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Patrimônio, Cultura e Poder: um ensaio sobre o turismo patrimonial, o caso de Santos
Leandro Domingues Duran1
 
Resumo
O presente ensaio procura discutir os limites e possibilidades relacionados com a prática do chamado “turismo patrimonial” no Brasil, especialmente no que diz respeito aos seus vínculos com as estruturas de poder e dominação social, tendo como exemplo o estudo de caso da cidade de Santos e sua relação com a temática da pirataria.

Abstract
The present article explores the possibilities and limits related to “Heritage Tourism” in Brazil, specifically its relation with strategies of political power and social control, based on a case study of city of Santos and its relation with the piracy.

O “turismo cultural” ou “patrimonial” é uma realidade e um importante veículo de desenvolvimento econômico e social em muitos países, especialmente naqueles tidos como de “primeiro mundo”. França, Itália e Espanha, entre outros, há muito já descobriram as vantagens de tal atividade que, além de gerar importantes divisas econômicas para o país e abrir vários postos de trabalho para sua população, também atua no sentido de conscientizar, informar e educar seus cidadãos em assuntos relativos à sua própria cultura. Nesse sentido, seus frutos não são medidos apenas em função do retorno financeiro que propicia, mas, principalmente, em relação ao “capital cultural” que produz e agrega àquela sociedade em que se desenvolve. De um modo geral, o que podemos perceber nessas comunidades é a formação de um aguçado senso de preservação e preocupação com a realização permanente de um saudável exercício de reflexão sobre os processos culturais envolvidos na sua própria dinâmica funcional e na sua respectiva trajetória histórica. O resultado de tudo isso não é outro que a formação de um cidadão mais consciente, em contato com os diversos aspectos de sua tradição cultural e que está apto para o pleno exercício de sua cidadania, tanto do ponto de vista regional quanto global. Além dele, ganham também os turistas, que oriundos de outras sociedades ao retornar à sua própria comunidade foram enriquecidos pelas vivências passadas e apreendidas, por meio da outra realidade visitada. Uma vez em casa, esses indivíduos contribuirão com sua própria comunidade ao trazer suas impressões e descobertas produzidas por esse intercâmbio cultural e que, agora, fazem parte de sua própria experiência de vida.

Todo esse potencial, no entanto, só pode ser alcançado quando trabalhamos com um conceito muito importante e muito em voga, porém pouco respeitado, que é o da “responsabilidade social”. Como toda prática humana, o desenvolvimento de estratégias de implantação e gestão de propostas de turismo patrimonial levanta questões de cunho ideológico. Assim, perguntas como: quais são os equipamentos materiais ou imateriais que devem ser considerados significativos para tal atividade (?), e, quais os conteúdos que devem embasar o aproveitamento turístico de cada um (?), são chaves para a definição da proposta que se quer implementar. Já sabemos que uma das principais preocupações dos Estados nacionais foi (e é) a construção de uma identidade cultural que assegure a coesão de uma determinada comunidade e, conseqüentemente, a continuidade da sua estrutura. Mais ainda, a história nos ensina que no processo de dominação social, a manipulação ideológica da tradição cultural, ou seja, a construção de um passado oficial ideal é uma das principais, se não a principal, arma com que podem contar as camadas dominantes. Assim, monumentos são erguidos, museus são formados, construções são destruídas ou preservadas, em função da sua relação com essa política de construção de uma memória “coletiva”. Foi dessa arma que se utilizaram, e ainda se utilizam os ditadores (velados ou não), os políticos populistas e as nobrezas e realezas em geral. No entanto, longe do que possa parecer, essa não é uma questão apenas para Estados nacionais; a preocupação com a imagem é algo que se desenvolveu profundamente em nossa sociedade, principalmente por ser esta, basicamente uma sociedade de consumo. Por isso, vemos um número cada vez maior de empresas e instituições, sejam elas de natureza política, econômica ou social, preocupadas com a formação de programas de memória institucional, quando não de museus ou fundações particulares, para funcionar como uma espécie de porta-voz das mesmas.

