Empresa, Recursos Comuns e Estratégias de Sustentabilidade: Operações da Petrobras na Mata Atlântica em São Paulo*


Introdução


O capítulo traz a discussão sobre conflitos ambientais e a necessidade de uma gestão negociada como caminho para a Sustentabilidade. A busca da reputação ambiental da empresa passa por negociações com os diferentes grupos de interesse, cuja identificação é um desafio em cada caso. O conceito de recursos de uso comum é proposto como uma referência para entender a dinâmica destes conflitos, exercitando-se este tipo de análise com o caso das operações da Petrobrás Transporte no interior da Mata Atlântica, na costa norte de São Paulo. Empresa que protagoniza uma operação técnica de grande porte integrando as áreas portuárias da costa de São Paulo, explora-se como a Transpetro poderia considerar em suas estratégias a alternativa de participar da articulação de uma coalizão sustentável, comprometida com a promoção da melhoria dos patrimônios ambientais afetados.


1. Conflito ambiental e sustentabilidade


Conflitos ambientais entre grupos humanos ocorrem relacionados aos diferentes usos dados aos recursos ambientais, no seu aproveitamento econômico, no desenho dos lugares de moradia, nas relações práticas e simbólicas que cada setor da sociedade desenvolve com seu ambiente. Estão em questão o mundo biofísico e seus ciclos naturais, o mundo humano e suas estruturas sociais, e o relacionamento dinâmico e interdependente entre ambas estas esferas. Ocorrem conflitos pelo controle dos recursos naturais, conflitos associados aos impactos ambientais e sociais de determinados usos em relação a outros, e conflitos ligados ao domínio do conhecimento dos recursos ambientais (Little, 2001).


A política ambiental brasileira vive um estágio fortemente conflitivo. Leis constata que temos bom arcabouço jurídico, que reflete significativo avanço na incorporação de preceitos ambientais pelo Estado brasileiro e uma cultura técnica elaborada. A imaturidade de nossa política ambiental manifesta-se para este autor justamente quando seus agentes são limitados para assumir a importância da questão do conflito e desenvolver habilidades de negociação para a gestão. Limitações dos órgãos responsáveis pela gestão se somam a atitudes e posturas dos atores tradicionais do ambientalismo para dificultar um avanço na direção de uma política negociada (Leis, 1999).


A negociação ambiental pode ser vista como necessidade estratégica para a busca da sustentabilidade. A conceituação de Sachs sobre desenvolvimento sustentável desenha um horizonte de tarefas complexas. A sustentabilidade ecológica, que implica em orientar usos dos ecossistemas e seus recursos conforme seus potenciais e limites é dimensão fundamental, mas não a única. Trata-se também de buscar sustentabilidade econômica, onde se destaca a necessidade de alocação e gestão adequada dos recursos à disposição de cada sociedade nacional, num contexto desafiador de crescente integração das economias locais e perda crescente da autonomia decisória de cada país. A sustentabilidade social exige melhorar substancialmente direitos e condições de vida das amplas massas da população, reduzindo as distâncias econômicas entre os que vivem os males ambientais do subconsumo e os que patrocinam os males do super consumo. A dimensão espacial da sustentabilidade levanta a necessidade de equilíbrio na configuração rural–urbano, e a preservação dos conjuntos biodiversos. Sustentabilidade cultural implica em encontrar estratégias de modernização com raízes endógenas, respeitando continuidade nas culturas (Sachs, 1993). Em suma, um conceito normativo de sustentabilidade deve traduzir-se em pluralidade de situações particulares onde as soluções respeitem as especificidades de cada cultura, cada ecossistema e cada local.


O Programa de Gerenciamento da Sustentabilidade da Sustainability Challenge Foundation propõe a negociação ambiental como via para operacionalizar o desenvolvimento sustentável, mediante a construção de consensos em torno de patamares progressivamente mais próximos de situações ideais do ponto de vista ambiental. A ferramenta oferecida nesse caso para facilitar negociações é a abordagem dos ganhos mútuos, em que os entendimentos se apóiam em jogos do tipo ganha-ganha, tornados possíveis pelo reconhecimento dos atores envolvidos e seus interesses (Susskind & Field, 1997).


