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NOVEMBRO/2005: Origens da Construção da Imagem Pré-concebida dos Estrangeiros Sobre o Brasil
Cíntia Beatrice Matos da Costa Michelini1
 
RESUMO: Este artigo aborda os relatos de viagens de pessoas que estiveram no Brasil em séculos passados e como estes relatos influenciaram na imagem que os estrangeiros formaram do país.

ABSTRACT : This paper board the journeys’ account of people that was be in Brasil in last centuries and that this accounts influenced in the construction’s image of the Brasil by the foreigners.



“ (...) os números, como nossas pobres palavras, são
apenas tentativas de captar e exprimir fenômenos,
abordagens sempre inadequadas. Olhar apenas para
uma coisa não nos diz nada. Cada olhar leva a uma
inspeção, cada inspeção a uma reflexão, cada reflexão
a uma síntese e então podemos dizer que com cada olhar
atento ao mundo já estamos teorizando.”

Goethe




Neste artigo tentamos reconstruir o olhar estrangeiro sobre o Brasil, considerando uma imagem pré-concebida, assim como o processo inicial de estranhamento, que fez com que o estrangeiro olhasse os nativos da terra a partir de seus próprios parâmetros e, por conseguinte, os tentasse moldar de acordo com suas referências. Em síntese, trata-se de buscar saber como esses olhares criaram imagens do Brasil que até hoje influenciam a visão dos estrangeiros no que se refere ao país.

Para tentar recompor essa multiplicidade de olhares e seus pontos em comum foram pesquisados relatos de viajantes que estiveram no Brasil em distintas épocas e, por motivos diversos, essa escolha partiu do pressuposto que estes escritos, por sua popularidade em épocas passadas, ajudaram a construir os olhares estrangeiros sobre o Brasil.

Segundo a historiadora Miriam Moreira Leite, os relatos de viagens são uma das formas mais antigas de literatura e deram origem a reflexões sobre as diferenças existentes nas sociedades humanas, sendo algo intermediário entre o documento pessoal (diário íntimo e correspondência) e o relatório oficial (memória descritiva com objetivos políticos, econômicos e educacionais). Para se ter uma idéia da extensão desta literatura, ainda de acordo com a autora, verifica-se que ela aparece “em livros muito extensos (com cinco ou mais volumes), em livros curtos (de cem ou duzentas páginas), em artigos de revistas e em manuscritos”2 e ainda “sob a forma de literatura para adultos e crianças, romance de aventuras, literatura fantástica ou romance epistolar, havendo na segunda metade do século XIX, reportagens jornalísticas e guias turísticos.”3

O que se pode dizer é que alguns desses livros apareceram originalmente em forma de diários de viagem, cartas dirigidas à família e/ou amigos, memórias, relatórios científicos, guias comerciais e turísticos e ainda escritos sem intenção de publicação.

Em geral os estudos sobre tais registros partem do pressuposto de que o viajante, em sua qualidade de estrangeiro, por não fazer parte do grupo social visitado, tinha a possibilidade de perceber determinados aspectos da vida cotidiana do habitante, que este, ao vivenciá-la de forma permanente e habitual, não era capaz de perceber.

Assim, por ter incorporado os padrões de sua realidade o habitante não possui uma visão reflexiva global sobre ela. Já o estrangeiro viajante, por não ter vínculos com a região visitada, por ser de fora e estar ali de passagem, tem uma possibilidade maior de observá-la de forma mais acurada numa visão global. Entretanto, esse pressuposto não se comprova totalmente, pois a condição de estrangeiro não garante um olhar capaz de isenção e, por este motivo, muitas vezes, os viajantes foram responsáveis por uma série de estereótipos que marcaram a imagem do país, tais como a docilidade e submissão do brasileiro, dentre outros.

Como exemplo pode-se citar o trecho de um dos registros da norte-americana Marguerite Dickins, que percorreu várias vezes a costa da América do Sul, durante dois anos e meio, de 1886 a 1888, sobre a cidade do Rio de Janeiro:



“Faz calor sempre, por isso os pobres se vestem de algodão ralo e
parecem apreciar a vida e ser alegres. (...)”




