia para a interpretação, do que conceito. Fluida e plástica, aplicável a clivagens múltiplas, em circunstâncias particulares, sem aspiração de totalizações. Essa última perspectiva é aqui a mais adequada, pois se pode haver conflitos entre estados por razões de direito de solo e de sangue, torna-se infinitamente mais complicada a sua simultaneidade combinada com aspectos étnico-culturais.

Evidentemente, todos os problemas evocados, exceto de forma muito residual seriam aplicáveis aos portugueses, ou até mesmo a espanhóis, o que considerando a composição étnica de contingentes estrangeiros em Santos em quase um século, não é irrelevante. Já é bastante sabido que a partir da 2a geração, os descendentes de ibéricos seja qual for sua proveniência regional, são completamente assimilados, com raríssimas, e que podem tornar-se também, curiosas exceções.

Ora, resta entender, o que é uma colônia? Termo consagrado pelo uso comum que, no entanto, é despido de qualquer precisão, não é transparente, nem do vocabulário usual pode ser elevado à categoria de modelo como, aliás, todas as outras palavras nessas circunstâncias. Tanto ele pode designar colônias agrícolas de povoamento de estrangeiros quanto, colônias (também agrícolas) penais... Sob essa perspectiva é um agrupamento de iguais: numa todos são estrangeiros, idealmente da mesma origem, noutra são indivíduos geralmente do mesmo sexo, todos condenados. É possível ainda, encontrá-las entre os portadores de doenças transmissíveis ou até, como designação laboratorial dos organismos responsáveis por elas. Colônia soa então como agrupamentos de iguais segregados. Segregação auto-imposta por inúmeros motivos e assumida entre iguais ou, obrigada por coerção de natureza sanitária ou penal, que os iguala.

Daí decorre uma profunda contradição, pois as colônias dos estrangeiros imigrados, evocam uma homogeneidade para os que as observam de fora que, no entanto, é aparente. Quando vistas internamente, essas comunidades revelam profundas diferenças. São microcosmos sociais com antagonismos e conflitos onde seus segmentos internos relacionam-se de forma desigual, mais ou menos intensamente, assimetricamente, com a sociedade local nas quais se inserem.

Finalmente, das colônias de povoamento de imigrantes estrangeiros no Brasil, era possível – e em alguns casos ainda é – visualizar suas particularidades e diferenças do ambiente humano no entorno, por meio do contraste de traços étnico-culturais que, além das óbvias diferenças raciais, envolveriam também a arquitetura, sua morfologia e disposição espacial; os hábitos alimentares; de sociabilidade e, as práticas religiosas. Além de a colonização basear-se na posse e exploração de pequenas propriedades. De tal forma que se poderia dizer, sem contradizer os contrastes sociais internos admitidos, que são homogêneas, principalmente porque os seus componentes étnicos também o são apenas enquanto tal.

De maneira quase que totalmente oposta, as colônias urbanas não são concentrações isoladas e apresentariam características mais acentuadamente heterogêneas, apesar da percepção de traços étnicos e lingüísticos de indivíduos – assinalados por observações pontuais – e, a sua identidade só se daria efetivamente, ou poderia ser apreendida, por meio de estruturas simbólicas como igrejas, escolas, associações beneficentes e hospitais, ou clubes de esportes e lazer. Excluo aqui os agrupamentos comunitários de moradia e trabalho, em espaços urbanos específicos, que são posteriores e característicos da industrialização. Nessa perspectiva, o fenômeno não é ocorrência sistemática na sociedade pré-industrial, onde se inserem os alemães e os demais imigrantes que se estabeleceram em Santos, formando as primeiras colônias urbanas. Se as relações de seus membros com os países de origem dão-se por meio dos consulados4, sua coesão enquanto grupo não nacional, só se constrói e alcança efetivo reconhecimento ou visibilidade social, por meio daquelas instituições ou estruturas simbólicas locais, materializadas concretamente em espaços edificados.

O que pode efetivamente ser observado é que o período do seu primeiro estabelecimento, a primeira metade do século XIX, ao menos em Santos, não apresentará situações conflituosas como aquelas que irão se verificar com a autoconsciência nacional alemã crescente nos fins daquele século, em confronto com outro desenho de nacionalismo brasileiro – pressuposição de que é variável e responde sempre a necessidades sociais distintas conforme o tempo – e em conjunção com os conflitos imperialistas que se alimentam além do prestígio, das rivalidades comerciais européias. Talvez isso explique, com todas as dificuldades, uma acomodação maior aos padrões tradicionais da sociedade local da “colônia” dos primeiros tempos. Como ela se formou?

Idealmente, há independente da região de origem5, dois grupos bastante distintos de germânicos em Santos. Um que se identifica com aqueles de grossos cabedais, povo graúdo. Outro que poderíamos chamar povo miúdo. Denominação estratégica, sem qualquer pretensão literária arcaizante, mas que procura evocar uma formação social ainda tradicional, sem contornos de classes mais claramente definíveis no universo capitalista.

Assim, fixados idealmente e despojados de sua complexidade interna, poderíamos considerar no primeiro grupo os comerciantes ou negociantes e, os profissionais liberais. Nesse caso, além de profissões tradicionalmente conhecidas, não são levados em conta, necessariamente, índices de fortuna, mas, sobretudo, a sua inserção em situações de prestígio local em conexão com a elite ou os graúdos da terra. São os que atraídos pelas possibilidades de mercado e oportunidades de negócios, vêm estabelecer-se em Santos por seus próprios meios ou através de empresas comerciais e instituições que solicitam sua participação para o desempenho em serviços.

Historicamente, portanto, não se trata de contingentes de imigrantes convencionais desembarcados em levas constituídas de núcleos familiares, mas atraídos pela presença da Corte no Rio de Janeiro desde 1808 e as repercussões com a abertura dos portos. De um lado, há a presença de representantes diplomáticos, comerciantes e, em razão do grande contingente de cortesãos, o aparecimento de mercadorias, serviços, níveis e tipos de consumo, anteriormente desconhecidos. E, a partir de 1815, com a paz na Europa, o número de estrangeiros na Corte aumentou e diversificou-se. Na verdade, os pólos de atração, além do Rio de Janeiro, foram os dois outros maiores centros urbanos: Salvador e Recife. Atração por Santos e de resto, pela Província de São Paulo, ainda é nesse período um fenômeno periférico. A situação mudará radicalmente, apenas no último quartel do século XIX.