Mas, o leitor distraído poderia perguntar: qual a relação disso com o que vínhamos discutindo anteriormente, ou seja, com a temática do turismo patrimonial? Na verdade, essa atividade é parte dessa mesma grande engrenagem de produção de memória, e como tal, pode servir para os mesmos fins de dominação social. Se pensarmos bem, as estratégias de turismo servem para a propagação e valorização de determinadas visões de mundo, materializadas nas atrações e nas apresentações eleitas para visitação. Nesse sentido, roteiros e pontos turísticos são importantes ferramentas para a exposição e “venda” de uma parcela específica da memória cultural de uma determinada sociedade; eis aqui a origem do estereótipo do historiador-publicitário. Quando consideramos que essas ferramentas atuam tanto no âmbito interno, para turistas oriundos da própria comunidade, quanto externa, para turistas de comunidades estrangeiras, percebemos o poder que elas realmente possuem. Aliado a isso, o próprio caráter comercial que envolve a prática do turismo patrimonial é um agravante a ser levado em conta quando consideramos o risco do uso indevido dessas ferramentas de produção da memória. Muitas vezes, esse interesse econômico é posto acima das preocupações que deveriam nortear a gestão desse tipo de turismo, podendo ocasionar, por exemplo, a exploração de pontos turísticos “criados” apenas por conveniência locacional e/ou relacional, ou o incentivo e exploração de conteúdos analíticos inconsistentes pelo simples fato deles atraírem mais a atenção e gerar um maior movimento de público. Essa questão será exemplificada de forma mais clara, adiante, quando abordarmos nosso estudo de caso na cidade de Santos. Entretanto, o que podemos dizer é que especificamente no tocante a esse tipo de turismo, a falta de compromisso para com uma adequada contextualização do patrimônio em questão, caracteriza-se como uma grande falha, na medida em que se opõe a todas as propostas que caracterizam essa atividade, ou seja, informar e educar.

A partir do foi dito, fica clara a necessidade da participação de profissionais capacitados e comprometidos com o desenvolvimento de estratégias de gestão do patrimônio que não estejam voltadas para a manipulação irresponsável de conteúdos ideológicos, mas, muito pelo contrário, que sirvam para congregar diferentes (diversos) pontos de vista analisados da maneira mais crítica possível. Aqui não existe espaço para o curioso, para o panfletário ou o vendedor. É preciso que se diga, entretanto, que mesmo os profissionais capacitados, no desenvolvimento de suas atividades, sempre são obrigados a executar escolhas e tomar decisões que, em última instância, também estão embasadas em posturas ideológicas, o que equivale dizer que esses profissionais também são produtos de seu próprio tempo. Os próprios conceitos de “ponto turístico” e “patrimônio” implicam, necessariamente, em um processo seletivo, que, teoricamente, teria como base a sua associação com uma condição valorativa “especial”, ou seja, que a destaca das demais a ponto de justificar a sua qualificação como “turística” e/ou como “patrimônio”. Com isso queremos dizer que esses processos tendem a mudar conforme são alteradas as expectativas e as “formas do viver e do pensar” da sociedade em que estão inseridos e, portanto, são produtos dinâmicos e não estáticos. Nesse sentido, a gestão responsável do turismo patrimonial implica não apenas na compreensão, mas também na explicitação, de que tanto o “patrimônio”, quanto o “ponto turístico” são resultados de uma escolha humana e que, portanto, também revelam um pouco sobre a sociedade que os “elegeu” como algo possuidor dessa carga valorativa especial.

Com base nessas considerações, o que poderíamos, afinal, dizer em relação à prática do turismo patrimonial no Brasil? Como essa matéria é tratada por aqui, e quais as implicações sociais da mesma? De forma geral, a questão do turismo patrimonial, enquanto uma área que demanda uma política e uma reflexão específicas, não conheceu maior desenvolvimento até bem recentemente, em nosso país. É certo que as práticas de visitação a museus e monumentos históricos e culturais2 podem ser traçadas até períodos bem recuados no tempo, no entanto, não podemos equiparar tal comportamento com uma prática de um “turismo cultural/patrimonial” nos moldes atuais. Inexistiam as preocupações-chave com o desenvolvimento de estratégias de gestão e de fomento à visitação, ou com o compromisso de incentivo à reflexão sobre os contextos histórico-culturais envolvidos que marcam, ou deveriam marcar, as propostas de hoje. É provável que um dos principais motivos para isso seja o fato de que o turismo patrimonial no Brasil, a exemplo do que abordamos anteriormente, tenha sido sempre associado apenas às estratégias de poder e sua função “catequizante” no sentido de justificar e perpetrar a pretensa hegemonia de determinados modelos políticos e camadas sociais. Por isso, quando falamos em “turismo patrimonial” no Brasil quase sempre nos referimos a exemplos que nos remetem ao período imperial, aos governos militares (Republicano ou de 1964) ou aos períodos populistas de Getúlio Vargas e da aristocracia cafeeira, tais como: o Palácio do Catete, o Museu Imperial, o Museu Paulista (Ipiranga), ou a equipamentos vinculados ao Estado, como igrejas e fortificações. Como se não bastasse, o conteúdo informativo explorado em associação com esses “centros de memória cultural” eram (e são) em geral restritos à história e à cultura dos “vencedores”.

