É fácil perceber as mudanças que ocorreram em uma cidade quando moramos nela há muitos anos. Muitas vezes é difícil explicá-las. Requer atenção, estudos e principalmente, sensibilidade.
O caso de Santos não é difícil de ser entendido. Sua principal transformação está ligada ao café, que funcionou como uma espécie de marco para a cidade: a Santos de “antes”, era tida como um núcleo mais rural, já conhecida por seu porto, mas sem grande projeção nacional. A de “depois” passa a existir no momento em que o café se sobrepõe ao açúcar como gênero exportado, e isso causa uma revolução urbana e social na cidade.
Santos tornou-se uma cidade “múltipla” como classifica Raymond Williams2, porque além de agregar diversos profissionais, administrava e dirigia negócios alheios. Casarões foram edificados, abriram-se firmas, os transportes melhoraram, a população cresceu em conseqüência da chegada de imigrantes e também por brasileiros atraídos por novos serviços e empregos.
A ligação com o planalto feita através da São Paulo Railway trouxe expansão econômica e, posteriormente, turística. Inicialmente a estrada de ferro servia para carregar um maior número de mercadorias, mas depois o serviço foi aprimorado para transportar passageiros que viajavam sob vários pretextos: negócios, prazer e visitas.
Santos vai adquirindo formas e valores diferentes para atender as novas necessidades. O que antes eram manifestações espontâneas e naturais de rua, agora se revestem de refinamento e sofisticação em espaços com acesso a poucos.
Contribuiu para isso ter ganhado um visual mais moderno, harmônico e limpo, decorrente da implantação de seu novo plano de saneamento.
Esse foi ponto fundamental para o desenvolvimento da cidade. Para Marlene Yurgel3 há duas origens das diversas formas de lazer na história do povo brasileiro, do ponto de vista econômico-social. O primeiro está relacionado com o período latifundiário colonial e o segundo, decorrente da vida urbana como tal, iniciada com a vinda de D. João VI, que ao imprimir um intenso convívio social à Corte*, adapta e transforma toda a cidade a sua volta.
Em 1950 Santos já mostrava claramente o seu novo traço urbano: comércio, porto e moradias, não mais se misturam e as zonas da cidade dividem-se de acordo com as camadas sociais. O conceito de bem morar era residir junto à orla e bairros como o Boqueirão4 que atraíam as famílias locais mais ricas e, também, não moradores, interessados em possuir um segundo imóvel para veraneio. Ou, a segunda residência.
Na verdade, o Boqueirão já era um bairro considerado muito agradável desde o século XIX e, referência de lazer. Primeiro caminho para a Barra, as pessoas trilhavam cedo a única “saída grande” para a praia, onde iam tomar banhos de mar para curar suas moléstias. Posteriormente, quando a praia já era lugar de lazer consagrado, o bairro ganhou grandes chácaras como o Parque Indígena5 e foi muito freqüentado pela elite e pelos turistas que ali iam a busca de diversão no Recreio Miramar6.
O Boqueirão cresceu e suas áreas foram tão valorizadas que se tornou alvo de especulação imobiliária. O próprio Miramar não resistiu e em seu lugar foram edificados alguns condomínios. Para atender esse novo contingente, o bairro estruturou-se com escolas, hospitais e comércio. Ao mesmo tempo em que fervilhava de gente, perdia alguns dos seus espaços de lazer público, como as praças em volta do Colégio Canadá, que Isabel Midoli , recordando a infância vivida no bairro, diz que eram ajardinadas, tinham banco e se podia correr com a bicicleta sem a preocupação de estar atropelando alguém.
Se a maior exportação de café transformou Santos, os anos 50 também mudaram totalmente o perfil da cidade: os hotéis fecharam suas portas com a proibição do jogo; as chácaras e mansões da Orla sucumbiram à especulação imobiliária e, em seus lugares, começaram a ser erguidos grandes arranha-céus.
Uma das atuais moradoras do Boqueirão, Lídice Garcia Chaves8, 59 anos, relembra os costumes dos santistas dizendo que os prédios ficavam mais na orla da praia e que nos outros bairros as pessoas moravam em casas, e a maior diversão das crianças era andar de bicicleta pela calçada enquanto os adultos ficavam conversando a noite inteira, sentados em cadeiras colocadas em frente às suas casas.
Em 1960 houve um boom da construção e grandes lançamentos foram feitos. A cada inauguração um padre para abençoar o empreendimento e um coquetel para comemorar o evento. A verticalização aumentou a densidade populacional da Orla e o afluxo de turistas incentivou a abertura de inúmeros estabelecimentos comerciais voltados para o lazer. O novo tipo de edificação oferecia lojas no pavimento térreo e a grande maioria foi ocupada por bares, restaurantes e lanchonetes. Esses tipos de prédio proliferaram no Boqueirão e os estabelecimentos comerciais movimentavam o bairro. A vida noturna era agitada pela intensa freqüência de moradores e turistas, principalmente nos finais de semana. Tudo agitava o bairro: as livrarias, o abrigo de bondes, as paradas de ônibus para São Paulo, as pensões, os clubes, os colégios, a Mercearia Carioca, os desfiles de bandas e os cinemas, principalmente o Cine-Teatro Caiçara, com seus 1800 lugares.
