RESUMO: Este artigo, o primeiro de uma série de quatro, mostra parte da história da hotelaria da cidade de São Paulo, apontando aqueles empreendimentos que se destacaram no chamado Centro Velho, no período em que essa região era o centro econômico e social da cidade. Enfoca as peculiaridades de implantação urbana desses hotéis e as características arquitetônicas de suas edificações.
ABSTRACT: This article, the first of a series of four, shows part of the hotel history in the town of São Paulo (Brazil), presenting those which were the eminent (or notable) on the area called "old centre", in the period when that region was the social and economic centre of the city. Shows the peculiarities of the urban development of these hotels and the architectural characteristics.
Para a cidade de São Paulo, os últimos anos do século XIX significaram um período repleto de transformações sociais e urbanísticas. A importância econômica dos cafeicultores do Oeste do Estado de São Paulo e o surgimento da ferrovia, “The São Paulo Railway Company”, em 1867, ligando Santos a Jundiaí, foram decisivos na transformação da cidade de traços coloniais em metrópole do café, pois a produção das fazendas passava pela cidade no seu caminho para o litoral, trazendo consigo fazendeiros, imigrantes e investimentos2.
O centro antigo concentrava todos os serviços comerciais e financeiros, sobretudo no chamado Triângulo (região compreendida, hoje, pelas ruas Direita, XV de Novembro e São Bento). Os negócios traziam muito movimento para o pequeno centro de ruas tortuosas e sem calçamento adequado. O movimento do comércio, dos bondes, de pessoas, era intenso.
A metamorfose de “antiga vila provinciana” em “cidade europeizada” vai ficando, cada vez mais, evidente, melhoram as condições sanitárias, as ruas são retificadas e calçadas. As mudanças políticas com a abolição dos escravos (1888) e a proclamação da República (1889), evidentemente, influenciaram nas transformações sócio-econômicas da cidade. A partir de então os imigrantes, notadamente os italianos, produziam a riqueza das elites paulistanas. O modo de viver dos italianos veio modificar os hábitos dos paulistanos. A elite paulistana "não se misturava", vivia nas suas fazendas, nos seus palacetes, nos seus clubes e ia para a Europa. Os italianos viviam nas ruas - nelas trabalhavam, nelas se divertiam. A cidade modificou-se também com a chegada, em 1899, da empresa canadense The Tramway, Light and Power Co. Ltd. que veio gerar e distribuir energia elétrica. Chegaram os bondes elétricos e com eles a aceleração dos fluxos de deslocamento na cidade, que permitiam a possibilidade de chegar-se ao centro rapidamente.
No centro concentravam-se as instituições públicas, as casas comerciais, as bancárias, os cineteatros, os teatros, os restaurantes, os cafés e os hotéis. A construção do Viaduto do Chá, em 1892 já indicava a necessidade de expansão do Centro e a inauguração, em 1911, do Teatro Municipal, no Centro Novo, vem corroborar a idéia de que os interesses políticos, econômicos e financeiros começavam a transpor o Vale do Anhangabaú em virtude do Centro Velho estar se tornando pequeno para o movimento gerado pelos negócios. O comércio e os serviços continuavam no Triângulo, mas, o Centro Novo foi atraindo a atenção, tornando-se o centro elegante da cidade e foi, paulatinamente, “roubando” o movimento do Centro Velho.
Como os hotéis, via de regra, são elementos marcantes na paisagem das cidades e dependem, para seu sucesso, da valorização do local onde se inserem, é importante entender esse desenvolvimento, não só sob o ponto de vista da economia que os impulsiona, mas também sob o aspecto do embelezamento da cidade. Afinal, a própria palavra hotel carrega em sua origem conotações de luxo, suntuosidade e beleza.3
No fim do século XIX os hotéis eram ainda vistos com certa reserva pela sociedade paulistana, não eram lugares próprios para as “pessoas de bem”, sendo freqüentados quase que exclusivamente por forasteiros. Segundo Morse não havia onde se hospedar na cidade até 1855 quando apareceram os primeiros hotéis, estabelecimentos modestos e quase sempre administrados por estrangeiros. Os nomes dos hotéis da época e os de seus proprietários (e/ou diretores) indicam que, realmente, a atividade hoteleira era típica dos estrangeiros, principalmente portugueses, italianos e franceses.4
Os interesses dos cafeicultores, o entroncamento das ferrovias, os negócios que se desenvolviam traziam viajantes para a cidade, e conseqüentemente a necessidade de lugares adequados para hospedar essas pessoas. Assim, a sociedade passou a aceitar o fato de "pessoas de bem" se hospedarem em hotéis cujos serviços e a própria aparência arquitetônica se vinculavam, o mais possível, aos padrões franceses.
Muito embora a década de 1890 seja aquela responsável pela explosão demográfica paulistana e pelo início da europeização que se intensificaria na década seguinte, a cidade já possuía alguns hotéis, surgidos, sobretudo, após a chegada da ferrovia. O ano de 1901 foi marcado pela inauguração da nova Estação da Luz, “a Estação da Inglesa” no falar do povo da época. Os hotéis começaram a surgir no entorno das estações ferroviárias, tanto na Luz quanto no Brás, mas, os mais requintados continuavam a ser os que existiam no Triângulo.