Nesse sentido, podemos dizer que o Brasil ainda não explorou da forma que deveria a questão do “turismo patrimonial”, apesar de todas as possibilidades de desenvolvimento econômico e social que tal atividade, bem executada, poderia trazer, e a despeito do enorme potencial que a nossa diversidade histórico-cultural oferece. Não obstante, não devemos encarar essa situação apenas a partir de um ponto de vista negativo. Se, por um lado, é verdade que pouco foi feito até agora, por outro, infinitas são as possibilidades que se desdobram para o presente e o futuro. Na verdade, um processo de transição já vem ocorrendo há alguns anos e novas propostas de roteiros turísticos têm sido criadas e postas em prática, em virtude do crescimento da demanda por esse novo tipo de turismo. Exemplos dessa tendência são os cada vez mais freqüentes pacotes temáticos, como o da “Trilha do Ouro” no estado do Rio de Janeiro, do “Caminho de José de Anchieta” no litoral de São Paulo, o “Roteiro dos Bandeirantes” que inclui nove cidades do interior paulista, e os passeios ferroviários de Pindamonhangaba e do Memorial do Imigrante, esse último, na cidade de São Paulo. Além desses, a Secretaria da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo lançou, em janeiro deste ano, o chamado “Circuito dos Fortes”, que procura incentivar o turismo patrimonial dos fortes da Baixada Santista e que guarda íntima relação com o estudo de caso que apresentaremos adiante. Ainda que existam algumas ressalvas que possam ser feitas em relação a alguns desses roteiros, o que percebemos é a implantação de uma nova proposta de aproveitamento turístico que tem na informação seu principal produto, e não como algo a ser explorado de forma secundária ou com pouco cuidado. Além disso, podemos observar, também, a clara preferência pela realização de uma experiência turística, mais do que de uma simples “visita”. O objetivo, aí, é fazer com que o indivíduo seja envolto pelo contexto histórico-cultural, a fim de que ele possa absorver de uma melhor forma, o maior número de informações possíveis, sejam elas visuais, táteis, olfativas ou sonoras. Quando convenientemente trabalhado isso representa a mudança do “turista-contemplativo” para o “turista-interativo”, abrindo espaço para uma conduta mais reflexiva do que receptiva, o que torna mais difícil tentativas de “catequização”. Por último, podemos eleger a discussão, não mais da história dos “vencedores”, mas sim dos “vencidos”. A ênfase, agora, está nas questões vinculadas aos processos diários de existência social aliadas à discussão da atividade de grupos que antes eram excluídos, ou simplesmente ignorados, em prol das opções ideológicas. É a vez dos quilombos, dos tropeiros, das estradas, das feiras e mercados, dos portos e dos indígenas. Mesmo as antigas estruturas de turismo patrimonial são trabalhadas de uma outra maneira, procurando incluir as diferentes facetas de uma existência histórico-cultural que é muitas vezes contraditória.

Como forma de concluirmos o presente ensaio, optamos pela realização de um breve exercício sobre a questão do turismo patrimonial e a cidade de Santos, onde iremos tocar em pelo menos parte dos assuntos aqui tratados, como forma de reforçar e exemplificar o que dissemos até agora. O tema escolhido para esse exercício foi o da “pirataria”, não apenas por ser esse um assunto de nossa especialidade, mas também, em virtude do apelo que ela exerce na imaginação popular de um modo geral. Assim sendo, podemos dizer que a cidade de Santos tem, assim como inúmeras outras cidades litorâneas do Brasil, uma tradição histórica que a vincula com a temática da “pirataria”. De um modo geral, o que podemos dizer é que essa cidade conheceu, desde o momento de sua fundação, uma série de episódios caracterizados por relações de hostilidade envolvendo indivíduos de nações consideradas “estrangeiras”, que deixaram na memória coletiva dessa população fortes impressões que sobrevivem até os dias de hoje. Os mais conhecidos são, sem dúvida, a viagem de Edward Fenton em 1583, o saque perpetrado por Cavendish em 1591 e o ataque de Spilbergen em 1615. No entanto, apesar da presença marcante tanto na história oficial, quanto na memória coletiva dessa cidade, a pirataria nunca foi devida e responsavelmente aproveitada como instrumento de desenvolvimento de um “turismo patrimonial”. Inexiste, por exemplo, um “tour da pirataria” que se proponha a abordar e analisar a questão de um ponto de vista temático. A presença dessa atividade histórica nas estratégias de gestão do turismo e do patrimônio santista está restrita a um papel secundário, seja com breves menções realizadas por guias turísticos, seja através de referências esparsas e pouco profundas em alguns folhetos e reportagens turísticas de jornal. É muito provável que tal situação se justifique por ser este um tema que, como vimos anteriormente, foge aos interesses de dominação que marcaram (e ainda marcam) a questão do “turismo patrimonial” neste país. Não podemos nos esquecer que a “pirataria” representa uma dupla negação do Estado, primeiro porque é a materialização de um fracasso estatal caracterizado pela sua incapacidade de garantir a segurança de seus cidadãos e segundo, porque ela é parte de uma história indesejada que é a história dos “vencidos”, dos “estrangeiros”.

