Outros artigos
Turistas de negócios na cidade de São Paulo: teoria versus a realidade
A Religiosidade Profana da Festa de Révellion
NOVEMBRO/2005: Resenha Crítica "Patrimônio Histórico Cultural"
A Festa do Divino: Espaço de Sociabilidade, Religiosidade e Lazer
Patrimônio na metrópole: propostas para um roteiro judaico em São Paulo 1 - FINAL
Artigo
Artigo

 
A Gastronomia Étinica no Turismo Gaúcho
Dolores Martin Rodriguez Corner1
 
A Gastronomia e o Turismo são indissociáveis uma vez que se torna impossível pensar em turismo, sem prever a alimentação para curta ou longa permanência. Seja qual for o destino, o viajante não pode prescindir da alimentação, muitas vezes experimentando a cozinha do lugar.

A alimentação não é somente um ato biológico, mas é também um ato social e cultural. Ela possui um significado simbólico para cada sociedade, para cada cultura. É fator de diferenciação cultural, uma vez que a identidade é comunicada pelas pessoas também através do alimento, que reflete as preferências, as aversões, identificações e discriminações.

Através do viés da alimentação, é possível visualizar e sentir tradições que não são ditas. A alimentação é também memória, opera muito fortemente no imaginário de cada pessoa, e está associada aos sentidos: odor, a visão, o sabor e até a audição. Destaca as diferenças, as semelhanças, as crenças e a classe social a que se pertence, por carregar as marcas da cultura.

Numa análise mais detalhada, observa-se que as cozinhas étnicas2 falam muito mais do caráter de um povo do que à primeira vista pode parecer. Do contrário, como entender certos tabus alimentares sem conhecer a religião ou a história de um povo? Todos sabemos que o povo hindu não consome carne de vaca ou boi e que os judeus e muçulmanos não ingerem carne de porco. Como compreender essas características se não nos debruçarmos nas crenças, nas concepções religiosas destes povos na história de cada um?

Existem também estratégias das quais se utiliza a culinária para compensar, inclusive as formas de abate quando os animais são totalmente sangrados o que torna a carne dura para a ingestão. Assim, os molhos kasher são preparados pelos judeus, para sazonar a carne do animal que foi desta maneira abatido. Também a feijoada brasileira que é muito gordurosa podendo prejudicar a digestão, costuma-se servi-la com laranjas fatiadas, que de alguma maneira ajudam, pelo teor de acidez dos cítricos, a dissolver esta gordura e contrastar sabores. Cada grupo e cada cultura cria suas estratégias para tornar mais saboroso e equilibrado algo que é empobrecido como alimento ou indigesto, se não receber complementos adequados. Resoluções que falam muito da criatividade cultural...

Sabe-se que a cozinha étnica é transmitida pela família, conforme destaca Heck:

O sabor de certos alimentos e a singularidade de certos temperos, são um testemunho do passado, e reafirmam que apesar dos anos este passado não se perdeu, que ele sobrevive na maneira de assar o pão ou no odor forte de ingredientes que, não sendo encontrados no novo país, são preparados em casa, impregnando os quartos e corredores da memória. (HECK.1999:13)

É nesta memória perpetuada pela re-elaboração do prato, que podemos confirmar: a função da memória, enquanto lembrança é exatamente a de evitar a morte, e dessa maneira, realiza e consolida pertencimentos3, conforme encontramos em Tedesco.

Os baús das mulheres imigrantes traziam entre outras coisas, os temperos, as especiarias, os sabores da terra e também as anotações de receitas de pratos.

A gastronomia, além de ser um patrimônio cultural do lugar, oferece postos de trabalho e melhores remunerações dentre as atividades relacionadas com o Turismo.

Visitar o Rio Grande do Sul, mais especialmente as Serras Gaúchas onde estão as cidades de Gramado, Canela, Bento Gonçalves, Garibaldi, Caxias do Sul e outras, é fazer uma viagem no tempo, sendo possível emocionar-se com as expressões culturais mantidas pelos descendentes, de segunda e terceira geração de imigrantes italianos e alemães. A presença da música, da dança e, da gastronomia são as mais fortes representações mantidas. É possível perceber os produtos regionais, a introdução da cultura da vinha pelos imigrantes italianos, que elaboraram os primeiros vinhos do sul do Brasil, numa região favorável por seu clima e localização, ao cultivo das uvas4.

Os primeiros imigrantes italianos chegaram ao Rio Grande do Sul em 1875. Os portugueses precederam os imigrantes, mas se fixaram no litoral, mais precisamente em Porto Alegre, principalmente os açorianos.

Os imigrantes alemães e italianos que foram ao Rio Grande do Sul levavam consigo seus costumes alimentícios, por se constituírem de valores tão arraigados, e por isso difíceis de serem abandonados, reforçando o sentido de pertencer ao lugar deixados, momento em que surge a cozinha de caráter étnico. A medida em que as culturas tornam-se mais expostas a influências externas fica mais difícil conservar as identidades culturais intactas, ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através da inevitável infiltração cultural local. Faz-se necessário preservar as culturas que constituem a base da nossa identidade.

As muitas memórias preservadas por estes grupos étnicos que se fixaram no Rio Grande do Sul, despertam no visitante da mesma origem, um certo orgulho de pertencer também a estas etnias, uma vez que este contato desperta para valores que estavam em muitos adormecidos. Contrasta com a imigração espanhola em São Paulo que se ocultou ou foi silenciada, dificultando o encontro de suas marcas.