Ora, ao refletir sobre tal trecho percebe-se que, para a autora, a imagem do brasileiro já é de alguém submisso, dócil e principalmente conformado com as condições de vida que lhes são apresentadas.

Tais “pré-suposições” por parte dos viajantes partem, primeiramente, do estranhamento de se deparar com algo muito diferente dos seus próprios padrões de referência. Porém, isso é quase inevitável, já que segundo Kristeva, “o estrangeiro é aquele que não pertence à nação em que estamos, aquele que não tem a mesma nacionalidade. (...) é aquele que não faz parte do grupo, é o “outro”4. E afinal quem é esse outro? Ainda de acordo com a autora, o “outro” é, em primeiro lugar, para o grupo social que o está recebendo, maléfico ou benéfico e, por esta razão, ele pode ser assimilado ou rejeitado, já que, certamente, irá suscitar uma alteração na homogeneidade estabelecida pelo grupo. E essa alteração pode ser traumática, já que segundo a historiadora Alda Mendonça, por vezes o outro é “tão diferente que causa medo, repulsa e chega-se até mesmo a duvidar de sua humanidade”.5

Isto ocorreu quando da conquista da América, onde os primeiros europeus que aqui chegaram se depararam com os indígenas e seus costumes, como retrata o seguinte trecho do livro Raça e História, de Lévi – Strauss :



“(...) enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para indagar se os índios possuíam ou não alma, estes últimos dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para verificar, através de uma vigilância prolongada, se o cadáver daqueles estava, ou não, sujeito à putrefação.”6




Assim, foi difícil para o europeu assimilar que os índios eram seres humanos que constituíam uma sociedade diferente da européia em todos os sentidos, pois faltava-lhes prévia referência sobre aquilo que encontravam pela primeira vez e não sabiam o que era.

Para Peter Burke, “os relatos revelam, ao mesmo tempo, a percepção da distância cultural e a tentativa de se chegar a um acordo ou ‘traduzi-la’ em algo mais conhecido, porque à medida que críticas são feitas aos povos visitados, busca-se sempre a comparação com o padrão cultural do narrador”.7

E foi assim que uma série de idéias sobre o Brasil foi encorpando e tomando forma. Dentre elas as mais recorrentes nos relatos dos viajantes são: o Brasil como o Paraíso e também como terra de desterrados, a edenização da natureza e ao mesmo tempo sua agressividade, a sensualidade e beleza do povo e sua docilidade contraposta por indolência e malícia.

Os trechos dos relatos apresentados a seguir foram divididos por temas, conforme acima, e não seguem uma linha cronológica, pois esta poderia limitar a riqueza dos escritos de outros períodos. Escritos estes que compreendem do século XVI, o século da conquista, até o século XIX. A escolha pela abordagem temática se deu por esta propiciar uma melhor compreensão das imagens, que para os viajantes de tempos idos representavam o país, e que ainda hoje possui força no imaginário do estrangeiro.

Assim, pode-se dizer que muito antes que a América fosse conquistada, o imaginário do estrangeiro, mais especificamente o do europeu, já era povoado por imagens de um Paraíso terrestre situado em local indeterminado. De acordo com Sérgio Buarque de Holanda8, os teólogos da Idade Média apresentavam o Éden, o Paraíso, como plausível e existente em um local distante, mas acessível. Essa crença difundiu-se, principalmente, pelo fato de que a Igreja na Idade Média herdou grande patrimônio de escritos gregos e latinos que se referiam a terras privilegiadas, onde as pessoas estavam livres de doenças e viviam em harmonia.