Isso não quer dizer, no entanto, que a temática da “pirataria” não tenha desempenhado alguma função dentro das estratégias de poder que emanam, como vimos, das políticas de aproveitamento turístico e de “construção” do patrimônio histórico-cultural de Santos. Anteriormente, dissemos como é difundida e presente essa questão da “pirataria” na tradição histórica da cidade e também nos referimos a uma participação secundária dessa temática na política municipal de turismo. Nesse sentido, podemos dizer que um papel é destinado a essa questão e ele tem a ver com o próprio conceito de “pirataria”. O termo “pirataria” pressupõe, obrigatoriamente, a existência de uma conduta criminal por parte daquele que é assim designado. Em geral, acreditamos que aquele indivíduo identificado como um “pirata” tenha realizado práticas que se equiparam ao roubo, assassinato, rapto ou ameaça física, dentro ou através do ambiente marítimo e, na maioria das vezes, com nítidos intuitos econômicos. Mais ainda, essa categorização implica na falta de uma justificativa que legitime o ato. Tal condição garantiu a possibilidade do uso do conceito de “pirata” como “arma ideológica”. Preocupados com a integridade de seus interesses econômicos, os impérios ibéricos lançaram mão de todos os artifícios necessários e possíveis para combater indivíduos de nações ou reinos “estrangeiros”, que, com suas ações, punham sob ameaça suas pretensões monopolísticas. Uma das formas encontradas foi a prática comum de se qualificar todo e qualquer navegador que ousasse desafiar tais interesses, como um “pirata”. Essa conduta foi mecanicamente assimilada pela historiografia que a utilizou em sua tarefa de construção de uma identidade nacional. Por isso, condutas bem diferenciadas quanto à natureza da ação, a origem do sujeito que a praticava e principalmente, às circunstâncias em que a ação foi praticada, foram (e são) classificadas indistintamente, por essa historiografia, como atos de “pirataria”. Categorias que deveriam ser consideradas diferentes como: corsários, traficantes, contrabandistas e comerciantes, viram-se mescladas e confundidas com a “pirataria”. Entendemos então que esta historiografia não estava preocupada com as características que deveriam regular o enquadramento da ação como um ato de “pirataria”, que se dilui no meio de tantas outras classificações, o que faz com que ele perca sua identificação enquanto categoria e se transforme em uma terminologia cujo uso pode ser feito sem grandes ou maiores cuidados.

No caso dos três episódios históricos de Santos, anteriormente mencionados, essa é uma situação de fato. Do ponto de vista da teoria jurídica contemporânea e da época dos ataques, nem Fenton, nem Cavendish, nem Spilbergen, podem ser classificados como “piratas”. São vários os argumentos envolvidos nessa problemática, mas tratá-los aqui exigiria um tempo e um espaço de que não dispomos. Apesar disso, algumas observações gerais podem ser feitas. No caso de Fenton, é importante lembrar que as atitudes hostis partiram sempre dos elementos ibéricos, cabendo a esse “visitante” o princípio da autodefesa. Relatos de marinheiros ingleses revelam que, apesar de se ter cogitado o uso da força como forma de garantir as esperadas relações comerciais, essa opção foi conscientemente e intencionalmente descartada. A esquadra de Cavendish, por sua vez, sempre pretendeu empreender o assalto e a conquista da vila de Santos, apresentando-se com claros intuitos agressivos. Entretanto, não podemos nos esquecer que a Espanha (então senhora de Portugal e de todas as suas possessões coloniais) e a Inglaterra encontravam-se em plena guerra, sendo que o fiasco da “Invencível Armada” já havia ocorrido cerca de três anos antes. Cavendish, assim, classifica-se como um “corsário” e não um “pirata”. Por último, Spilbergen, da mesma forma que Fenton, sempre procurou estabelecer relações pacíficas com os moradores de Santos, tendo recorrido à violência somente quando suas tentativas de reabastecimento foram inviabilizadas pelas autoridades. Além do fato de que está envolvida aqui a questão da própria sobrevivência, as ações desse navegante holandês encontram respaldo no clima de hostilidade então em voga entre a Espanha e as revoltosas províncias dos Países Baixos do Norte. A Holanda, como sabemos, havia sido incorporada ao Império Espanhol, quando, em 1581, a União de Utrecht colocou um ponto final nessas pretensões, lançando-se à guerra por terra e mar. Também ele, não pode ser considerado um “pirata”.