2. Empresa e conflitos ambientais: a questão da reputação


Esta perspectiva dialoga familiarmente com a abordagem dos stakeholders na análise das estratégias de responsabilidade social corporativa. Aqui, as relações das empresas com as agências ambientais governamentais e com setores da sociedade influentes em relação ao seu campo de negócios – como consumidores, ongs, trabalhadores – são analisadas com apoio da teoria dos jogos, como situações complexas com participação de diferentes atores, caracterizadas por uma interdependência estratégica em que o sucesso de cada ator depende da capacidade de enxergar as possíveis estratégias dos demais e articular-se positivamente a elas, negociando para obter legitimidade.


A incorporação das questões ambientais pelos negócios empresariais responde à necessidade de gerenciar a reputação, em novos cenários de competitividade nos quais não basta atingir a conformidade legal, de resto passível de questionamento em ambientes de conflito. Vivemos numa sociedade em que as organizações de cidadãos passam a ser um terceiro pólo decisório: as licenças ambientais pedidas pela empresa são dadas pelo governo e pela sociedade (Andrade, 2003; Borger, 2001; Almeida, 2002).


A reputação da empresa é um bem intangível, uma fonte de vantagem estratégica que aumenta a capacidade da organização em criar valor no longo prazo, contribuindo para sua performance global o fato de ser associada à imagem de credibilidade, integridade, confiabilidade, responsabilidade (Borger, 2001; Kreitlon e Quintella, 2001). A teoria dos stakeholders vê as relações empresa-sociedade como contratos sociais que evoluem, em cenários onde se torna fundamental entender as expectativas dos diferentes grupos de interesse com quem a empresa troca influências.


Quem são estes atores? Não há uma regra: cada empresa deve encontrar seu “norte magnético” na região em que atua, na expressão de Almeida (2002). A recomendação é: diálogo e debate, consulta aos stakeholders e transparência. Este autor traz os critérios apontados pelo World Business Council for Sustainable Development para orientar a escolha dos grupos com quem a empresa deve estabelecer seus processos de consulta: legitimidade, potencial de contribuição e influência sobre o campo de negócios, possibilidade de apoiar a construção de resultados.


Quando identificam os principais stakeholders em relação aos quais as empresas devem voltar sua atenção, autores como Freeman, ou Wheeler e Sillanpää (apud Borger, 2001) incluem o ambiente natural, as gerações futuras e espécies não humanas, uma peculiar maneira de referir-se às demandas ambientais. Almeida fala em incluir a proteção ambiental ao lado dos demais critérios de Responsabilidade Social Corporativa, quais sejam o respeito aos direitos humanos, aos direitos trabalhistas, a busca do bem estar das comunidades e o progresso social.


Configura-se nestas referências um reconhecimento da necessidade de incorporação nas estratégias empresariais da busca de legitimidade na sociedade mediante incorporação de valores em que se incluem os cuidados ambientais, definindo-se as pautas de ação através de processos de consulta, demonstração de resultados, negociação. A empresa move-se em ambiente complexo, de incerteza, tateando em busca da boa identificação de interesses em relação aos quais as negociações devem ser estabelecidas, e dos parâmetros de equilíbrio entre investimentos em proteção ambiental e economia de custos. Se teoricamente perdas de vantagem competitiva no espaço técnico-econômico, decorrentes dessas negociações, podem ser compensadas por ganhos de legitimidade (Andrade, 2003), abre-se uma nova busca: trata-se de desenvolver uma boa estratégia de negociação de conflitos.


3. Identificando os atores do conflito ambiental


Dialogar com stakeholders, gerenciar situações mediante negociações, não são palavras de ordem auto explicativas. Entre as habilidades de negociação requeridas, destaca-se a necessidade de identificar bem o conjunto dos interlocutores, de forma a não excluir setores potencialmente influentes e com isso desequilibrar as decisões (Susskind & Field, 1997). A estratégia do negociador deve orientar-se por uma boa leitura da pauta das discussões, que define o recorte dos atores que devem ser mobilizados. A pauta do debate sobre a sustentabilidade não pode ficar descolada de uma definição geográfica, uma delimitação dos recursos ambientais cuja evolução de qualidade está em questão num dado momento.