Segundo Sabáh Aoun , no que diz respeito ao legado da tradição greco-romana, “a grande primeira referência ao tema do paraíso ocorre em Hesíodo em sua obra ‘Os trabalhos e os dias’, onde é narrado o tempo das origens como o da raça de ouro, vivida como deuses, longe das misérias, da velhice e dos males."9

Pode-se citar também a Odisséia de Homero, onde são apresentados os Campos Elísios, para onde iam as almas das pessoas de virtude, onde viviam em concórdia e paz, as paisagens eram encantadas e o tempo era sempre fresco por causa das brisas suaves.10

Assim, ainda de acordo com Sabáh Aoun, “a herança que o mundo ocidental recebeu do paraíso original descrito na Bíblia tem características bem definidas. (...) é um jardim fértil e belo, que possui água em seu solo, que irriga uma grande variedade de árvores, plantas, frutas e flores. Possui um clima suave que mantém essa natureza exuberante e sempre abundante e a comunhão entre o homem e os animais..."11

A abundância e fertilidade da terra e seus frutos, assim como a qualidade das águas e do clima, são temas muito abordados nos relatos de viagem e que reforçam a idéia da descoberta do Paraíso, em um primeiro momento.

Porém, não foram somente aqueles que no Brasil estiveram nos anos imediatamente pós-conquista que relacionaram o país ao Paraíso. Viajantes de séculos posteriores também ajudaram a reforçar esta imagem com suas entusiastas descrições da natureza e das cidades a beira da selva.



“Desde a mais tenra infância, foi meu sonho dourado explorar as regiões exóticas do mundo. (....) fazia parte de meu programa a escolha de lugares notáveis pela descoberta de ossadas fósseis (...) Não havia no mundo lugar mais propício a tal empreendimento que o Rio de Janeiro. Uma natureza virgem perdurava ainda às portas da capital brasileira”12


“Satisfação é um termo fraco para exprimir os sentimentos de um naturalista que passeia só, numa floresta brasileira, pela primeira vez. Entre a quantidade de coisas notáveis estão os luxuriosos capins, a novidade das plantas parasitas, a beleza das flores, o rico verde da folhagem. Tudo enche de alegria.”13




Outro aspecto que impressionou os viajantes que aqui chegaram logo após a conquista, e que reforçou a idéia de que poderiam ter encontrado o Paraíso, foi o fato de os indígenas andarem nus e não se envergonharem por causa disso. O que remete à idéia de Adão e Eva em seu estado, primeiro, de inocência.



“Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença (....) e suas vergonhas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma (...).


Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual estava sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto à vergonha.”14




Além disso, o aparente ócio dos habitantes locais e sua saúde e longevidade também foram elementos que chamaram a atenção dos primeiros viajantes que aqui chegaram.



“Eles não lavram nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e fruitos que a terra e as árvores de si lançam. E com isso andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.”15




Os relatos de viagem por si só formam um universo belíssimo rico em informações, das quais as escolhidas para compor os trechos citados são apenas uma ínfima parte. Entretanto foi possível, através deles, perceber que o Brasil sempre foi visto como uma terra paradisíaca, exuberante e saudável, tanto no sentido da natureza quanto na de seus habitantes. Ou em outras palavras, sempre foi idealizado pelo olhar estrangeiro.

E isso ficou ainda mais evidente quando os viajantes, em um primeiro momento, passam a comparar a pureza de sentimentos e emoções dos índios com a corrupção do caráter europeu. Mesmo aqueles que nunca haviam estado no Novo Continente e só o conheciam por ouvir falar, muitas vezes, comparavam o comportamento “estranho” dos habitantes nativos com o comportamento “civilizado” do europeu e o “relativizavam”, como é o caso de Michel Eyquem de Montaigne, que em 1580 escreve em seus Ensaios:



“Durante muito tempo tive ao meu lado um homem que permanecera dez ou doze anos nessa parte do Novo Mundo descoberto neste século (....) Essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance e presta-se a sérias reflexões. (....) O homem que tinha a meu serviço, e que voltava do Novo Mundo era simples e grosseiro de espírito, o que dá maior valor a seu testemunho. (....) Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e na verdade cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra.(...) A essa gente chamamos selvagens (...) no entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto. As qualidades e propriedades dos primeiros são vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las nos outros a fim de melhor as adaptar ao nosso gosto corrompido.

(....) A região em que esses povos habitam é, de resto muito agradável. O clima é temperado a ponto de, segundo minhas testemunhas, raramente se encontrar um enfermo. Afirmaram mesmo nunca terem visto algum epiléptico, remeloso, desdentado ou curvado pela idade. (...) Têm peixe e carne em abundância, e de excelente qualidade.(....) Passam o dia a dançar.(...).