Nessas circunstâncias, um dos primeiros comerciantes germânicos e de importância significativa a estabelecer-se em Santos é Friedrich Fomm. Diretor-gerente da firma Viúva Aguiar Filhos & Cia., casou-se com Bárbara da Costa Aguiar em 1824, uma das filhas do coronel João Xavier da Costa Aguiar. Fomm era renano (embora de nacionalidade prussiana com a cessão dessa província à Prússia em 1815) nascido entre os anos de 1790 e 1793 em Elberfeld6. A Renânia natal de Fomm era área de vanguarda no contexto do processo de industrialização das regiões alemãs, com a produção de têxteis e ferramentas, tornando-se comuns e necessários os representantes junto às casas de exportação. Muito ligada ao ocidente europeu, em particular à Inglaterra que também desempenhou papel essencial, primitivamente, na exportação de maquinário e técnicos para a região. Nascido de uma família burguesa que lhe proporcionou boa educação, as atividades empresariais de Fomm iniciaram-se em Londres e, é provável que sua vinda para o Brasil tenha se configurado como uma possibilidade a partir dos contatos londrinos.

É também com uma das filhas de João Xavier da Costa Aguiar, Genebra, que irá casar-se em 1826 um outro germânico, Karl Heinrich Melchert, ainda que não venha a radicar-se em Santos. Mais relevante é, no entanto, o fato de o primeiro casamento das mulheres da família Costa Aguiar ter se realizado com a personagem que parece renovar o sistema, o “inglês” William Whitacker. Guilherme, o inglês, como é conhecido em Santos e denominado nos Cadernos de Assentos Particulares do sogro. Numa das primeiras referências que se obtém de Whitacker, vindo de Portsmouth de passagem pelo Rio e com destino a Santos em 1814, no Registro de Estrangeiros, ele se declara comerciante, no entanto, nascido em Cork na Irlanda.

Whitacker é também vice-cônsul da Inglaterra desde 1815, enquanto Fomm era cônsul das cidades hanseáticas em Santos. Embora integrados à sociedade local, ou até por essas razões, são os representantes dos interesses estrangeiros na Praça. É oportuno, no entanto, salientar que esses cargos ordinariamente atribuídos a comerciantes locais afluentes, não teriam a dimensão de postos diplomáticos tais como os concebemos. E por outro lado, não seria possível ainda na primeira metade do século XIX, chamar os representantes lotados no Rio de Janeiro de diplomatas de carreira como faríamos atualmente. Essas funções diplomáticas eram desempenhadas tradicionalmente apenas por aristocratas de origem. Mas aristocratas não tinham carreira profissional, mas funções que além dessa, incluíam também os altos postos militares e eclesiásticos.

Comerciantes de grandes firmas e afluentes localmente serão, por sua vez, os ocupantes dos consulados. Essa é uma tradição que se consolida com Theodor Wille desde 1844, cônsul da Prússia. Wille foi o fundador da casa homônima em Santos e os seus diretores, cônsules prussianos, depois alemães com a Unificação, mantém-se nesse posto até a altura da 2a. Guerra Mundial, sempre ocupando esse cargo. Wille teria vindo para o Brasil em 1838 e, no Rio de Janeiro, trabalhou em diversas empresas germânicas. Posteriormente constituiu a matriz de Santos que terá, por sua vez, filiais em São Paulo e no Rio. Em 1847 retorna para a Alemanha radicando-se em Kiel, fundando posteriormente em Hamburg firma também homônima à santista. Solteiro e sem filhos, seus sucessores assumem o papel de herdeiros na firma da Baixada e na representação consular. São os casos de Heinrich Wilhelm Alardus e Leopold Diederichsen, em 1847 e 1853, respectivamente.

O último nome é o mais importante para os fins que nos ocupam. Alardus morreu sem descendentes, no entanto, Diederichsen apresenta os mesmos padrões de integração com as famílias locais. Casado com Francisca da Costa Aguiar de Andrada, tornou-se parte do clã mais influente dentro da Cidade e cuja notoriedade, ultrapassa de muito em prestígio os limites de Santos e da Província. O casamento torna-o também concunhado do barão de Penedo e, cunhado do barão de Aguiar Andrada. Por outro lado, em se tratando de uma Costa Aguiar ligou-se ele também, em contraparentesco, com Fomm, Melchert e Whitacker.

Há inúmeros outros nomes germânicos nesse estrato ou em condições semelhantes como os irmãos Backhäuser que originalmente, nas listas de habitantes, figuram como “agregados” de Fomm. Outros comerciantes como Wedekind ou, profissionais liberais como o médico von der Meden e Wilhelm Delius que, advogado de origem, foi o fundador da Revista Commercial, tradutor juramentado, professor, além de tesoureiro da Misericórdia de Santos. Característica de afluência política local, entre os membros da Santa Casa na segunda metade do século, encontram-se também alemães entre os mordomos e mesários. Um reparo importante é aqui ser levada em consideração, mais uma vez, não apenas os níveis de fortuna, mas a afluência social.

Resta finalmente, considerar esses Costa Aguiar e as suas alianças. João Xavier originário de vila no bispado de Coimbra teria vindo para o Brasil em companhia da mãe e dois irmãos. Capitão de Milícias foi também o primeiro administrador em Santos das duas linhas de correio criadas na vila em 1798 e, que a ligavam ao Rio e São Paulo. Além de comerciante envolvido no trato de embarques de açúcar, era proprietário e agricultor de diversos sítios locais como o Cabuçú, Curral, Trindade e Monte Cabrão. No Cabuçú, talvez o mais importante, cultivava arroz, cana (principalmente para a produção de cachaça) e mandioca, empregando aí 30 escravos. Na lista da população de 1822, a viúva Aguiar é senhora de 55 escravos declarados, indicador de considerável fortuna para os índices da época. Na verdade, a afluência de Aguiar deve-se muito ao seu casamento, realizado em Itu – a mais rica área açucareira do Quadrilátero – com a brasileira, Ana Joaquina, de família abastada, os Barros Penteado, cuja fortuna se fizera das minas.