Os hotéis remanescentes do Império localizavam-se, principalmente, no Centro Velho, que era a “... sede da diversão, do dinheiro e do comércio do povo rico da cidade”5. No fim dos oitocentos e início dos novecentos o ponto de reunião era o largo do Rosário (atual praça Antônio Prado) e a rua XV de Novembro, aí havia “footing” todas as tardes.
Dentre os hotéis localizados no Centro Velho alguns se destacaram pelo pioneirismo, por terem operado por muitos anos e também por serem considerados “os melhores da época” pelos viajantes que registraram sua passagem por São Paulo. Este artigo apresenta o Grande Hotel como representativo do século XIX, por sua importância e principalmente por ser o primeiro a funcionar em edifício construído especialmente para esse fim.
Segundo Porto: “na época, era considerado o melhor hotel do Brasil”.6 O Grande Hotel foi realmente um dos mais importantes da cidade, é citado em quase todas as publicações que tratam da São Paulo no final do século XIX. Esse hotel marcou época principalmente por se assemelhar, segundo relato dos que o conheceram, a hotéis europeus.
Pires afirma que “... o grande marco em relação à hotelaria em São Paulo, e mesmo no Brasil, ocorreu com a inauguração do Grande Hotel, situado na Rua São Bento, esquina com o Beco da Lapa (Ladeira Miguel Couto), de propriedade do suíço-alemão Frederico Glette, em 1878.” 7 Possuía grandes candelabros a gás iluminando o vestíbulo, escadas de mármore, bons quartos, decorados com elegância, e além disso, dispunha de cozinha de primeira qualidade.8
A data exata da inauguração desse hotel é 1º de julho de 18789. De acordo com Toledo o lugar escolhido pelos proprietários, os alemães Frederico Glette e Victor Nothmann, não poderia ter sido melhor: “O edifício tinha frente para três ruas: São Bento, São José (Rua Líbero Badaró) e o Beco da Lapa, que passou a ser conhecido como Travessa do Grande Hotel (Rua Dr. Miguel Couto). Impossível imaginar-se melhor localização, em pleno Triângulo, com acesso pelo atual Largo do Café à Rua do Comércio (Rua Álvares Penteado) e Rua da Imperatriz (Rua 15 de Novembro).” Na mesma publicação o autor faz referência ao restaurante que era considerado excelente, ao fato do hotel ser considerado o melhor do Brasil e de hospedar personalidades, cita, especificamente a atriz Sara Bernhardt, que teria se hospedado nesse hotel em 188610.
De acordo com Eudes Campos o prédio do Grande Hotel foi o primeiro prédio comercial no estilo neo-renascentista da cidade11. Sobre esse hotel o mesmo autor informa que “.(...) o alemão Hermann von Puttkammer levantou para o seu conterrâneo Glette, morador no Rio de Janeiro, o mais confortável e luxuoso hotel do Brasil, o Grande Hotel (c. 1876-1878) lançando mão de um vistoso repertório formal classicista”12.
Como exemplo dos hotéis que começaram a operar no século XX o Grande Hotel São Bento foi o escolhido por ser o primeiro a se integrar à “revolução da verticalização” do Centro Velho, inaugurando a série de hotéis localizados em arranha-céus. Depois dele, surgiriam outros, também muito importantes para a hotelaria paulistana, como, por exemplo, o Hotel São Paulo e o Othon Palace Hotel – para citar apenas os localizados no Centro Velho.
O fato de ter funcionado no edifício Martinelli faz com que muitos dos registros sobre esse hotel se encontrem em estudos sobre o edifício propriamente dito, dada a importância do mesmo na verticalização da cidade de São Paulo e da própria transformação do Centro Velho. Homem informa que o edifício foi considerado pronto em 1929 – o que indica que o hotel teria começado a funcionar nesse endereço a partir de então. A descrição do Martinelli, feita pela autora dá informações importantes para que se possa conhecer esse hotel: “(...)possuía cinema, restaurantes, salões de chá, cassinos, night clubs, barbearias, escritórios, um hotel de luxo e lojas no térreo. (...) Ocupava vários andares do Prédio do Cinema e possuía 60 apartamentos de primeira linha, com banheiros privativos e telefones automáticos. A portaria ficava na entrada da Avenida São João e dava para o superdecorado Salão Mourisco, também usado para festividades”.13
Segundo a mesma autora o Hotel São Bento“ (...) inaugurou em São Paulo a linha dos estabelecimentos impessoais, buscando atingir a faixa do homem de negócios, de estrangeiros e viajantes que vinham do interior e que, até então, ficavam no Hotel do Oeste”. Diz ainda que o hotel permitia a “freqüência de mulheres, facilitada pelos ‘night clubs’ e salões do edifício” 14.