McKean e Ostrom (2001) trazem da análise de populações tradicionais o registro de regimes de propriedade compartilhada, em que os diferentes grupos pactuam normas e limites de usos e os impõem de comum acordo, sobre um recurso comum. Sugerem que a sociedade de consumo contemporânea, tão diversa dos grupos tradicionais cuja cultura está mais “colada” aos conjuntos naturais, talvez deva aprender a administrar os conjuntos ambientais como quem administra condomínios, combinando espaços privados com espaços de utilização compartilhada. Reconhecendo a necessidade de respeitar limites e peculiaridades, impedindo que impulsos imediatistas e ignorantes do conjunto de demandas que pressionam o recurso acarretem seu esgotamento. A tragédia dos recursos comuns, nessa perspectiva, só existe quando se apropria individualmente um recurso cujo uso racional é o uso compartilhado. Ocorrem situações em que proprietários individuais, interessados em garantir o sucesso econômico de seus bens e atividades, ou “otimizar a produtividade de suas próprias parcelas”, podem querer garantir que proprietários adjacentes optem por usos compatíveis e complementares aos seus.


Tratam-se de situações em que os negócios individuais se alimentam da produtividade, da saúde de sistemas de recursos naturais que são fundamentalmente indivisíveis e geograficamente interativos, tais como florestas que controlam fluxos hidrográficos, mares onde circulam e se reproduzem cardumes, etc.


Por exemplo, proprietários de parcelas individuais, mas contíguas podem ter interesse em regular conjuntamente o uso da terra – o equivalente ao zoneamento. “Zoneamento e planejamento urbano são, na realidade, criações de direitos de propriedade comuns ou compartilhados sobre escolhas relacionadas ao uso da terra e à transferência desses direitos aos cidadãos de uma municipalidade” (McKean e Ostrom, 2001, p 86).


Na visão destas autoras, a propriedade comum, entendida como uma propriedade privada compartilhada sobre um bem que representa uma base de recursos de interesse coletivo, oferece um caminho para a manutenção da exploração limitada de um sistema de recursos ameaçado ou vulnerável, ao mesmo tempo que soluciona problemas relacionados ao monitoramento e à coação impostos pela necessidade de se limitar atividades exploratórias.


Essa idéia pode auxiliar a orientar a escolha dos atores a serem mobilizados para a negociação e a construção de cenários para possíveis coalizões. Os stakeholders são não apenas os interesses que já se manifestaram e estão presentes de imediato na arena de debates, mas aqueles com interesse potencial em função do entendimento do conjunto de recursos ambientais de uso comum afetado por determinada política de uso. Para que se construa sustentabilidade ecológica e econômica, o recurso ambiental e seus usuários devem ser adequadamente desenhados, contribuindo para tanto a análise da dinâmica dos conflitos ambientais.


A discussão aqui proposta se volta basicamente à busca de parâmetros para a construção da reputação ambiental da empresa, pela via da negociação de conflitos. A abordagem dos ganhos mútuos sugere que um jogo de soma positiva para resolução de conflitos pode ser construído mediante algumas posturas estratégicas chaves, entre as quais se afigura como da maior importância a capacidade de articular coalizões entre diferentes atores (Susskind & Field, 1997). Trazendo-se este raciocínio para a reputação ambiental da empresa, pode-se trabalhar com a hipótese de que a empresa deve participar de coalizões para a sustentabilidade, desenhadas em função da identificação não apenas dos limites do ambiente natural, com suas espécies não humanas, mas dos grupos humanos interessados em desenvolver usos sustentáveis dos recursos ambientais regionais.