Uma parte dos estrangeiros, portanto, vincula-se ao sistema e tende a perpetuar as elites paulistas que, após a independência, e em alguns casos com títulos nobiliárquicos, usufruíram também de considerável poder político. Essa consideração, exceto os aspectos relacionados ao beneficiamento para-industrial de mercadorias e o comércio portuário, não apresenta qualquer singularidade digna de nota em Santos no período. Antes, confirma a profunda integração com o interior da Província por meio de laços familiares e interesses. Logo, não são apenas as famílias paulistas locais muito aparentadas entre si, mas as relações de parentesco atingem território muito mais amplo.

Um outro tipo de imigrante, que formou em Santos o povo “miúdo” (sem qualquer similaridade com a arraia miúda de Garcia Redondo) constitui-se nas suas linhas mais gerais daqueles contingentes familiares que desde o decreto do Rei em 1820 “abria” o Brasil para os europeus que o quisessem povoar. Contingentes teoricamente organizados, embora a organização seja no mínimo questionável, atendendo ou não a políticas, não há ao menos na primeira metade do século XIX nenhum fluxo efetivamente destinado a Santos e ao litoral paulista, com a única e rara exceção de alguns alemães para o trabalho de ligação do litoral com o Planalto, em Cubatão.

O assentamento local desse estrato social apresenta algumas similaridades com a dos alemães estabelecidos em Rio Claro e que para lá não se destinavam, mas eram egressos da fazenda Ibicaba, onde se verificaram as tentativas de implantação do regime de parceria do senador Vergueiro7. A maioria dos imigrados que se declarava agricultor no local de partida tinha, não obstante, pouca familiaridade com o trabalho da terra e era constituída efetivamente de pequenos artesões urbanos. Assim os germânicos miúdos em Santos, são na maioria desgarrados de algum outro projeto e que não os destinava necessariamente para o local onde acabaram por se radicar.

Data do final do Primeiro Reinado, entre os anos de 1828 e 1829, a vinda de imigrantes que iriam povoar o sertão de Santo Amaro, hoje cidade conurbada à capital de São Paulo, com a constituição da colônia daquele mesmo nome e Itapecerica da Serra, o primeiro estabelecimento desses alemães em Santos. É possível também, nessa e em outras circunstâncias, terem sido atraídos pelos graúdos que demandavam braços para alguns empreendimentos locais. Evento bem estudado e documentado, inclusive com as listas dos viajantes e respectivos navios8. Além dessas levas e da referência ao Cubatão, também não é possível descartar que alguns indivíduos ou famílias, inicialmente destinados às colônias do Sul, de Santa Catarina e São Pedro, também tivessem vindo estabelecer-se na vila do litoral paulista.

Todavia, exceto as eventuais características étnico-culturais, lingüísticas e religiosas, as diferenças entre os dois grupos são muito profundas. Se viajar era penoso para todos, para alguns ainda era muito pior e, as condições de recepção encontradas no Brasil são decepcionantes. Não é possível omitir que desses imigrantes, ainda que não totalmente sem posses, nada se esperava que não fosse executar trabalho atribuído aos escravos. Assim: “Desembarcavam e eram recolhidos à Armação (Rio de Janeiro). O alojamento seria pouca coisa superior a um valongo (no Rio, depósito de escravos chegados da África). Grande parte dos imigrantes dormia nos pátios sobre esteiras. Depois eram reembarcados com destino a Santos. À chamada, nem todos compareciam; alguns como anota o encarregado, desertaram nesta Praça...”9. Quanto à recepção em Santos as impressões dos imigrantes não são melhores, como vemos em Davatz colono suíço-germânico destinado à fazenda Ibicaba, pois, ficaram encarcerados no “... pátio (que antes se destinaria a escravos) enorme cercado pelo porto, de outro por muros e casas com portas bem aferrolhadas e guardadas por sentinelas armadas”.10

Quanto ao que se falara anteriormente, o estabelecimento errático em Santos é fruto dessa total ausência de logística para a recepção e de políticas claras de assentamento como se lê nas deliberações do Conselho Provincial em fevereiro de1829: “... não só os colonos que existem nessa Cidade e na Aldeia de Itapecerica, como os que não poderem se acomodar na vila de Santos, sejam mandados para o lugar indicado, demarcando-se as datas, que devem pertencer a cada uma das famílias de um e outro lado do ribeirão de Itaquaquecetuba”11. Tudo indica que os estabelecidos em Santos por sua própria conta, poupavam às autoridades maiores preocupações...

Some-se às dificuldades dos imigrantes a hostilidade da população paulista, inclusive as autoridades, que os consideravam preguiçosos mandriões, dados costumeiramente a arruaças e bebedeiras, quando não eram alcoólatras contumazes. Comportamento que não se coaduna muito com a auto-imagem que os brasileiros fazem de si mesmos. Hostilidade, no entanto, que depois se tornará pontual e não sistemática.

Quanto ao seu estabelecimento em Santos recorri aos maços de populações locais da Província. As dificuldades para localizá-los, no entanto, identificando-os pela onomástica são extremamente penosas, pois, ora os nomes estão completamente estropiados, ora aportuguesados de forma tal que, Kühnen (cuja viúva motivou a denominação Alemoa), por exemplo, transfigurou-se na escrituração dos funcionários em Adão da Cunha ou, Adão João da Cunha! Enquanto Jacob Emmerich pode ser identificado ora como enteado, ora como criado ou até agregado do primeiro, chamando-se simplesmente Adão Diogo! De qualquer forma, aquilo que soa para nós um absurdo divertido dá bem a medida do estranhamento cultural entre os receptores e as tentativas possíveis de aproximação, além de algumas outras pérolas hilariantes de outra natureza.12

Os limites do artigo não permitem maior detalhamento desse grupo, o que não significa que tivesse menos importância. Mas, entre as diferenças com os graúdos, os casamentos de início, não se fazem com mulheres de famílias brasileiras, mas dentro da própria comunidade de imigrados. É o que acontecerá com o segundo casamento de Kühnen e também com Jacob Emmerich. Casamentos entre iguais, o que independentemente de aspectos raciais, culturais e religiosos tem na verdade, um cunho mais acentuadamente social. Com o surgimento de estratos médios locais, o que vai se delineando em fins do século XIX, a situação tende a alterar-se, invertendo-se em relação aos dois grupos.