A localização do Hotel São Bento é, sem dúvida, especialmente privilegiada. Note-se que o nº 35 da avenida São João é um dos pontos mais centrais que se poderia desejar na cidade de São Paulo, fica praticamente na praça Antônio Prado. Além disso, nos anos 30 estar no prédio Martinelli era, talvez, o diferencial mais importante de todos para um hotel. Não bastava se localizar no “coração financeiro” da cidade ainda estava no prédio mais alto, mais famoso e mais comentado da época.
Sabe-se que um hotel é “refém” do seu entorno, pode-se, portanto deduzir que o sucesso do Hotel São Bento foi intimamente ligado ao do prédio que o abrigava. O hotel pôde usufruir toda a fama do edifício e, logicamente, sofreu as conseqüências de sua degradação. O crescimento da cidade, com a mudança dos negócios para além do Vale do Anhangabaú, fez tão importante edifício perder sua fama. Em 1934 o prédio foi vendido a uma organização italiana e, em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil confiscou os bens pertencentes à Itália, e em 1944 foi arrematado em leilão pelo Banco América. Foi o primeiro edifício em São Paulo a transformar-se em condomínio. 15
As características de ocupação do Martinelli não escaparam ilesas a essas transformações. De acordo com Homem o luxuoso prédio sofreu diversas modificações de uso, suas instalações foram alteradas e conseqüentemente mudou o público que o freqüentava. O hotel, outrora luxuoso como o edifício, também mudou. Foi vendido ao Grupo Zarzur, por volta de 1955, e transformou-se em estabelecimento de alta rotatividade16, encerrando definitivamente suas funções, já em conseqüência da desapropriação de todo edifício pela Prefeitura Municipal de São Paulo, em 1975.17
O Centro Velho foi, durante décadas, o local que reunia os interesses sociais, comerciais e financeiros de grande parte da população de São Paulo. Desde a construção do Viaduto do Chá e principalmente depois da inauguração do Teatro Municipal já havia um movimento que indicava uma tendência de crescimento rumo aos Campos Elíseos, mas essa situação começou a ficar mais definida em fins dos anos 40 quando a necessidade de expansão territorial se fez imperiosa já que o Triângulo se tornara pequeno para o volume de negócios que a cidade gerava. Assim sendo, os interesses dos paulistanos foram, pouco a pouco, se transferindo para a região da rua Barão de Itapetininga e avenida Ipiranga, do outro lado do Vale do Anhangabaú. Começava a “época de ouro” do Centro Novo. |
1Professora da Universidade de Sorocaba (UNISO) e da UNIP, formada em Hotelaria, mestre em Educação.
2BRUNO, Ernani Silva. História e Tradições da cidade de São Paulo, vol. III, 3ª parte, 1991, p. 899-914.
3Segundo DIAS (1990) “A expressão hôtel é de origem francesa (em nossa língua, com o tempo, acabou perdendo o circunflexo), e significava, no início, especialmente a residência do rei de França. Generalizou-se, depois para designar os edifícios, de caráter público ou privado, que fossem suntuosos e imponentes em relação aos demais de certa localidade” p. 30-31.
4 MORSE, Richard M. Formação Histórica de São Paulo.1970, p.140-141 e 179
5 GAMA, Lúcia Helena. Nos Bares da Vida: produção cultural e sociabilidade em São Paulo – 1940 – 1950, p.32.
6 PORTO, Antônio Rodrigues. Op. cit., p.56.
7 PIRES, Mário Jorge. Raízes do Turismo: Hóspedes, Hospedeiros e Viajantes no Século XIX no Brasil. p.72.
8 KOSERITZ, Carl Von (1883) apud BRUNO, Ernani Silva. Op. cit., p.1150.
9 MARTINS, Antônio Egídio. São Paulo Antigo. p.163
10 TOLEDO, Benedito Lima de. Prestes Maia, as origens do urbanismo moderno em São Paulo. p. 40.
11 CAMPOS, Eudes. Arquitetura Paulistana sob o Império: aspectos da formação da cultura burguesa em São Paulo. p. 687-689.
12 CAMPOS, Eudes. O Ecletismo Paulistano no tempo do jovem Ramos de Azevedo. p. 28
13 HOMEM, Maria Cecília Naclério. O prédio Martinelli: a ascensão do imigrante e a verticalização de São Paulo. p. 87.
14 Idem, idem, p. 115 –117.
15 Idem, idem, p. 88
16 Idem, idem, p. 123.
17 EMURB, Prédio Martinelli. |
ALMANACH ADMINISTRATIVO, COMMERCIAL E INDUSTRIAL DA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 1886, 1887 e 1888, anos 4, 5 e 6., Jorge SECKLER (org.).
REVISTA HOTÉIS DO BRASIL, São Paulo, edições de 1947 a 1971.
BRUNO, Ernani Silva. História e Tradições da Cidade de São Paulo. 3 volumes.4. ed. São Paulo: HUCITEC, 1991.
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CENNI, Franco. Italianos no Brasil .. “Andiamo in ‘Merica”. 2.ed. fac-similar comemorativa do centenário da imigração italiana no Brasil, 1875-1975. São Paulo: Martins Fontes, EDUSP, 1975.
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