A partir de uma leitura da dinâmica dos conflitos ambientais, cada organização empresarial pode, além de administrar suas próprias repercussões no ambiente, articular-se com os demais interesses da sustentabilidade, levando mais longe a idéia de que... “em sistemas (e jogos) abertos, o que se espera das companhias (ou jogadores) é que, em virtude da maior liberdade e poder que lhes foram conferidos, assumam novas e maiores responsabilidades em relação às outras partes interdependentes do sistema. É aqui que a racionalidade individual e a coletiva parecem convergir rumo à responsabilidade social” (Kreitlon e Quintella, 2001). Se a teoria dos jogos deve conduzir-nos a estratégias de negociação baseadas em perspectivas alocêntricas, em que se parte da visão das estratégias dos demais jogadores (Andrade, 2003), pode-se ir além da negociação pontual com cada jogador sobre suas expectativas em relação à atuação da empresa. Cada jogador participa de um conflito ambiental mais amplo que se desenrola em relação a conjuntos ambientais de uso comum, onde a empresa interfere não apenas por ser mais ou menos poluidora, consumidora em maior ou menor escala de recursos: a empresa é um ator cuja parcela de poder pode somar na coalizão das forças da sustentabilidade; ou integrar, conforme as decisões adotadas, um bloco de poder que impulsiona o desenvolvimento predatório.


Desenha-se uma idéia que vai além das alianças ou parcerias ecológicas a que se refere Tachizawa (2004). Estas são iniciativas em que se associam esforços de empresas e ONGs em novas possibilidades de negócios que viabilizam ações de interesse ambiental, ou promovem práticas menos agressivas, cuja maior importância talvez seja demonstrar concretamente um caminho de convergência entre interesses econômicos e ambientais.


Entende-se que a forma de lidar com os conflitos ambientais pode adquirir uma importância estratégica para a empresa, envolvendo o estabelecimento de objetivos e ações que alcancem efeitos no ambiente de negócio em que a empresa atua. Uma abordagem ambiental estratégica busca uma diferenciação em relação aos concorrentes através de vantagens competitivas sustentáveis, o que se justifica quando houver ameaças ou oportunidades significativas (Barbieri, 2004). Na perspectiva aqui trabalhada, propõe-se a discussão da incorporação da dinâmica de conflitos ambientais como elemento de orientação para estratégias ambientais empresariais, quando esse campo de conflitos e condicionantes assumir, efetiva ou potencialmente, essa importância.


Para tanto, aqui se buscará um exercício de discussão do posicionamento da empresa em relação à dinâmica de conflitos em que se reconhece a posição central dos recursos de uso comum, e as posturas dos diferentes atores são vistas em relação aos possíveis usos e seus respectivos impactos sobre estes mesmos recursos comuns. As relações entre os outros atores e a empresa são nessa perspectiva construídas sobre as percepções do papel da empresa no jogo de conflitos ambientais. Nessa visão, a empresa deixa de ser o centro do modelo de relações de conflito, que poderia surgir quando se trabalha em termos de “empresa e seus stakeholders”; passando de outro lado a defrontar-se com opções relacionadas a diferentes cenários de coalizões nas quais pode ingressar e participar, coalizões estas que se organizam na articulação entre atores pró-sustentabilidade ou somando atores pró-economia predatória, em cada momento. A hipótese é que a reputação ambiental, apoiando-se nas relações com os demais atores, depende não só de sistemas de gestão mas da clara comunicação de compromissos que se traduzem em engajamentos em planos reconhecidos como sustentáveis.


4. Metodologia


Aproveitam-se aqui resultados de pesquisa exploratória, utilizando observação participante e levantamentos complementares através de entrevistas, estudo de documentos, acompanhamento de noticiário regional.


A pesquisa dedicou-se especialmente a levantar dados sobre os procedimentos da área de SMS (Saúde, Meio Ambiente e Segurança) da Petrobras Transporte S.A. – Transpetro, direção do Núcleo São Sebastião do Parque Estadual da Serra do Mar, direção do Instituto Florestal do estado, e a experiência da política ambiental municipal de São Sebastião.