O que importa salientar desse estrato é o fato de tornarem digno o trabalho livre, contribuindo para abater o preconceito contra certas atividades com o envolvimento direto de todo um grupo familiar. Além de propiciarem inovações ou o desempenho de atividades anteriormente inexistentes. Se Emmerich é responsável por serviços e pela construção de carros para transporte de cargas e passageiros – distintos dos velhos carros de bois com rodas fixas – a família Palm manterá um hotel em Santos e depois em São Paulo, enquanto com a família Troost, no Hospital da Misericórdia, Luís Troost é enfermeiro-mor, Claudina Troost é enfermeira e Maria Luísa Troost é cozinheira! Esses últimos eram serviços destinados aos escravos ou desclassificados, pois eram considerados socialmente degradantes na medida em que punham os indivíduos em contato com a sujeira e com homens doentes. Excluída a doença e os doentes, atender para fins de hospedagem e servir alimentação preparada aos clientes é tarefa que envolve toda a família como entre os Palm. Não é absolutamente fortuito que, em todos os lugares do Brasil, inclusive Santos, esses empreendimentos e serviços terem se iniciado por meio de estrangeiros. Mais freqüentemente italianos, franceses e alemães são os responsáveis, em razão dos preconceitos relacionados a esse tipo de trabalho, além do conhecimento e prática, adquiridos nos países de origem. E, ainda que essas famílias também pudessem ser proprietárias de escravos – disso não escapam os graúdos e os miúdos que prosperam como Kühnen e Emmerich – o fato de pais e filhos compartilharem do trabalho manual, lhes confere uma outra dimensão social, distinta do comportamento escravista tradicional.

Por outro lado, deve-se aos graúdos, a Fomm em particular, alguns empreendimentos extremamente importantes para o dinamismo da economia comercial santista. O primeiro deles é procurar ultrapassar a subordinação do porto de Santos ao Rio de Janeiro, pois o açúcar paulista era remetido para o Rio e de lá exportado. Cito apenas aquela que seria a primeira tentativa conhecida, um marco importante, quando logo após seu casamento em 1824, ele fretou o barco inglês Forager carregando-o com açúcar destinado à Inglaterra e, vendido o carregamento, “... fretou em Liverpool o brigue inglês Ellen, que carregou com fazendas, secos e outros gêneros...”13 regressando a Santos em fevereiro de 1825. Na década seguinte passariam a tomar outras proporções o comércio direto entre o porto paulista, Europa e Estados Unidos. Ligações e relações que sedimentadas, serão fundamentais para o futuro comércio do café. Além disso, deve-se a Fomm associado a Whitacker a montagem de uma estufa para a secagem de açúcar que chegava a Santos sem condições comerciais de embarque, além de máquina movida a vapor para a produção de cal, que localmente ainda se produzia queimado nas ostreiras.

Se o panorama de Garcia Redondo parece assinalar um salto da tradição para o progresso, há algumas etapas que demonstram modificações, que embora lentas, criaram condições efetivas para maiores transformações. Quanto às tropas de mulas e o transporte de mercadorias, por ausência de outros meios, sua circulação no perímetro urbano para alcançar o porto natural equipado de pontes e trapiches, sem dúvida deveria causar transtornos consideráveis. Kidder, um viajante americano, nos fala de tropas com quinhentos animais que desciam a Serra e do movimento constante de bestas e mercadorias em Santos14, e por mais arcaico e anti-higiênico que fosse o meio de transporte, isso revela uma atividade crescente da economia, integrada à sua comercialização portuária.

Com relação ao assentamento dos imigrantes alemães em Santos, ao contrário da demonização que posteriormente se fará deles, – com as advertências do Perigo Alemão – já em fins do século XIX e, principalmente, no século XX por motivos conhecidos, eles independentemente do seu estrato social, na primeira metade do século XIX, parecem bem integrados localmente. O que é preciso rematar, no entanto, é que se há aptidões técnicas dos estrangeiros, existia em certas áreas no Brasil, Santos e São Paulo incluídas, a despeito da grossa escravaria, demanda de transformações que integrassem o país, ainda que periférico, às áreas centrais. Os estrangeiros alteram em parte a rotina, os procedimentos sempre usuais apoiados no braço escravo, conferindo também uma dimensão nova ao trabalho. Entretanto, nada aponta para alguma característica excepcional que não se assentasse em dimensões mais avançadas do capitalismo já preconizadas pelas políticas ilustradas luso-brasileiras do século XVIII.

Falou-se, contudo, em estruturas simbólicas das “colônias” estrangeiras. É o que veremos no próximo tópico, destacando a primeira delas, o Cemitério Alemão, que não tem qualquer viés de celebração necrófila, porque se em cemitério há os mortos, ele diz respeito às crenças religiosas, à sociedade e, portanto, aos homens vivos.





As estruturas simbólicas da “colônia”: o Cemitério Alemão de Santos.


“Toda a modificação de um costume que se realiza de algum modo sob o patrocínio de poderes supra-sensíveis pode afetar os interesses de espíritos e deuses. Assim, a religião multiplica inseguranças e inibições naturais em todo agente inovador: o sagrado é especificamente invariável”
.
Max Weber. Economia e Sociedade. Volume I.



O Cemitério não é, entre as estruturas simbólicas da colônia alemã de Santos, a mais importante, há outras mais significativas. Por outro lado, se inicialmente o que se requeria era um cemitério protestante, desde que não havia necrópoles públicas nas cidades brasileiras, é o primeiro espaço identificado com os alemães. De resto é o que farão eles e, a própria população local.

Falar das outras instituições não é muito fácil. Simplesmente desapareceram pelo processo de arresto dos bens alemães e a sua incorporação ao Estado após a declaração de Guerra em agosto de 1942. Com o “expurgo” em 1943, exceção feita à igreja luterana, tornam-se quando muito, remanescentes de um certo tipo de arqueologia documental histórica, expulsas que foram da memória local. O prédio da igreja na avenida Francisco Glicério é, entretanto, dos mais recentes.