O que temos, então, é um tema rico em termos do interesse popular, rico em sua relação com a tradição histórico-cultural local, rico, também, em seu potencial como material de reflexão sobre as estratégias de poder, envolvidas na prática do turismo patrimonial, mas que simplesmente é ignorado pelos agentes de desenvolvimento turístico que tendem a reproduzir as mesmas políticas viciadas com que cresceram e às quais se habituaram. A situação é ainda mais incompreensível quando consideramos que boa parte dos “equipamentos” que hoje integram os roteiros de turismo patrimonial na Baixada Santista são os mesmos que poderiam ser aproveitados na discussão da “pirataria”, bastando apenas uma alteração do enfoque. O sistema de defesa, composto por pontos como a fortaleza da Barra Grande e o Monte Serrat, são exemplos óbvios desse potencial. A primeira foi idealizada a partir da vinda de Fenton, tendo obrigado a esquadra de Cavendish a se aproximar do porto durante noite, e não mais durante o dia como se fazia anteriormente, além de ter participado ativamente nos combates com os navios e tropas de Spilbergen. O segundo, também conhecido como “morro da vigia”, presenciou e alertou a população da chegada dos navios de Diego Flores de Valdéz que vinham combater os ingleses de Fenton, e, certamente, serviu como ponto de observação das ações de Spilbergen, para que se estabelecessem estratégias de defesas nos pontos de maior necessidade. Também as atuais ruínas dos engenhos dos “Erasmos” e do de Jerônimo Leitão (Porto das Naus), são testemunhos materiais dessa história na medida em que representam as práticas de maior dinamismo econômico do período em questão, e que, portanto, atraíam (e atraem) a atenção desses indivíduos. Tanto Cavendish quanto Spilbergen não se furtaram de saquear essas estruturas produtivas, em busca de “refrescos” para seus navios e lucro para suas viagens. A imagem de Santa Catarina é outra peça interessante para nossa discussão. Profanada durante a pilhagem dos protestantes ingleses de Cavendish, ela está associada às disputas religiosas que foram uma parte importante dos motivos das guerras entre Espanha e Inglaterra, e Espanha e Países Baixos, que dão suporte às ações de Cavendish e Spilbergen comentadas anteriormente. As próprias características da paisagem natural santista e de sua localização geográfica são pontos que merecem a nossa atenção. A vinda desses “viajantes” marítimos para Santos se justifica pela qualidade de seu porto, capaz de abrigar as maiores embarcações do período, e por sua posição estratégica, que o colocava bem no meio da rota marítima para aquelas embarcações que demandavam o “Mar do Sul” (Pacífico).

Essas são apenas algumas idéias sobre como podemos facilmente tratar a questão e contribuir para o desenvolvimento de um turismo patrimonial mais responsável no país, que gere, mais do que um culto à memória, uma prática de reflexão sobre os processos histórico-culturais que envolveram e produziram a nossa sociedade. Como esse, são vários os exemplos relacionados com a questão do “patrimônio” nacional e seu aproveitamento como pólo turístico que ainda pedem por um “olhar” mais cuidadoso e crítico por parte daqueles envolvidos na elaboração de suas políticas de gestão. Como vimos na questão da “pirataria”, em boa parte das vezes não é preciso muita coisa para mudar o cenário de estagnação que impera e impregna a tradição do turismo patrimonial no Brasil. De papel fundamental para essa mudança, no entanto, é a formação de novos quadros profissionais vinculados à área de turismo, que estejam preparados e comprometidos com essas novas posturas de gestão e desenvolvimento social. Sem a participação desses indivíduos, nada mudará.
 
1Doutorando em arqueologia pelo MAE/USP; Pesquisador associado do CEANS/NEE/UNICAMP; Mestre em historia econômica com a dissertação “A construção da Pirataria: o processo de formação do conceito de pirata durante o período Moderno” (FFLCH/USP).
2Essa diferenciação está ligada apenas à questão do uso presente ou do uso passado dos equipamentos envolvidos.
 
 
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