A inserção do autor na dinâmica envolvendo as operações da Petrobrás na região do Litoral Norte Paulista e o contexto de políticas ambientais governamentais decorre de seus trabalhos de pesquisa sobre política ambiental, negociação de conflitos e sustentabilidade em áreas portuárias, em desenvolvimento, cobrindo as áreas portuárias da costa paulista.


5. A Petrobras na Mata Atlântica, no Litoral Norte de São Paulo


Examinar a relação das operações da Petrobrás Transporte S. A. – Transpetro com a Mata Atlântica no litoral norte de São Paulo é um exercício associado ao delicado equacionamento, por parte da empresa e de agência do governo estadual responsável pelos Parques – o Instituto Florestal - dos procedimentos de manutenção da estrada de serviço utilizada para viabilizar medidas de segurança das linhas de dutos que partem do terminal de São Sebastião para o planalto.


Três oleodutos ligam o maior terminal de petróleo da América Latina, que movimenta em torno de 50 milhões de toneladas/ano, a refinarias situadas na Baixada Santista, no Vale do Paraíba e na região de Paulínia. Estas linhas atravessam o Parque Estadual da Serra do Mar, Unidade de Conservação que protege remanescentes do bioma Mata Atlântica. A referida estrada presta-se a serviços de manutenção dos dutos, podendo nesse sentido ser considerada uma infra-estrutura de interesse da proteção ambiental. Trata-se de acesso não pavimentado em sua maior parte, que apresenta dificuldades para tráfego em períodos chuvosos, sendo por essa razão pouco utilizado pelo público, embora tenha trechos de atratividade cênica. Este escasso aproveitamento facilita, de outro lado, sua utilização por caçadores, palmiteiros e outros tipos de atividades ilegais, já que não há controle de uso.


A estrada tem dois acessos no litoral, em Caraguatatuba e em São Sebastião, ligando-se no planalto a Salesópolis. Já houve momentos em que lideranças políticas do litoral levantaram a bandeira de transformar este acesso precário em estrada de rodagem com pavimentação e outras melhorias que permitissem plena utilização como mais uma via para os fluxos turísticos que nas temporadas de verão e grandes feriados ultrapassam a capacidade das estradas que ligam o planalto à região.


Para a Transpetro, tem sido difícil o equacionamento das demandas de manutenção da estrada, face ao restritivo regulamento dos parques. A empresa tem interesse na perenização do acesso, de forma a garantir os serviços de vistoria e obras de conservação das linhas de dutos. De outro lado, é preciso superar uma etapa em que tais obras geravam tensões com a agência encarregada da administração dos Parques, evoluindo para um plano global e permanente de relacionamento dentro de padrões de conformidade ambiental. O sistema Petrobrás, depois da implantação do Programa de Excelência em Gestão Ambiental e de Saúde Ocupacional, incorporou o cuidado com o meio ambiente como valor de negócio, e os gestores ambientais da empresa percebem a inconveniência de uma co-habitação conflitiva com um bem ambiental de forte visibilidade como a Mata Atlântica.


6. Serra do Mar e Mata Atlântica como recursos de uso comum precariamente protegidos


Pelo lado da Unidade de Conservação, a construção de um relacionamento sobre novas bases mais cooperativas com a empresa pode ser igualmente interessante. O Parque da Serra do Mar não foge ao panorama geral das Unidades similares, cuja implantação deveria implicar num leque de ações administrativas que inclui, depois da decretação, a regularização fundiária, a vigilância, o desenvolvimento dos planos de manejo, programa de visitação pública, educação ambiental e pesquisa. Via de regra, o que existe de fato é uma precária vigilância. Dessa forma, os parques não realizam sua vocação de tornarem-se atrativos turísticos para as localidades que os abrigam, evoluindo como focos de conflito com segmentos das populações locais, que gostariam de usar seus territórios para instalar empreendimentos de diferentes tipos, conjuntos habitacionais, ou outras modalidades econômicas.


Há três grandes conjuntos de razões para a conservação da Mata Atlântica. Este é um bioma marcado por apresentar biodiversidade comparável à da Amazônia, apresentando elevado nível de endemismo. Isso leva a uma política, por parte dos segmentos técnicos e da sociedade civil envolvidos com a causa de sua conservação, em que é prioridade evitar-se novos seccionamentos da mancha de floresta, para impedir que desapareçam espécies e para manter os fluxos biológicos no interior do ecossistema.