A agremiação mais importante foi na verdade um clube que se fundou em Santos que coincide aproximadamente com a fundação do Clube XV. No contexto brasileiro, o Germania santista foi o terceiro criado, em 1865, (ou, segundo alguns em fins de 1866) antecedido apenas pelo de Porto Alegre em 1855, e o carioca ainda nos tempos do Reino Unido, em 1821. O homônimo paulistano data de 1868. Atestando a importância comercial crescente da Praça, desde que o modelo do clube é calcado naquele do Rio de Janeiro e os sócios são principalmente mercadores, o Germania-Santos inaugurou sua nova sede social, vinte anos depois, em março de 1885. Prédio, mobiliário e todos os documentos foram completamente consumidos pelo incêndio ateado em 1917, acontecimento decorrente da 1a. Guerra Mundial. Reinstalado na avenida Conselheiro Nébias, com a rua Marechal Pego Júnior, desapareceu definitivamente em 1942. Embora não pretenda referir-me aqui a essas instituições, a situação é representativa das dificuldades para delas tratar historicamente. Tanto como o apagamento da memória a que se aludira.

Quanto ao Cemitério, sua desaparição não foi fruto de acontecimentos catastróficos ou violentos. Pelo contrário, já desativado, foi vendido em 1937 para a Companhia Docas. Curiosamente, naquela data, a imprensa se referia a ele como Cemitério dos Ingleses, o que indicaria um deslizamento da denominação popular, mas não oficial – a solicitação para a sua instalação fala em protestantes – de Cemitério dos Alemães. É o que podemos verificar nas reminiscências de Robert Avé-Lallemant. Seu livro, Viagens ao Sul do Brasil que entre outras coisas, narra a breve estada do médico em Santos no ano de 1858.

Como todos os viajantes, homem de passagem, flutuante, não entra em minúcias que não sejam aquelas que lhe dizem mais de perto profissionalmente: alusões à higiene e saúde locais. Facilitava-lhe a estadia um dos poucos médicos da cidade, o doutor von der Meden em casa de quem se hospedara e Gustav Wedekind, comerciante e vice-cônsul das cidades hanseáticas. Apesar da pequenez da cidade de aproximadamente sete mil habitantes naquela época, o viajante se pergunta como encontrar na tessitura urbana, um marco que identificasse a presença da comunidade. A única apontada, e que o viajante sarcasticamente registra como “monumento de vida alemã”, é o Cemitério! Referência e situação que não se coadunam com suas concepções de “estímulo mútuo” e “vida familiar alemã”15. Finalmente remata: “Enquanto, porém, for essa a única vida alemã em comum, desejo aos meus amigos alemães de Santos que agora passem ao largo do Céstio e que mais tarde desçam para o Orco em terra alemã...” .16

Apesar de sua familiaridade com a vida brasileira, e apesar de médico, o viajante não considera as enormes dificuldades para o cumprimento dos ritos de iniciação e de passagem sacralizados e, a efetiva discriminação que pesam sobre os protestantes. Não deveria causar estranhamento aquele cemitério particular. Aliás, no Brasil, em razão das peculiaridades confessionais do Estado monárquico, oficialmente católico, esses cemitérios, ainda que referentes a estrangeiros foram marcos construídos no espaço em decorrência do processo histórico brasileiro.

Nesse sentido devem ser entendidos como brasileiros todos os cemitérios aparecidos nessas circunstâncias, desde aquele que presumivelmente foi o primeiro, o cemitério inglês da Gamboa no Rio de Janeiro, assim como brasileira a primeira construção da Igreja da Inglaterra também no Rio. As peculiaridades nesse caso, ainda que os ingleses tivessem enorme poder de barganha com – a quase imposição – o tratado comercial de 1810, interditou a sua igreja de possuir signos exteriores de construção destinada ao culto, proibindo a presença de campanário e sinos. Restrições ferozes, mas de outro lado é preciso reconhecer que a liberdade do culto católico na Inglaterra, data também do século XIX... Pouco ou nada a ver com os países alemães onde, se predominavam os luteranos, a minoria católica era extraordinariamente expressiva em número e, os conflitos, até por que os havia, eram em razão da trágica experiência das guerras de religião, melhor administrados17. Até mesmo na convivência num mesmo lugar para o culto entre confissões diferentes, em antecipações que hoje chamaríamos ecumênicas, nós vemos as possibilidades de compartilhar do mesmo prédio: “Quis eu no começo da Colônia fazer uma igreja comum para todos os cultos cristãos. Oh! Que horror! Gritaram os pseudocatólicos. Eu alegava que em toda a Germânia, onde predominava o calvinismo (sic) era permitido ao sacerdote católico celebrar para os da sua crença nas mesmas igrejas...” .18

A citação referente à criação de Petrópolis, que data de 1843 e, a despeito da inexplicável predominância calvinista na Alemanha, não se restringe a identificar apenas a intolerância católica brasileira. Mostra diferenças de atitudes entre protestantes – de uma ou várias confissões – segundo sua origem. É exemplar para a reflexão que as confissões protestantes ou evangélicas – refiro-me às reformadas, originárias historicamente desse movimento, não a fenômenos contemporâneos mais recentes – quaisquer sejam suas denominações, são dotadas de uma grande variabilidade de comportamentos e práticas, dependendo das circunstâncias sociais e históricas e do lugar a que se referem. Também é igualmente e, ao contrário do que se poderia pretender ou imaginar, algo que se aplica ao catolicismo. Práticas e características católicas, apesar de uma unidade mais aparente do que real, são profundamente diversificadas, não apenas temporalmente, mas intimamente relacionadas ao espaço social onde se constitui a Instituição. Conseqüentemente, categorias genéricas tais como protestantes ou católicos, nada podem esclarecer, que não seja genericamente, são abstrações.