Esses povos guerreiam os que se encontram além das montanhas, na terra firme. (....) Quanto aos prisioneiros, guardam-nos durante algum tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo de que precisam até o dia em que resolvem acabar com ele. (...) o moem de bordoadas às vistas da assistência, assando-o em seguida, comendo-o e presenteando os amigos ausentes com pedaços da vítima. (....) Não me parece excessivo chamar de bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um corpo entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como, não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso, em verdade, é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado. (...) Mas não se ouviu jamais ninguém que tivesse o julgamento moral assaz pervertido para desculpar a traição, a deslealdade, a tirania, a crueldade, nossos defeitos habituais. Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros, em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades.”16




Essa “relativização“ dos costumes dos nativos é nítida quando a questão da antropofagia17 é comparada aos sentimentos de competição, crueldade e cobiça que, segundo o autor, grassam entre os “civilizados”, e posta mais ainda em evidência quando da descrição das belezas e amenidades da terra, assim como de seu modo de vida , formando pessoas de caráter mais idôneo.

Tais escritos reforçam a imagem do paraíso perdido, já que remetem a um povo que, apesar dos costumes “estranhos”, ainda possuía uma certa inocência adâmica,

De acordo com Edward Lopes, os viajantes, ao se depararem com um povo tão diferente do europeu, passam a fazer uma comparação entre os dois. Ocorre que esse confronto desvaloriza os atributos dos europeus para, desta forma, valorizar mais as características do nativo. Como pode se verificar neste trecho da carta de Caminha:



“A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. (...) E não comem senão desse inhame (...) e dessas sementes e frutos (...). E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.”18




Ou ainda quando escreve Jean de Léry:



“Direi inicialmente, a fim de proceder com ordem, que os selvagens do Brasil, habitantes da América, chamados Tupinambás (...), não são maiores nem mais gordos do que os europeus; são porém mais fortes, mais robustos, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias (...)”19


“Se quiserdes agora figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu, bem conformado e proporcionado de membros (...)" 20

e

“São gente bonita de corpo e estatura, homens e mulheres igualmente, como as pessoas daqui ....” 21




A beleza como característica do povo brasileiro não passou despercebida para viajantes posteriores, como pode ser constatado neste trecho da norte-americana Marguerite Dickins, que esteve no Brasil de 1886 a 1888 acompanhando o marido, oficial da Marinha dos Estados Unidos:



“Têm corpos bonitos (as mulheres) e muitas são lindas de se ver nas sacadas e nos jardins (...)”22




Entretanto, é interessante notar que, muitas vezes, os relatos dos viajantes com relação à beleza das mulheres nativas é por vezes tão exaltado que pode-se vislumbrar uma conotação sexual, como fica evidente neste trecho da carta de Caminha:



“Ali andavam entre eles (os índios) três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de nós muito bem olharmos, não nos envergonhávamos. (...) E uma daquelas moças era toda tingida (...) e era tão bem feitas, e tão redonda, e sua vergonha ( que ela não tinha ) tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela”23




Para os europeus, a beleza nua das índias incitava-os à luxúria, apesar de argumentos como os de Jean de Léry, que assegurava que enfeites como a gola de renda, anquinhas e sobressaias, usados pelas francesas, eram mais sedutores do que a exposição das nativas.

O também francês Claude d’Abeville repetia que as índias eram mais modestas e discretas que as européias, pois que nelas não se percebiam gestos, palavras e atos ofensivos ao olhar, ao contrário das mulheres de sua terra, que usam de requebros, invenções e lubricidade. D’Abeville termina: “Em verdade, tal costume é horrível, desonesto e brutal, porém, o perigo é mais aparente do que real, e bem menos perigoso é ver a nudez das índias que os atrativos lúbricos das mundanas de França.” 24

Raminelli afirma que tal linha de pensamento, entretanto, não era popular entre outros viajantes, principalmente entre os religiosos, pois “os corpos nus provocavam a libido dos religiosos, que se auto flagelavam como forma de reprimir os impulsos bestiais; a beleza física das índias tentava contra o voto de castidade.”25

Portanto, no Brasil, segundo os religiosos, havia maior necessidade de ajuda espiritual, já que estavam em contato constante com fatores desencadeantes da luxúria. Os relatos que se referem a tal tema serão determinantes para a imagem do povo brasileiro pelos estrangeiros.