A floresta tropical e o clima formam conjuntos absolutamente interativos, determinando-se mutuamente. Assim, o ciclo hídrico regional e a disponibilidade de água doce para as necessidades humanas dependem da manutenção dos papéis da floresta em sua renovação.


Os solos da Serra do Mar são naturalmente instáveis, por sua história geológica. A estabilidade da encosta, numa região de elevada pluviosidade, depende do papel estabilizador da floresta, já que as plantas protegem o solo do impacto desagregador dos pingos da chuva, agindo ademais como “bombas d´água” que retiram água do solo e a devolvem à atmosfera no processo de evapotranspiração. As raízes fixam as camadas superficiais de solo às rochas, sucedendo-se aos desmatamentos de porte os fenômenos de escorregamentos, que podem chegar a proporções catastróficas. Todo o litoral de São Paulo mantém planos de Defesa Civil que a cada temporada de verão esforçam-se por controlar as situações que hoje já oferecem graves riscos, por conta deste tipo de ocorrência. A remoção da vegetação acelera o trânsito das águas e aumenta a erosão, combinando-se assoreamento dos leitos dos rios e aumento de vazão para ampliar o fenômeno das enchentes nas planícies costeiras.


Esta importância estratégica da floresta nem sempre é suficientemente percebida pelos diversos segmentos das comunidades locais. À pressão dos agentes de negócios imobiliários se somam as invasões espontâneas de grupos de baixa renda, migrantes que chegam de outras regiões do país e são responsáveis por um crescimento médio anual de 6% das populações dos municípios da região. Com os terrenos valorizados pelo mercado da segunda residência – em cuja construção reside a oferta de emprego temporário que atrai os migrantes - e em cidades que não contam com políticas de habitação popular, estes contingentes buscam as soluções de moradia fora do mercado, os terrenos onde é ilegal construir, que são as áreas de preservação.


Os núcleos do Parque da Serra do Mar, distribuídos pelos municípios litorâneos, defrontam-se assim com amplo leque de pressões que solapam sua existência. Em São Sebastião, no período da administração municipal 1997-2000, construiu-se uma estratégia de articulação entre a Prefeitura, o Parque Estadual e a Petrobrás, em torno de um programa de ecoturismo que capacitou guias locais para explorarem trilhas de visitação controlada, educativa, no interior do Parque. Este foi um esforço que abriu um novo tipo de negócio que hoje conta com parceiros no campo hoteleiro, trouxe visibilidade positiva à Petrobrás por seu papel no patrocínio às ações, e permitiu ao Parque contar com reforço de fiscais municipais para os trabalhos de vigilância da Unidade.


Esta experiência anima o pessoal do Parque e os gestores ambientais da Transpetro a considerar uma solução de parceria para o futuro, em torno da idéia de equacionar definitivamente a estrada de serviço e a necessidade de sua perenização dentro do conceito de uma estrada – parque, de uso controlado, que sirva aos objetivos de manutenção da rede de dutos e de proteção e visitação de caráter ecoturístico a partes do território do Parque Estadual. A conveniência e a viabilidade deste encaminhamento dependem de uma boa leitura do jogo de conflitos.


7. Cenários de articulação entre atores do conflito


Segmentos com ascendência política e econômica nos municípios litorâneos tradicionalmente agem dentro de posturas pouco amigáveis em relação às Unidades de Conservação e outras estratégias ambientais, vistas como interferências que atrapalham o progresso. Nas últimas décadas, o modelo de ocupação do litoral se apóia fortemente no binômio veranismo – rodoviarismo. Novas estradas facilitam a venda de residências de verão, utilizando-se exclusivamente o atrativo turístico do conjunto sol e praia. Os lugares ficam saturados no verão e vazios nas demais épocas do ano. Há um gargalo econômico, no fato da região só receber impulso de consumo externo durante sessenta dias/ano. A saída percebida por estes agentes tradicionais é pressionar por mais estradas, para ter mais gente no verão. Diante da crise do modelo, a proposta é fazer mais da mesma coisa.