Assim, além da indissolubilidade de laços entre a religião e o Estado brasileiro, o que implica atividades cartorárias executadas pela Igreja, os ritos de nascimento, casamento e morte eram documentados apenas para os católicos. Até o processo eleitoral, sem entrar no mérito de sua existência e eficácia, era muitas vezes presidido pelo pároco local e se iniciava com o canto de invocação ao Espírito Santo, assim como os juramentos se faziam sobre os Santos Evangelhos (reconhecidos pela autoridade eclesiástica). Embora a primeira constituição monárquica, outorgada, também “outorgasse” liberdade de culto religioso, ser acatólico como dizia o documento, significava ser excluído, na prática, de cidadania. Ou seja, protestantes, não tinham nascimento legalmente reconhecido, não casavam, nem poderiam morrer e ser enterrados legalmente... Em outras palavras, independentemente da fortuna, não teriam nem, onde poder cair mortos...

Em suma, cemitérios públicos não há. E os católicos são enterrados nas igrejas ou até em capelas particulares. De qualquer forma, as igrejas, da mesma forma que os cemitérios posteriormente, conservam e indicam na disposição espacial dos corpos enterrados a importância e o apreço que o indivíduo e sua família têm, junto à comunidade. Paradoxalmente, cabem todos na igreja ou até no adro19, mas a hierarquia social se mantém em função do espaço ocupado.

Na antiga igreja matriz de Santos, vendida, demolida e substituída por “nova e de gosto moderno”20, surpreendemos os funerais de Maria de três meses, uma das filhas de Costa Aguiar em 1789: “... foi enterrada na Matriz acompanhada de todas as comunidades regulares e de todo o Clero desta vila, e das Irmandades do Santíssimo Sacramento, Passos e Rosário, de que Eu e minha Mulher somos irmãos...” 21 . Nela, cujo orago era Nossa Senhora do Rosário, também foi posteriormente inumado no altar-mor, o padrinho da criança morta, o padre Patrício de Andrada. Mesmo a quatro supliciados nas extremidades das vergas de uma embarcação em 1821, pela revolta do primeiro batalhão dos caçadores, liderada pelo Chaguinhas e enforcado em São Paulo, é concedido espaço para o enterramento junto à Matriz. Também na capela de Jesus Maria e José ou, capela do Terço, infelizmente também desaparecida pelo progresso, no ato de traslado dos despojos com a demolição, identificaram-se além dos restos de vinte e três indivíduos livres, vinte e um escravizados22. Não seriam, porém, todos os escravos enterrados em capelas. Havia ainda um cemitério, o Quintal de Santo Antonio, anexo ao Convento do Valongo, lamentavelmente também desaparecido a marretadas, e onde eram jogados os corpos dos desclassificados. Seu equivalente em São Paulo corresponderia ao cemitério dos Aflitos, próximo, ou quase anexo, ao Morro da Forca.

Uma última modalidade de inumação se fazia nos conventos e particularmente entre as irmandades dos Terceiros23. Eram essas as formas aceitáveis no século XIX para os adeptos das idéias novas, mais conformes com a noção de saúde pública, que se contrapunham aos enterros nas igrejas com as emanações dos restos e os perigos de contágio para os assistentes do culto. Algumas Ordens “... tinham jazigos mais decentes, anexos às respectivas igrejas, mas fora de seus recintos; que consistiam em filas superpostas de carneiros, feitos dentro de grossas paredes, os quais depois de depositados os cadáveres eram hermeticamente fechados com tijolos e cal” .24

São esses os hábitos ainda vigentes até meados do século XIX. Com a prática no Brasil de um catolicismo doméstico, diferente daquele mais marcadamente comunitário em alguns países europeus. Os hábitos e tradições brasileiras são sobrevivências medievais articuladas às concepções barrocas e tridentinas – a decoração parietal de azulejos (mais uma vez, desaparecida) dos terceiros de São Francisco, anexa à recentemente fantasiada igreja do Valongo, mostrava Lutero esmagado por carro representando a Igreja – e aos séculos de vigência do poder inquisitorial, que só existiriam ainda pontual e residualmente, mesmo em países latinos e católicos.

Protestantes então, são acatólicos, os dissidentes da Igreja, os apartados, cujas palavras nos falam de negação e da separação, de exclusão enfim. Mas não se trata apenas de discurso, são palavras que se concretizam em ações discriminatórias cerceando o direito de ser, de existir em plenitude, ou até morrer, legalmente. Uma curiosa sociedade que tão complacentemente recebia, distribuía e ordenava hierarquicamente os senhores, escravos e supliciados na morte revelava-se absolutamente intolerante, intransigentemente incapaz de acolher também na morte, o estrangeiro dissidente.

Mas, como foram criados os cemitérios públicos? A despeito do caráter discriminatório contra os acatólicos há tentativas políticas de resolver o problema. Por razões sanitárias que impediriam os enterramentos em igrejas e para inumar corpos sem distinção de culto. A legislação já preconizava isso em lei desde 1828. Mais uma vez, quatro anos depois, em 1832, um aviso reitera o direito e a necessidade de que as Câmaras Municipais criassem cemitérios e, nessa última data, se estabelece igualmente distinção entre cemitérios particulares, como os dos conventos e irmandades, dos públicos que viessem a ser criados pelas municipalidades. A questão para os legisladores não seria proibir cemitérios particulares, mas impedir com a criação de cemitérios públicos, o enterramento nas igrejas, por insalubre e até discriminatório, como se falou.

Há, entretanto, dois aspectos que aí intervém. O primeiro seria a ruptura de um costume arraigado, uma tradição que se relacionava ao sagrado, como lembra a epígrafe desse segmento. Em razão disso não seriam pequenas as resistências. Aliás, nesse caso, creio que é possível aventar uma explicação. Em contraponto aos problemas sanitários, inumados os corpos e, cumprido o luto, poderia haver um profundo conforto psíquico das famílias enlutadas. Nas igrejas, os mortos eram entregues aos santos, ou seja, tinham quem velasse por eles e os impedissem de se imiscuir nos assuntos dos vivos. Não é muito estranhável que sob esse ponto de vista não tenha havido e se desenvolvido no passado brasileiro, esse imaginário gótico, como é característico em países nórdicos e protestantes, de fantasmas e almas penadas assombrando os vivos. Traços que parecem surgir entre nós, ou culturalmente importados, ou associados aos cemitérios e a outras práticas de inumação que se criaram, e que foram progressivamente se dessacralizando.