A presença do turismo, nestes casos, funciona como fator de preservação a medida que oferece para visitação os sítios mais impregnados da cultura dos primeiros italianos e alemães que aqui chegaram. O fato de ser uma comunidade rural facilita em muito a preservação dos locais. São Paulo por ser uma megalópole, em nome do progresso ignora muitas vezes seus monumentos, documentos vivos que poderiam representar sua história, como diz o poeta Caetano Veloso na canção Sampa: “da força da grana que ergue e destrói coisas belas”.

A cozinha étnica oferece a oportunidade de provar os sabores, os pratos e recordam o país distante. Ao apropriar-se destes locais, o turismo presta um serviço a geração presente, resgata uma memória que certamente se perderia no tempo.

Thompson quando destacou a “experiência” como o termo ausente, incorporou a análise os elementos culturais, valorizando não só o que se refere a política e economia, como também os sujeitos sociais e seus costumes, suas tradições, seu modo de vida e suas redes de relações familiares e de sociabilidade5.

Através do Turismo é oferecida a oportunidade para assistir a um moinho de milho em funcionamento, percorrer uma hora e meia em uma locomotiva a vapor “Maria Fumaça” ouvindo canções típicas italianas, ou amassar uvas com os pés numa vitivinícola6 como faziam os primeiros colonos para o preparo do vinho, além de saborear uvas colhidas na hora.

Na estrada que vai à Cascata do Caracol, encontra-se uma das primeiras residências de Canela, uma casa denominada Castelinho. Pertence à família Franzen, que a construiu de 1913 a 1915. A madeira utilizada nesta construção é a Araucária extraída do próprio lugar e tratada por imersão no Arroio Caracol que lhe proporciona maior resistência. A casa mantém a decoração dos tempos dos primeiros imigrantes e constitui-se em um museu, onde se pode tomar um chá de maçãs e provar a melhor apfelstrudel da região, tornando presente a culinária alemã para o paladar de visitantes.

As experiências vividas em viagens proporcionam lazer e cultura, perpetuam as memórias e também o desperta o sentimento de “pertencimento” a uma etnia, principalmente através da gastronomia.

O exemplo dado pelo Estado do Rio Grande do Sul deveria ser seguido por outros Estados, inclusive o de São Paulo. Possuidor de uma riqueza gastronômica imensa, presente na capital, seja da cozinha local, seja da cozinha regional brasileira ou internacional, reconhecida como a capital gastronômica mundial, no que tange a variedade de cozinhas, está entre as três maiores cidades do mundo pela variedade apresentada.

Não somente a cidade de São Paulo que já possui uma tradição gastronômica reconhecida, mas também existe uma riqueza inexplorada nas cidades da baixada paulista como: Santos, São Vicente, Bertioga e outras, possuidoras de uma variedade de peixes, crustáceos e frutos do mar de qualidade, além de diversos tipos de bananas, de uma farinha de mandioca, herança dos primeiros habitantes e uma cachaça especial que era exportada até o final do século XIX. Se melhor explorada a venda destes produtos locais, redundaria em benefícios à população local obtidos nas operações comerciais, ou vendas dos mesmos aos turistas ou visitantes, que sempre vão em busca do sabor da terra.

A caldeirada portuguesa de frutos do mar feita nos restaurantes próximos a Ilha Porchat é um prato muito divulgado e muito procurado por paulistanos que descem a serra para saboreá-la em fins de semanas.

Seria possível também, apreciar as tradições culturais dos imigrantes da Ilha da Madeira, os ilhéus remanescentes e seus descendentes, que mantém suas tradições culinárias nos morros de Santos, até os nossos dias. Trata-se de um patrimônio cultural inexplorado pelo turismo, e que pode reverter em postos de trabalho e em ganhos para a população local, além de permitir ao turista, nacional ou estrangeiro, rememorar ou conhecer o sabor dessa culinária.

Também foram muitos os imigrantes espanhóis que se fixaram em Santos, e existem algumas poucas marcas desta imigração como a Sociedade de Socorros Mútuos e a Associação de Repatriação de Espanhóis. Caberia um estudo aprofundado a respeito da gastronomia espanhola em Santos, que por ser uma cidade costeira, é possuidora dos ingredientes para a elaboração, (num exemplo muito sabido e corriqueiro) da paella marinera, feita somente de frutos do mar. Como se fez, ou se faz, a adaptação de ingredientes? As estratégias locais indicariam diferenciais, tornando o prato uma especialidade, que só poderia ser consumida no local.
Outros imigrantes também compõem a formação das cidades praianas, e um levantamento dos restaurantes locais poderia destacá-los para melhor divulgação, não só a cozinha étnica presente, como da cozinha local valorizada e muito procurada.
 
1Pedagoga. Especialista em Língua Espanhola e Mestre emTurismo. Mestranda em História PUC/SP. Profa. de Espanhol na Faculdade de Turismo e Hotelaria SENAC e de Espanhol e Alimentos e Bebidas na FAAC/SP.
2Entenda-se cozinha étnica como a cozinha feita por um grupo étnico, reproduzida quando imigram como resgate da memória, do sabor, do odor da Pátria deixada.
3TEDESCO, João Carlos em Usos da Memória, p.31.
4Sabe-se que existem duas faixas no globo terrestre favoráveis ao cultivo das uvas, que são as faixas contidas: entre o Trópicos de Câncer e Círculo Polar Ártico ao Norte e Trópico de Capricórnio e Círculo Polar Antártico ao Sul. No Brasil iniciando por São Paulo (São Roque e Jundiaí) até os Estados do Sul, Chile, Uruguai e Argentina.
5“O termo ausente: experiência”.Thompson, E.P. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. RJ:Zahar, 1981.
6Vitivinicula, segundo a enologia, refere-se ao lugar onde se plantam as uvas e também se prepara o vinho, diferente de uma vinícola que elabora e armazena o vinho em tonéis, de as uvas vindas de plantio distante.