A discussão de alternativas mais sustentáveis aponta a diversificação dos atrativos turísticos, em busca de fluxos menos sazonais. O ecoturismo, o turismo náutico, são potenciais praticamente inexplorados na costa paulista, que podem combinar-se com políticas de recuperação e manutenção da qualidade ambiental, que se desdobrariam ainda em novos padrões de gestão para as atividades portuárias.


Pelo lado da Transpetro, a aposta numa política modernizadora em termos de visão da gestão ambiental como valor estratégico se combinaria positivamente com uma articulação favorável à economia sustentável. Evoluir de uma imagem pública associada a impactos negativos sobre um bioma cujo significado simbólico é considerável na sociedade brasileira, para uma postura de co-habitação positiva com a Mata Atlântica, em que se somam energias na direção da implantação do Parque e de sua viabilização como atrativo eco-turístico, seria uma agregação de valor ambiental às operações da empresa.


De outro lado, coloca-se a alternativa das articulações tradicionais com os grupos de poder econômico e político, favoráveis a resolver a questão da estrada mediante um atropelamento dos requisitos técnicos ambientais e sua transformação em novo acesso rodoviário aberto a todos os usos. Nesse caso, a empresa poderia ter os ganhos típicos do imediatismo que caracteriza as posturas de economia predatória, ampliando, contudo os riscos de conflitos acirrados, ações judiciais, e perdas em reputação ambiental.


Parque e empresa devem ainda considerar os grupos de postura preservacionista, que defendem a intocabilidade da natureza e concebem os Parques como espaços fechados ao homem. Embora os grupos ambientalistas locais tenham uma trajetória de amadurecimento, estes interesses e ideologias podem aflorar, inclusive partindo de entidades localizadas fora da região. A alternativa técnica a ser encontrada deve, para ser apoiada ou ao menos aceita por estes setores, oferecer garantias quanto à integridade das áreas pertencentes ao Parque que se enquadram na categoria de “santuários ecológicos”.


Evidencia-se assim a importância das habilidades de articulação e negociação, que podem ser essenciais inclusive para compor pautas de entendimento que atendam a interesses que podem pender para um ou outro tipo de solução estratégica para o equacionamento da estrada. É o caso dos moradores dos bairros limítrofes ao Parque, constantemente alvos da fiscalização ambiental, que poderão ver num projeto sustentável oportunidades de inclusão social ou levar seu apoio político a propostas que acenam com uma idéia de progresso trazido pelo enfraquecimento da Unidade de Conservação.


8. A incorporação dos recursos comuns nas estratégias de sustentabilidade


É importante lembrar a contribuição de Andrade (2003) quando recupera a corrente da “Economia das Convenções” para discutir como atores encontram modos para cooperar em situações de conflito apesar de terem interesses, em princípio, divergentes. Nesse caso, impõe-se aos atores a busca de articulações e a constituição de alianças. Entre outros aspectos, destaca-se a necessidade de traduzir as diferentes racionalidades ou lógicas de ação, que motivam cada parte. Esta tradução é o movimento que promove a convergência de interesses, (re) conciliando enunciados e propósitos aparentemente incompatíveis e tornando possível a articulação de espaços de negociação e compromissos. Freqüentemente, diz Andrade, ”as situações de gestão mobilizam objetivos e interesses de vários atores estratégicos, portadores de racionalidades múltiplas e, não raro, controversas. Assim sendo, a maior parte das situações de conflito verificadas na realidade parece comportar uma dimensão de dependência mútua, caracterizando-se pela ocorrência simultânea do binômio conflito-cooperação, ao contrário do modelo de jogo “ganha-perde” da abordagem teórica dos jogos não – cooperativos. Trata-se (...) de situações marcadas pela indeterminação do equilíbrio (...): “jogos cooperativos não puros” de soma diferente de zero, numa expressão em que a palavra “cooperação” não faz, necessariamente, referência a uma acordo amigável, posto que não é a amizade o elemento indispensável à aparição da cooperação entre atores em conflito, mas a condição de interdependência mútua ou a reciprocidade” (Andrade, 2003, pg. 169).