Paralelamente aos atributos físicos dos nativosoutros aspectos muitos citado pelos viajantes são, em um primeiro momento, a ingenuidade e até mesmo docilidade dos mesmos quando em contato com os viajantes. No caso dos contatos pós-conquista fica nítido que os estrangeiros achavam que podiam ludibriar e, conseqüentemente, conquistar facilmente os nativos através de presentes, já que estes inicialmente foram receptivos, como verifica-se no trecho a seguir :



“Fizemos vantajosas trocas. Por um anzol ou uma faca nos deram cinco ou seis galinhas; por um pente, dois gansos; por um espelho ou uma tesoura, o pescado suficiente para comerem dez pessoas; por um guizo ou um cinto, os indígenas nos traziam um cesto de batatas, nome que dão aos tabernáculos que são mais ou menos a figura dos nossos nabos e cujo sabor é parecido ao das castanhas. Trocamos inclusive as figuras das cartas de baralho. Por um rei de ouro me deram seis galinhas e ainda acreditavam ter feito um magnífico negócio.” 26


“(...) e pelo amor de algumas pequenas liberalidades que lhes faziam, pentes, facas, machados, espelhos, miçangas e outras bugigangas, tão amadas que por elas se deixariam esquartejar, e lhes traziam abundância de carne e peixes, frutas e víveres, e tudo o que eles viam ser agradável aos cristãos, como peles, plumagens, raízes para tingir; em troca do que lhes eram dadas quinquilharias e outras coisas de baixo preço: de modo que reuniu-se cerca de cem quintais das ditas mercadorias, que na França teriam alcançado bom preço.”27




Pelos trechos citados, percebe-se que os estrangeiros achavam os nativos ingênuos, pois estes trocavam coisas valiosas por outras sem valor algum, e tinham uma visão unilateral e absoluta no que diz respeito aos valores. Segundo Fiorin, na realidade a troca era eqüitativa, já que os indígenas trocavam objetos de utilidade (como ferramentas, por exemplo) ou simbólicos (adornos) para eles por objetos de utilidades (alimentos, etc) ou simbólicos (adornos indígenas) para os viajantes.28 Já a questão da docilidade aparece principalmente nos primeiros relatos, considerando a relativa facilidade de aproximação entre nativos e viajantes. No começo não houve uma resistência explícita por parte dos indígenas, já que, de início, a busca do olhar por aquilo que era diferente ocorria para ambas as partes. Na carta de Caminha aparece a seguinte observação:



“Neste dia, enquanto ali andaram , dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.” 29




Neste trecho é nítida a diferença de olhares e percebe-se já as segundas intenções por parte dos estrangeiros, ao afirmar claramente que não são amigos dos nativos, apesar da afabilidade por parte dos habitantes da terra. Outros trechos ainda revelam essa característica de docilidade como os de Jean de Léry:



“Seis homens e uma mulher não hesitaram em vir visitar-nos no navio (...) e dar-nos as boas – vindas(...). Antes de se separarem de nós os homens, principalmente dois ou três velhos que pareciam os mais notáveis da freguesia, afirmaram que em suas terras se encontrava o melhor pau-brasil da região e prometeram ajudar-nos a cortar e carregar a madeira, e ainda a nos oferecer víveres, e todo esforço fizeram para persuadir-nos a carregarmos o nosso navio. (...) Essa boa gente não fora avara, ao chegar, de mostrar-nos tudo quanto trazia no corpo, do mesmo modo procedeu ao partir (...).” 30




O fato é que os relatos dos viajantes estrangeiros que aqui estiveram, contribuíram para reforçar a idéia de um país paradisíaco -vale dizer desfrutável- com bom clima, farto em alimentos e ainda com povo dócil e ingênuo. Esses relatos são muito parecidos, senão quase idênticos, no que diz respeito a determinadas descrições. Observa-se sempre certa exaltação com relação às características do país, mesmo nos relatos mais contidos, onde o exótico está sempre presente. Ora, se para tudo há o seu contrário seria ingenuidade pensar que isto não ocorreria com relação ao Novo Continente. O reverso do país paradisíaco foi registrado pelos viajantes e fez com que todas as qualidades primeiramente apreendidas mostrassem o seu oposto.