O segundo, tem um perfil mais consistentemente palpável: a maioria das Câmaras, a de Santos incluída, não tinha condições para arcar com a empreitada, além de sua manutenção posterior. Na verdade, para cumprir uma nova lei, a de 1850 25 que proibia terminantemente o enterro nos templos, em Santos e com auxílio provincial, será criado o Cemitério Público do Paquetá. Na verdade, além da escolha do terreno e dos custos, as posturas municipais também deviam se adequar à lei maior e, por sua vez, proibir os enterros nas igrejas. E tudo corre muito lentamente, o Paquetá irá funcionar somente a partir de 1855. O que não deve causar qualquer estranhamento: o cemitério da Consolação, na capital da Província, ficará adequado para as funções apenas em 1858. Há ainda algumas dificuldades adicionais, essas com a mão de obra. Em São Paulo, cujos Registros Gerais da Câmara no século XIX tive oportunidade de estudar com alguma minúcia, tudo leva a crer que os primeiros “funcionários públicos” destacados para diversas obras, das quais também não é possível descartar por completo o cemitério, eram constituídos por sentenciados no cumprimento das suas respectivas penas...

Quanto ao cemitério alemão de Santos, ele irá surgir como uma empresa e iniciativa particular em petição encaminhada à Câmara em 1844. Os termos exatos da mesma são desconhecidos, pois nada foi encontrado no Livro de Registros daquele ano. É possível, porém, nos Livros de Atas, apreciar a solicitação, em arrepiante linguagem (dis) funcional:


“... de Frederico Fomm por si e a pedido de todos os protestantes existentes nesta cidade, pedindo para erigerem (sic) a sua custa (sic) um cemitério onde possa (sic) ser interrados (sic) os cadáveres dos que finassem e não pertencerem (sic) ao grêmio da Igreja Católica Romana (...) Declaro que a petição indica o local no enterro (sic) pertencente a (sic) Vila Nova...”26



Quase dois anos, no entanto, separaram a solicitação das primeiras datas de inumação em 1846. Embora o espaço de tempo configure inusitada lentidão, a verdade é outra. O enorme prestígio local de Fomm, assim como do grupo que ele representava, além dos alemães, ingleses e uns poucos americanos, ligados ao comércio exportador e ao estrato social mais elevado, impôs uma resolução mais rápida que o usual. Além disso, como fica consignado na petição, não há custos para a Câmara, o cemitério seria construído por particulares e havia o terreno na Vila Nova, distante do núcleo urbano, mais povoado. É bastante provável que o terreno correspondesse a uma parte muito pequena das terras, onde Fomm tinha implantado o empreendimento malogrado de uma usina de açúcar, com acesso direto para o Estuário, e que ele pretendeu explorar com mão de obra livre constituída por imigrantes predominantemente alemães, conforme nos diz Miranda Azevedo, em texto já citado anteriormente.

Enfim, o cemitério protestante, só terá seu regulamento administrativo em agosto de 1846, indicando pelas primeiras datas de inumação, o seu uso, antes da eventual conclusão de obras e da efetiva organização. Sabe-se também que o terreno original deveria ser muito pequeno, pois sua viúva Bárbara Fomm, três anos após a morte de Friedrich em 1850, fez a doação de “dez braças de terrenos contíguo ao já pertencente”27 ao cemitério. Acréscimo de 22 metros, cuja referência não se sabe se é apenas aplicável à testada, ou à área. Apesar disso, as dimensões eram exíguas para os imensos padrões atuais. Em 1878, a publicação de mapa de Santos28, reproduz no espaço urbano, entre as ruas Sete de Setembro e Bittencourt, a necrópole na Vila Nova, margeando com um dos seus lados o Estuário e, paralela ao Cemitério Público. Suas minúsculas dimensões de 738 metros quadrados seriam absolutamente insuficientes para absorver, não apenas o número dos óbitos decorrentes do crescimento provável da população protestante, mas principalmente, da população flutuante, os marítimos dessa confissão, principalmente. Mormente se levarmos em conta as epidemias que os dizimavam, das quais, em alguns casos, eles mesmos eram os vetores involuntários.

A abordagem sobre o cemitério, quando a fiz, levou-me a considerar exclusivamente os germânicos lá inumados. A lista29, provavelmente a transcrição feita quando houve o traslado dos restos, desde que se apresenta datilografada, embora importante, é absolutamente lacunar, particularmente quanto às razões dos óbitos. Às vezes, também quanto à origem dos mortos. Dessa maneira, o que fiz, foi de fato um recorte, e não um estudo sistemático do cemitério. Interessava-me entender as razões de a necrópole dos protestantes ter em memórias escritas, que por sua vez, reproduziam a percepção e a memória dos locais, inclusive dos próprios germânicos, a denominação nacional de Cemitério dos Alemães.

Disso decorreu uma constatação importante para fundamentar a denominação. Entre os primeiros inumados, há uma criança de quase dois anos completos, Nelson Heinrich, (cujo sobrenome talvez, se anteponha aqui ao nome) textualmente, de confissão católica. Sua procedência ou origem, não é assinalada e, se não é certo, não é improvável que tenha nascido em Santos. Por outro lado, verificando a lista dos habitantes de Cidade em 1846, encontramos entre os moradores, Pedro Nelson e Maria Schneider que, tudo indica, serem os pais de uma menina inumada em 1848, Hanne Carolina (sic) Nelson, também católica, mas de procedência não assinalada. Mais uma vez, nos anos de 49 e 50, repetem-se as inumações de duas outras crianças católicas, sem determinar suas origens.