Álvaro Manoel dos Prazeres Vital9, 68 anos, antigo morador do bairro, lembra dessas décadas com saudades. Classifica-as como “os anos de ouro”. Para ele, um dos its da cidade, era as bandas que desfilavam no Boqueirão e faziam parte do calendário de eventos. Quando o Colégio Santista passava, o povo delirava. Mas para ele, como também para todos na época, o obrigatório mesmo era ir ao final de semana ao cinema, onde se formavam longas filas. Lamenta a extinção do Caiçara. Aliás, ir ao cinema não era um acontecimento sem importância. Passava-se a semana inteira planejando qual filme assistir. Era um lugar de encontro de amigos e de paqueras. O escurinho do cinema era cúmplice dos casais de namorados. Como meio de diversão, só perdia para a praia. Mas era proibido entrar de shorts ou bermudas. O traje era o mais caprichado possível. Roupa de domingo. Após as sessões, nessa época, o santista ainda não tinha o hábito de ir comer pizza. Para se ter uma dimensão da importância desse tipo de lazer, entre 1950 e 1961 o número de cinemas em Santos passou de 16 para 22, chegando a 24 mil lugares10.
Os clubes também representavam um grande espaço de convivência, onde as famílias se encontravam. Neles eram realizados os bailinhos, chamados de sabatinas ou domingueiras, e as grandes festas comemorativas: Aniversário do Clube, das Debutantes, da Primavera, do Chopp...
Funcionavam como uma espécie de referência social. Ao se saber qual clube a pessoa freqüentava, já se deduzia a que classe pertencia. Os mais ricos dedicavam-se a esportes considerados de elite, como o tênis, e suas esposas promoviam festas benemerentes. Nos outros clubes, os finais de semana eram os melhores dias. Praticava-se todo tipo de esporte e encontravam-se os amigos. Mas, nos dois casos, eram espaços que favoreciam a observação e a aproximação de pessoas, e onde muitos negócios, namoros e casamentos aconteceram.
Dona Valentina Leonel Vieira11, 88 anos, uma das organizadoras dessas festas do Tênis Clube12, afirma que as pessoas também iam lá para jogar cartas e tomar chá. Com ar melancólico recorda-se que era costume receber os amigos em casa para tomar chá, ou para almoços e jantares, os quais eram servidos com todo o aparato que a ocasião exigia: “as pessoas hoje recebem mais em restaurantes do que em suas próprias casas”.
Conclusão
No princípio deste trabalho comentei que é fácil perceber as mudanças de uma cidade quando se vive nela há muito tempo. O difícil é explicá-las. No caso do bairro do Boqueirão, percebi a mudança porque praticamente moro nele desde que nasci. Por que mudou?
Penso que vários fatores contribuíram para isso: o vídeo liquidou o cinema, que era um dos principais pontos de atração do bairro. O Cine Glória e o Caiçara fecharam e nada foi reaberto em seus lugares. Eram espaços de convivência pública que a tecnologia trouxe para a comodidade da vida privada. Por outro lado, a vida moderna fez o caminho inverso: tirou a convivência social do privado e a remeteu aos bares e restaurantes, porque hoje é muito caro e difícil ter empregados para elaborar recepções, grandes ou pequenas. E nesse ponto, o Boqueirão perdeu seus melhores estabelecimentos comerciais. Os clubes cederam lugar às academias e às discotecas, como espaços de convivência e paquera. Mas o golpe final foi dado pelo setor imobiliário. Os empresários da construção planejaram conciliar em um mesmo edifício, bares e apartamentos, mas esqueceram que a convivência em comum seria difícil. Pelo excessivo barulho que causavam, os bares acabaram criando conflitos, como o dos moradores do Edifício São Domingos, que entraram com uma ação e conseguiram colocar grades em volta dos negócios. Com isso houve um esvaziamento natural.
O Boqueirão continua sendo um ótimo lugar para se morar, mas deixou de ser um bairro para o usufruto do lazer. O santista hoje diz “vou ao Gonzaga” e logo se supõe que vá fazer compras, ou vá a alguma livraria ou restaurante, até mesmo só passear. Não se vai mais “no Boqueirão” (pode-se, no máximo, ir à feirinha da praia). Ou se mora no Boqueirão ou se passa por ele para ir a outro bairro. Infelizmente, é um lugar que perdeu sua vida, sua referência. Tornou-se um “não lugar”. Um "não lugar" como define Marc Augé, seria efetivamente a expressão mais correta. Falta uma "identidade singular", algo que o identifique e proporcione uma interação maior entre os indivíduos que por ali circulam. Carece de um referencial associado ao prazer, prazer esse que antes encontrava seu espaço nas áreas livres das praças. Estas, então, apesar de ser o local preferido das crianças e das bicicletas nem conseguiram sobreviver. Sem lugar para brincar, ambas foram recolhidas às pequenas dimensões de um apartamento. Mas hoje podem novamente sair às ruas. A cidade reservou um lugar para elas. Acomodou nos jardins da orla as diferentes classes de moradores e o que antes era um espaço inerte de contemplação, agora ganhou movimento nas rodas da ciclovia, integrando-se como uma convidativa área de lazer.
O que resta ao Boqueirão? Conformar-se em ser apenas mais um bairro de Santos ou apostar que sua vocação para pioneiro vá novamente trazer investimentos que devolvam o brilho perdido? Só o tempo dirá. |