Passado o impacto inicial de se chegar a uma terra exótica e paradisíaca, os viajantes estrangeiros perceberam que o paraíso também possuía o seu reverso. Esse reverso começou a tomar forma a partir do momento em que os nativos começaram a não concordar em serem escravizados, se recusarem a fazer determinados trabalhos, insistir em sua nudez , enfim, a demonstrar sua oposição àquele estrangeiro que na sua condição de viajante queria impor regras e costumes diferentes aos da terra.

Por outro lado, o reverso foi acentuado, já que não havia como, no caso dos primeiros viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil, não associar os costumes aqui encontrados aos mais graves pecados cristãos, como a luxúria e a preguiça, agravados ainda pela questão da antropofagia, fortemente condenados pela Igreja.

Acrescente-se a isso também a postura etnocêntrica dos viajantes, que impediu uma compreensão maior dos povos da terra, tanto em relação a seus costumes quanto em relação à dinâmica dos padrões culturais e pessoais. Essa incompreensão torna-se mais evidente no que diz respeito à sexualidade do indígena como deixam claro os trechos a seguir:



“A luxúria dos negros da terra não tem limites, não respeitam às irmãs e tias, porque este pecado não é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas próprias filhas (...)”. 31




Ainda para Gabriel Soares de Sousa, os desvios sexuais eram comuns entre os nativos e considerou que os índios tupinambás eram extremamente luxuriosos, porque, segundo o viajante, cometiam todos os pecados da carne que se possam imaginar. Dentre os excessos cometidos, estaria a sedução dos índios menores por índias mais velhas. De acordo com os escritos de Sousa, as velhas introduziam os moços nos prazeres do sexo.

Esta característica da luxúria aparece também em relatos de viajantes estrangeiros posteriores, que quase sempre registram a sensualidade, em um sentido sexual, da mulher brasileira. O vice-rei marquês do Lavradio, ao desembarcar no Brasil, que em 1768 escreve “... este país é ardentíssimo, as mulheres têm infinita liberdade, todas saem à noite sós.”32

Outro tema recorrente nos relatos dos viajantes estrangeiros foi a preguiça ou indolência que, segundo eles, é uma característica muito forte no povo brasileiro. Tal questão começou a ser formulada pois os conquistadores achavam que os índios e negros eram preguiçosos pelo fato de tentarem “matar“ o trabalho, e não viam tal atitude como sinal de resistência pelo que lhes estava sendo feito. Porém, o fato foi que o brasileiro ficou com esse estigma, como pode ser constatado nos trechos a seguir:



“Não existe aqui, como em outros países quentes, terraços e varandas ornadas com balaustradas e flores. O que se vê são sacadas sem gosto e postigos de madeira maciça, fecham as janelas para impedir a entrada do menor raio de sol nos aposentos. Fica-se numa obscuridade quase completa, o que aliás, é indiferente para as senhoras brasileiras, pois não cansam os olhos lendo ou trabalhando.”33




Com os temas dos relatos dos viajantes34 que estiveram no Brasil entre os séculos XVI e XIX, foi possível ter um panorama da imagem do país para o estrangeiro em épocas passadas. Imagem esta que aparece de forma contraditória, o espelho e seu inverso, e, ao mesmo tempo, plural. Assim, delineia-se a imagem do país – paraíso, da cordialidade e ingenuidade dos brasileiros, da alegria e do prazer, – por outro lado, delineia-se também a imagem de um outro país, selvagem, violento, lascivo e indolente em seus costumes. Duas faces de uma mesma moeda. Um país de exuberantes contrastes.

Assim, podemos refletir em como a imagem do país aparece atualmente ? Será que a imagem construída pelos antigos viajantes ainda prevalece ?
 