Ora, é impossível saber porque não teriam sido enterradas em igrejas. Mas é possível pensar que os enterramentos dependiam da filiação a uma das irmandades existentes em Santos, como em qualquer outro sítio brasileiro. Por outro lado, enterros envolviam, e ainda envolvem, custos com os quais muitas famílias poderiam não ter condições de arcar. E, ainda que a maioria da população vivesse muito modestamente, as atitudes em relação à morte, muito distintas das contemporâneas, e os gastos com as pompas fúnebres eram consideráveis. Enfim, todos sem distinção, pertenciam a alguma irmandade. Tanto que os escravos também tinham suas irmandades, a do Rosário, como também os homens pardos se agrupavam na irmandade de Nossa Sra. da Boa Morte, com suas respectivas igrejas. E, são as irmandades que custeiam os enterros dos seus associados. Nesse caso, não bastaria apenas ser católico, seria necessário pertencer a uma delas. Ou, simplesmente as mortes poderiam ser tão repentinas, que não havia com dar respostas à altura das providências, sendo gravadas pelos altos custos. Para continuar a leitura,
 
1Haroldo L. Camargo é doutor em História Social (A colônia alemã de Santos e as dimensões do perigo alemão. Da formação ao expurgo: 1822-1943). Professor de História do Brasil; Cultura; Arte; Patrimônio e Turismo. Chefe de Depto.; Coordenador e Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa (1975-2001). Apresentador e Pesquisador da Divisão de Educação da TV Cultura/SP (1972-1975). Historiador do Condephaat/ SCESP (1982-1996). Autor de “Fundamentos Multidisciplinares do Turismo: História” Senac/SP, 2001 e Patrimônio Histórico e Cultural. Ed. Aleph/SP, 2003 (2a. edição ).

2 “A cidade de Santos – rápida vista retrospectiva”, p. 136-141, in Almanach Litterario de São Paulo para o anno de 1885. Publicado por José Maria Lisboa. 8o. anno. São Paulo: Typographia da Provincia de São Paulo. Todos os outros fragmentos, nesse contexto, em itálico e aspas, foram citados do mesmo texto.

3 Corresponde aproximadamente à figura geométrica inscrita por Sorocaba/Piracicaba; Mogi-Guaçú/ Jundiaí.

4 São vários os consulados germânicos em Santos. As razões se esclarecem na nota subseqüente.

5 A proclamação do Império Alemão em 1871 que consolidou a Unificação teve por antecessores, 39 estados germânicos que se originaram do Congresso de Viena, em 1815. Os Registros de Estrangeiros no Brasil revelam que os germânicos declaram-se prussianos, hamburgueses, bávaros, badenses, etc. Uns poucos se declaram simplesmente alemães. Essa denominação, germânicos, não é aqui aplicada aos indivíduos de origem suíça por haver nacionalidade definida, nem aos germanófonos do Império Austríaco pelos mesmos motivos.

6 Como cidade, hoje é inexistente. Conurbada desde 1929 corresponde atualmente a Wuppertal,, na bacia do Ruhr.

7 A observação é de Sérgio Buarque de Holanda, em prefácio às Memórias de Davatz, ao identificar a onomástica germânica dos construtores de carros, por intermédio do Almanaque de São João do Rio Claro.

8 Zenha, Edmundo. “A colônia alemã de Santo Amaro; sua instalação em 1828”.

9 Zenha, cit. p. 09.

10 Davatz, cit. p. 39.

11 Idem, p. 30.

12 As dificuldades funcionais não se restringem aos nomes estrangeiros. Eis o que registra, por exemplo, José Pedro Galvão de Moura Lacerda no mapa de quarteirão do Cubatão em 1836: “Em um total de 21 fogos, porém ilegível, as folhas estão borradas, ou seja, o cretino do inspetor deste quarteirão escreveu uma primeira lista de forma errada e fez outra, só que o problema é que o estúpido fez a segunda via em cima da primeira, ficando as duas ilegíveis”.

13 Miranda de Azevedo. “Frederico Fomm”. Almanach Litterario 1880. Cit. p. 85

14 Fomm também seria o responsável pelos planos de ligação ferroviária entre o Porto e o Planalto, não executados. Louvado como precursor frustrado, na verdade, alguns estudiosos da matéria sugerem que o plano seria inexeqüível.

15 Cit. p. 324.

16 P. 325.

17 Handelmann, H. Tomo 2, p. 353: “A raça de língua alemã (...) que o Brasil de preferência procura atrair, professa aproximadamente em iguais partes, o rito católico e o evangélico; na pátria, essa raça sustentou um guerra de séculos, para obter a paridade legal de ambas essas religiões, e aprendeu a respeitá-la, e não poderá sentir-se disposta a reviver ainda, seja onde for, semelhantes lutas...”

18 Apud Ribeiro, Boanerges. Cit. p. 94.

19 No adro da Matriz o vigário da Vila, por faculdade do bispo diocesano, manda assentar marcos de pedra separando o sagrado do profano, benzendo-o na forma estipulada pelo Ritual Romano.

20 De estilo neogótico e do mesmo construtor da Sé em S.Paulo, cuja Sé Velha foi igualmente demolida. Esperemos que não se queira demolir a atual Catedral e construir-se uma outra, de gosto ainda mais moderno...

21 “Cadernos de Assentos”, p. 202.

22 Costa e Silva Sobrinho.

23 Ordens primeiras: conventos masculinos. Segundas: conventos femininos. Terceiras ou Irmandades (Carmo, S.Francisco, etc.): filiados são irmãos leigos de ambos os sexos.

24 Vieira Bueno, Francisco de Assis. Cit. p. 37. Para melhor visualizar, recorrer às gravuras de Debret, Viagem Pitoresca...: Tomo III. V. III. Prancha 28. Do mesmo autor podem ser vistos os pavimentos das igrejas, em madeira e numerados. Os pavimentos atuais nas velhas igrejas, de tábuas corridas, ladrilhos ou outros materiais duros, são mais recentes, posteriores à proibição dos enterramentos. Poucas igrejas conservariam os pavimentos originais em madeira e campas numeradas, como pude observar em Tiradentes/MG.

25 Lei 583, 16 de março de 1850.

26 Livro no. 5. Atas: 1840-1847, p. 159-159 A

27 Transcrição da Escritura de Compra e Venda do Cemitério dos Estrangeiros. 6o. Cartório de Notas de Santos. 27/10/1993.

28 Publicado por Jules Martin, Editor/SP. Mappa da Cidade de Santos e S. Vicente. Seus Edifícios Públicos. Hotéis. Linhas Ferreas e de Bonds. Igrejas. Passeios. Reproduzido 1978, Condephaat/Cidades Históricas no.6.

29 Liste der Verstorben. Arquivo da Imigração Alemã/SP.