A hipótese aqui levantada é que a condição de interdependência em situações de conflito ambiental pode ser melhor compreendida considerando-se o conjunto de recursos comuns (no caso aqui trabalhado, a Mata Atlântica e o Parque estadual) sobre o qual se desdobram as conseqüências , positivas ou negativas, das operações da empresa.


Os recursos ambientais do território são as bases para as estratégias de sobrevivência dos grupos humanos. A empresa, com as redes técnicas instaladas para permitir suas operações, reconstrói este ambiente, redefinindo suas características, introduzindo novos gradientes de riscos ambientais, podendo recompor e melhorar as condições ambientais ou contribuir para o colapso dos processos ecológicos, em que estão inseridas as condições de salubridade para as populações humanas ou os atributos ambientais que funcionam como atrativos numa economia turística.


As relações entre a empresa e os atores do conflito ambiental são mediadas pelas atitudes mais ou menos comprometidas com a construção da sustentabilidade ou com a manutenção da economia predatória. Identificar-se com o respeito ao ambiente passa por compartilhar estratégias de promoção da sustentabilidade na escala regional, criando sinergia. A influência no destino de um recurso de uso comum pode ser a referência para estabelecer a imagem dos procedimentos de gestão ambiental da empresa; nesse sentido, esta gestão deve olhar para dentro dos processos da empresa, mas também olhar para a real condição do ambiente geográfico por ela influenciado.


As referências conceituais recolhidas, que tratam da empresa em suas relações com stakeholders, sugerem uma visualização destas relações num modelo em que a empresa tem a posição central, ligando-se a uma constelação de grupos de influência com quem devem ser estabelecidas negociações na busca de legitimidade. De maneira simplificada, este ambiente pode ser representado como a seguir:



Alternativamente, podemos considerar uma representação que coloca como referência central das relações de conflito ambiental o(s) conjunto(s) de recursos de uso comum (no presente caso a Mata Atlântica, no Parque Estadual da Serra do Mar). Este recurso comum é percebido com significados diferentes por cada ator, e as relações entre os atores podem dar lugar à articulação de coalizões a partir de propostas de utilização e conservação dos recursos comuns, que atendam aos diferentes interesses e valores:


Para o caso aqui apresentado, uma coalizão sustentável poderia ser desenhada em torno da idéia de uma estrada-parque, impulsionadora de um programa mais ambicioso de turismo sustentável, com ampliação das oportunidades de inclusão para diferentes segmentos da população local.


Outra coalizão potencial poderá articular interesses a favor de uma estrada tradicional, que favoreça a ampliação do veranismo e poderá acarretar maiores comprometimentos da qualidade ambiental.


A incapacidade de articulação poderá conduzir a resultado de impasse: não se resolvem os conflitos, as obras de melhoria dos acessos sofrem embargos, o Parque segue com as dificuldades tradicionais de contar com meios para sua implantação.


Na perspectiva aqui trazida, uma aposta da empresa em buscar o valor de negócio de uma gestão ambiental avançada, objetivando pautar-se por uma ação responsável social e ambientalmente, levanta a possibilidade de ver como vantagem competitiva a construção de um relacionamento cooperativo em relação à Unidade de Conservação em cujo território se desenvolvem parte de suas operações. Os resultados positivos em imagem ambiental vão além dos atores locais. Mais de duas centenas de ONGs integram a rede da Mata Atlântica, ao longo de dezessete estados brasileiros em que ocorre o bioma visto como o terceiro ecossistema mais ameaçado do planeta. Uma bem sucedida articulação no caso aqui descrito poderá abrir novas portas para a complexa tarefa de construção de boa reputação ambiental para uma empresa com papel tão estratégico para o desenvolvimento brasileiro.


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* (capítulo do livro “Organização e Gestão de Negócios”, ed. Santos, Editora Universitária Leopoldianum, 2006, v.1, p.1-1)