1 Bacharel em Turismo pelo Centro Universitário Ibero Americano e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( Puc /SP )

2 LEITE, M. Livros de Viagem. 1803-1900. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 1997, p. 11.

3 Idem

4 KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1994, pp. 100-101.

5 MENDONÇA, Alda Rocha. “O olhar viajante : a visão do outro”. In : Guinle, José (org). Lições de Turismo 1. Rio de Janeiro: Editora UniverCidade.

6 LÉVI – STRAUSS, Claude. Raça e História. Lisboa: Ed. Presença, 1980, p. 22.

7 BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Editora Civilização, 2000, p. 83

8 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso – os motivos edênicos no Descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, pp XI Prefácio.

9 AOUN, Sabáh. O paraíso no Universo do Turismo. Campinas: Paiprus, 2000, p. 41.

10 BRANDÃO, Junito de. “Mitologia grega.” In: AOUN, Sabáh. op.cit., p. 4.

11 AOUN, Sabáh. op.cit., pp. 43-44

12 BURMEISTER, J 18 -? In : Leite, Miriam., op.cit., p. 176.

13 DARWIN, Charles, 1839. In : Leite, Miriam,.op.cit., p. 208.

14 CORTESÃO, Jaime. A Carta de Pero Vaz de Caminha. 1943, In : BARROS, Diana .Os discursos do Descobrimento.São Paulo: Fapesp/Edusp, 2000, p. 30.

15 Idem

16MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios 1. Brasília : Ed. Universidade de Brasília / Hucitec, 1987. pp 256, 258 - 263.

17 É necessário esclarecer que não nos referimos aqui à antropofagia de Oswald de Andrade. Para este autor, tal ato dá-se pelo ponto de vista do indígena e não do europeu. Comumente encara-se a antropofagia como um costume bárbaro, selvagem , ou seja do ponto de vista europeu . Oswald de Andrade o inverte, apresentando-o como uma negação da filiação dos brasileiros ao europeu, traçando assim um referencial histórico a partir da cultura indígena. E apresentando-o como uma forma do indígena marcar seu território e absorver a força do europeu em todos os sentidos. Como encontramos no Manifesto antropófago do referido autor. Torna-se necessário esclarecer que a antropofagia que aqui tratamos se dá sob o ponto de vista europeu.

18 LOPES,Edward . “Ler a diferença”. In : BARROS, Diana L.P. de, op.cit., p. 19.

19 LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo : Editora Martins / Edusp, 1972, p. 73

20 idem, p. 79

21 STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia, 1988, p. 161.

22 DICKINS, p. 57. In : LEITE, Miriam., op.cit., p. 131.

23 CORTESÃO, Jaime . “A Carta de Pero Vaz de Caminha”. 1943, In : BARROS, Diana,op.cit., p. 19

24 D’ABEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. Belo Horizonte : Itatiaia , São Paulo : Edusp, 1975,p. 223.

25 RAMINELLI, Ronald. “Eva Tupinambá”. In : DEL PRIORE, Mary.(org) História das mulheres no Brasil. São Paulo : Editora Contexto / Unesp, 2000, p. 26

26 PIGAFETTA. In : BARROS, Diana L.P. de,op.cit., p.36.

27 GONNEVILLE. In : PERRONE – MOISÉS, Leyla. Vinte – luas : Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil: 1503-1505. São Paulo : Companhia das Letras, 1992, p. 57

28 FIORIN, José Luiz. In : BARROS, Diana L.P. de, op.cit., p. 36

29 Jaime Cortesão . “A Carta de Pero Vaz de Caminha.” 1943, In : BARROS, Diana L.P. de, op.cit., p. 33

30 LÉRY, Jean de, op.cit., pp. 44 - 45.

31 SOUSA, p. 309. In : DEL PRIORE, Mary.(org) História das mulheres no Brasil. São Paulo : Editora Contexto / Unesp, 2000, p.40

32 idem

33 Ida Pfeiffer, pp. 27-28. In : ibidem , p.54.

34 Observa-se assim a presença do discurso fundador, que segundo Eni Orlandi acontece quando o europeu ao se deparar com uma realidade diferente da sua, aproveita fragmentos desta para instalar aí um novo discurso, que atendesse a seus interesses.